Em 2020 os revolucionários de todo o mundo celebram o bicentenário do nascimento de Friedrich Engels. Em parceria com Karl Marx, Engels foi o responsável por sistematizar filosófica, política e taticamente as ferramentas que os trabalhadores poderiam manejar para fazer a revolução. Essa elaboração se deu por meio da superação dialética da filosofia idealista alemã e do socialismo utópico, procurando se constituir na expressão teórica e política dos trabalhadores organizados em luta. Lenin, que definiu Engels como o “mestre do proletariado contemporâneo”, dizia, em 1895:
“Marx e Engels foram os primeiros a demonstrar que a classe operária e as suas reivindicações são um produto necessário do regime econômico atual que, juntamente com a burguesia, cria e organiza inevitavelmente o proletariado; demonstraram que não são as tentativas bem intencionadas dos homens de coração generoso que libertarão a humanidade dos males que hoje a esmagam, mas a luta de classe do proletariado organizado”.
Embora muitos dos textos mais conhecidos sejam aqueles que escreveu com Marx, como Ideologia Alemão (1846) e o Manifesto Comunista (1848), Engels contribuiu de forma decisiva para a formulação materialismo histórico e dialético. Possivelmente seu escrito mais importante na juventude seja A situação da classe trabalhadora na Inglaterra (1845). Nessa obra Engels realiza um detalhado estudo sobre as condições dos operários na Inglaterra, mostrando as construções do processo de transformação social conhecido como revolução industrial. Engels afirma que “na medida em que a indústria e o comércio se desenvolvem nas grandes cidades do modo mais completo, é exatamente nelas que emergem, de forma mais nítida e clara, as consequências de um tal desenvolvimento sobre o proletariado”. Em função disso, segundo Engels, nas grandes cidades existe apenas “uma classe rica e uma classe pobre, desaparecendo dia a dia a pequena burguesia”.
Um fator que chama a atenção nessa obra de Engels é a cuidadosa análise das fontes – orais e impressas – utilizadas, mostrando a preocupação com a análise cuidadosa da realidade, central no desenvolvimento do materialismo histórico. Engels afirmou, em certo momento desse estudo sobre o operariado da Inglaterra, que “o conhecimento das condições de vida do proletariado é, pois, imprescindível para, de um lado, fundamentar com solidez as teorias socialistas e, de outro, embasar os juízos sobre a sua legitimidade”. O socialismo científico de Marx e Engels não partia de ideias abstratas, como o faziam os filósofos idealistas, mas da realidade concreta em que estavam inseridos os trabalhadores.
Ainda que não sejam utilizados de forma plena e desenvolvida, alguns dos principais conceitos da teoria econômica de Marx e Engels foram utilizados no artigo “Esboço de uma crítica da economia política”. Publicado em fevereiro de 1844, esse texto de Engels apresenta alguns apontamentos que seriam posteriormente desenvolvidos de forma brilhante em obras clássicas, como O Capital (1867). Um exemplo da contribuição de Engels se encontra na passagem em que discute valor e preço, ao afirmando:
“O fundamento da diferença existente entre o valor real e o valor de troca reside no fato de que, no comércio, o valor de um objeto é diferente do suposto equivalente que se dá por ele, o que significa que este equivalente não é, em realidade, um único equivalente. Este pretenso equivalente é o preço do objeto e, se o economista fosse honesto, empregaria esta palavra para o ‘valor comercial’. Mas é preciso sempre manter um pouco de aparência de que o preço concorda de qualquer modo com o valor, para que a imoralidade do comércio não se revele cruamente”.
Nas décadas seguintes, além de intensa atividade política, Engels se dedicou também a obras de caráter históricos, como As guerras camponesas na Alemanha (1850) e Revolução e contrarrevolução na Alemanha (1851), bem como a textos de polêmica com outras correntes que atuavam no movimento operário, como Sobre a questão da moradia (1872), um embate com Pierre-Joseph Proudhon, e Os bakuninistas em ação (1873), sobre atuação de uma das correntes mais proeminentes correntes do anarquismo. Nesse período também produziu com Marx uma série de artigos jornalísticos fundamentais para compreender a Guerra Civil nos Estados Unidos (1861-1865).
Engels também produziu um conjunto de reflexões sobre o desenvolvimento dos diversos campos do conhecimento científico, diante dos seus gigantescos avanços no século XIX, mostrando o materialismo dialético como parte desse processo. Na obra Do socialismo utópico ao socialismo científico (1880), Engels afirma:
“o materialismo moderno resume e compendia os novos progressos das ciências naturais, segundo os quais a natureza tem também sua história no tempo, e os mundos, assim como as espécies orgânicas que em condições propícias os habitam, nascem e morrem, e os ciclos, no grau em que são admissíveis, revestem dimensões infinitamente mais grandiosas”.
O tema é retomado, a partir de uma perspectiva diferente, em outras obras, das quais uma das mais conhecidas é o livro Dialética da natureza (1883). Nessa obra, nas primeiras linhas do prefácio, Engels afirma:
“A moderna investigação da Natureza é a única que conseguiu um desenvolvimento científico, sistemático e múltiplo, em contraste com as geniais intuições filosófico-naturalistas dos antigos e com as descobertas, muito importantes, mas esporádicas e em sua maior parte carentes de resultados, realizadas pelos árabes”.
Na mesma obra, Engels relaciona o desenvolvimento do conhecimento científico à dialética, em sua forma moderna, sistematizada por Hegel. Segundo Engels, “as leis da dialética são, por conseguinte extraídas da história da Natureza, assim como da história da sociedade humana. Não são elas outras senão as leis mais gerais de ambas as fases do desenvolvimento histórico, bem como do pensamento humano”.
Engels também demonstra o desenvolvimento do socialismo moderno como parte desse processo, bem como sua relação com as revoluções burguesas ocorridas nos séculos XVIII e XIX. Em Do socialismo utópico ao socialismo científico, Engels afirma:
“O socialismo moderno é, em primeiro lugar, por seu conteúdo, fruto do reflexo na inteligência, por um lado dos antagonismos de classe que imperam na moderna sociedade entre possuidores e despossuídos, capitalistas e operários assalariados, e, por outro lado, da anarquia que reina na produção. Pela sua forma teórica, porém, o socialismo a apresentar-se como uma continuação, mais desenvolvida e mais consequente, dos princípios proclamados pelos grandes pensadores franceses do século XVIII. Como toda nova teoria, o socialismo, embora tivesse suas raízes nos fatos materiais econômicos, teve de ligar-se, ao nascer, às ideias existentes”.
A expressão teórica desse processo encontra seu ponto mais elevado no socialismo desenvolvido por Marx e Engels, síntese dialética entre a prática de luta dos trabalhadores e sua expressão científica. Entende-se, assim, com Engels, que “as causas profundas de todas as transformações sociais e de todas as revoluções políticas não devem ser procuradas nas cabeças dos homens nem na ideia que eles façam da verdade eterna ou da eterna justiça, mas nas transformações operadas no modo de produção e de troca; devem ser procuradas não na filosofia, mas na economia da época de que se trata”.
O legado da trajetória de Engels mostra, por um lado, a necessidade de usar o que há de melhor do arsenal teórico e científico para compreender a realidade a ser transformada, e, por outro, de lutar pela organização do partido revolucionário dos trabalhadores. O conjunto de suas formulações teóricas, construídas em parceria com Marx, procuraram dotar os trabalhadores da ferramenta para derrubar o capitalismo e lutar por uma sociedade socialista.