Barricade The Paris Commune May, 1871, por Andre Devambez (1911)

A Comuna é Imortal: Lênin e Trotsky sobre o Assalto aos Céus de 1871 (parte 1)

A análise materialista e dialética da história nos permite uma compreensão totalizante dos acontecimentos, pois mira holofotes ao passado para uma atuação consequente no presente. Para isto deve servir a historiografia, ser uma escrita destinada à balanços e perspectivas para as gerações, explicando como deram-se os caminhos que nos trouxeram até o momento e como podemos modificá-los.

Neste sentido, após 150 anos, estudar o Assalto aos Céus realizado pela Comuna de Paris de 18 de março de 1871 significa aprender sobre conquistas, possibilidades e, ao mesmo tempo, equívocos que não podem ser repetidos. Acontecimentos que não cessam, tendo muito a dizer para a luta revolucionária em nosso tempo, tal como disse no início do século 20 para os dirigentes bolcheviques das revoluções russas, Vladimir Lênin e Leon Trotsky.

Esta necessária inspiração se resume no fato da Comuna de Paris ter sido a seminal experiência de poder operário, principalmente em um ambiente ávido de revolução, a França. Este evento inaugural da classe trabalhadora como protagonista da história foi amplamente explicado por Karl Marx e, como não poderia ser diferente, também recebeu fundamentais abordagens por Lênin e Trotsky, como aqui veremos.

Lênin em memória da Comuna

O revolucionário bolchevique destinou alguns artigos especificamente sobre a Comuna de Paris. Aqui, iremos nos atentar a três exemplos. O primeiro é a publicação de 14 de julho de 1905, no jornal Proletari1, em seu número 8. Tratava-se de um material semanal e clandestino da fração bolchevique, ligado ao órgão central do Partido Operário Social-democrata Russo (POSDR), criado de acordo com a resolução do III Congresso do partido. O referido artigo chamou-se “A Comuna de Paris e as Tarefas da Ditadura Democrática”, em que Lênin buscou extrair os ensinamentos do processo parisiense para a realidade russa do início do século 20, em especial, sobre uma hipotética participação social-democrata em um governo provisório e para a disputa interna do partido contra os reformistas mencheviques. Isto se mostra relevante quando, no início do artigo, Lênin transcreveu a resolução de uma conferência menchevique que afirmava a impossibilidade de uma revolução na Rússia, sendo realizável somente após revoluções nos países avançados da Europa. A história nos mostrou o contrário, como bem sabemos. Assim, neste debate entre Lênin e, principalmente, Martinov, um dirigente menchevique, o bolchevique construiu suas considerações sobre o papel do POSDR em uma ditadura democrática dos trabalhadores, nutrindo-se da experiência da Comuna de Paris.

Para tanto, Lênin provocou a retórica: “Foi a Comuna uma ditadura do proletariado?” e a respondeu a partir de Engels, na sua introdução à terceira edição da obra de Marx “A Guerra Civil em França”, escrita no ano da Comuna, 1871: “Ultimamente, as palavras ditadura do proletariado voltaram a consumir em santo horror o filisteu social-democrata. Pois, bem, senhores, quereis saber o que é que recorda esta ditadura? Olhai a Comuna de Paris: eis aí a ditadura do proletariado!” (Engels, 1891)2. Contudo, Lênin destrinchou a afirmação de Engels ao explicar que a Comuna de Paris não possuiu um Estado operário constituído, pois não obteve tempo, nem uma composição feita por um partido revolucionário, devido aos membros da Associação Internacional dos Trabalhadores terem sido minoria no governo popular. E apresentou dados: “O Comité Central da Guarda Nacional, por exemplo, era constituído por trinta e cinco membros, sendo apenas dois socialistas (isto é, membros da Internacional)” (Lênin, 1905).

Em seguida, Lênin cita a declaração da própria I Internacional sobre a Comuna, a partir de um órgão de imprensa da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), chamado Jornal Operário de Nova Iorque, em sua edição de 18 de julho de 1874:

A Comuna não foi obra da Internacional; Comuna e Internacional não são o mesmo, mas os membros da Internacional aprovaram o programa da Comuna, levando-o na própria altura muito mais longe do que o seu limite inicial; estes foram, igualmente, os seus mais zelosos e fiéis defensores, pois compreendiam a importância da Comuna para a classe operária.

Com isso, Lênin explicou que a I Internacional realizava certa influência política, mas que a organização da Comuna de Paris era de total controle do Conselho da Guarda Nacional.

Sua proposta com este artigo não era, portanto, explicar a história da Comuna, mas mostrar o exemplo de como se deu a composição de um governo popular. Mostrar quais forças políticas estavam integrando aquela tentativa revolucionária e como isso poderia servir de experiência, em seus erros e acertos, para os russos. Assim, quanto à afirmação de Engels, Lênin completou dizendo que: “não resta a menor dúvida de que Engels, ao chamar ditadura do proletariado à Comuna, se referia unicamente à participação ideológica, e além disso, dirigente dos representantes do proletariado no governo revolucionário de Paris”.

Para a prática russa, isso significava, segundo Lênin, que haveria a participação pequeno-burguesa em um governo provisório revolucionário, mas que o papel de um partido socialista é expressar um programa proletário para o governo, não repetindo os erros da Comuna, que foram, nominalmente: não tomar o Banco Central das mãos burguesas, não empreender uma ofensiva contra as forças da reação e não construir o referido programa socialista para a situação revolucionária. Em suma, os revolucionários deveriam (e devem) realizar o balanço da Comuna de Paris e defender, em seu tempo, a real “ditadura democrática revolucionária do proletariado e dos camponeses” (Lênin, 1905).

Um segundo exemplo de como Lênin analisou a Comuna de Paris encontramos na publicação de 23 de março de 1908, no número 2 da Gazeta Zagranichnaya3, onde tratou das duas tarefas do processo revolucionário: a tarefa nacional contra a invasão prussiana e a tarefa de classe contra o capitalismo. Nisto, explicou como a confusão nacionalista afetou socialistas como Blanqui.

Trata-se de um artigo de ricos aprendizados para nosso tempo, pois sintetiza a posição marxista sobre o nacionalismo na luta socialista, além de explicar como somente o proletariado é capaz de cumprir as tarefas democráticas “que a burguesia só soube proclamar” durante a história. Apresentou também os erros da Comuna, expressos no que ele resume em o “proletariado ter parado no meio do caminho ao não ter expropriado os expropriadores” (Lênin, 1908).

No entanto, o artigo no qual podemos obter uma compreensão mais profunda do que Lênin pensava sobre a Comuna de Paris fora a publicação de 15 de abril de 1911, no número 4 da revista Rabochaya Gazeta4, intitulado “Em Memória da Comuna”, sendo uma homenagem aos 40 anos deste processo. Como o russo relata neste texto, os franceses, ano após ano, comemoram em comícios e manifestações os revolucionários do 18 de março. Já ao fim de maio, mês no qual a revolução foi esmagada em violência e sangue, os parisienses levam coroas de flores às tumbas dos communards, prometendo lutar pelo socialismo e defender o legado daqueles que tombaram no bom combate. A intenção de Lênin não era somente homenagear os camaradas franceses, mas explicar ao proletariado russo porque os trabalhadores de todos os países destinam sua memória, carinho e louvor à Comuna. Isto é, qual herança nos deixou, e assim a detalha.

Lênin frisou que a “Comuna surgiu de maneira espontânea, ninguém a preparou de modo consciente e sistemático”. Assim, o processo surgiu da situação em que a França se encontrava, listando: a guerra franco-prussiana; o desemprego operário; a decadência da pequena-burguesia; a revolta popular contra a burguesia, o Estado e as forças de repressão; a organização do movimento operário e a Assembleia Nacional composta por reacionários. Estas foram as principais causas da ebulição social que deu à Guarda Nacional a direção do rebento da história socialista.

Como em uma aula de história, Lênin relembra que, até 1871, o rumo da sociedade só esteve nas mãos dos latifundiários e dos capitalistas, por meio de seus fantoches políticos. Mas com a Comuna, ocorrida após a fuga do governo Thiers pela ameaça prussiana, o poder passou para as mãos proletárias. Entretanto, Lenin explica que não basta os trabalhadores governarem para que o modo produtivo e toda a cadeia capitalista se transforme em um regime operário. A Comuna tinha de aniquilar o domínio burguês e do capital.

Lênin, acertadamente, demonstra que o movimento revolucionário foi “heterogêneo e confuso”, somando-se às fileiras desde patriotas franceses, que buscavam uma real força contra os prussianos, passando por pequenos comerciantes, que penavam com os aluguéis, até republicanos burgueses, que temiam o retorno monárquico por meio da reacionária Assembleia Nacional. Mesmo assim, reitera que a vanguarda da Comuna fora o operariado parisiense, relativamente influenciado pela propaganda socialista da AIT. A partir disso, Lênin deixa claro que não se pode confiar nestas classes que se apoiam no proletariado em processos revolucionários. Seus interesses são outros, mesmo que aparentam similitudes, mesmo que possuam ódio à burguesia, são suscetíveis aos vacilos em defesa da propriedade privada e toda a sorte de ideologias anticomunistas. Já o proletariado, possuidor apenas da sua força de trabalho e da possibilidade de ser dona do seu próprio destino, não abandonou em nenhum momento a luta pela Comuna.

Abandonada por seus aliados de ontem e sem contar com nenhum apoio, a Comuna tinha de ser derrotada inevitavelmente. Toda a burguesia francesa, todos os latifundiários, especuladores da bolsa e fabricantes, todos os grandes e pequenos ladrões, todos os exploradores uniram-se contra ela (Lênin, 1911).

Mais do que o abandono das classes vacilantes, Lênin aponta uma lição fundamental para o internacionalismo proletário: mesmo em guerra, as burguesias rivais esquecem suas desavenças quando é preciso esmagar o proletariado organizado. Isto ocorreu no processo parisiense e deve servir de profundo aprendizado para os revolucionários de nosso tempo. Além da unidade geral dos defensores franceses da ordem burguesa, o governo de Bismarck, suposto inimigo alemão, fez cantar a liberdade para 100 mil soldados franceses para que deixassem sua guerra e fossem confrontar os trabalhadores da Comuna. Era a coalizão burguesa dos dois Estados em guerra contra o socialismo. O cerco a Paris foi realizado: uma metade feita pelos camponeses atrasados e a pequena-burguesia francesa, a outra metade feita pelo exército prussiano. Nem mesmo as intentonas de Marselha, Lyon, Saint-Etienne, Dijon e outras cidades foram capazes de acudir a capital, fracassando em suas Comunas. Era o fim da revolução na semana sangrenta de 22 a 28 de maio de 1871.

Como dissemos no início, a história nos serve não apenas como fatos para se contemplar, aumentando nossa erudição, mas para nutrir a luta revolucionária no presente, e assim fez Lênin. Desta experiência, com seu artigo, Lênin educou o leitor sobre as condições necessárias para o logro de uma revolução social: “o alto desenvolvimento das forças produtivas e o proletariado preparado para ela”. Infelizmente, estes dois elementos não estavam maduros na Comuna. Embora tenha realizado sua revolução burguesa há praticamente um século, a França, em 1871, ainda era composta, no grosso, pela pequena-burguesia, ou seja, artesãos, camponeses e comerciantes. Não havia, portanto, uma massa proletária, tampouco um partido operário, a vanguarda consciente desta classe, capaz de dirigir a revolução. Os objetivos concretos não existiam, por assim dizer, eram nebulosos. Os revolucionários parisienses não contavam também com grandes sindicatos e cooperativas para a organização das categorias.

Cartaz de recrutamento da Comuna de Paris, 29 de março de 1871

Contudo, Lênin considerava que, antes de qualquer outro problema, o que causou a derrota da Comuna foi a ausência de tempo, deveras precioso em uma situação revolucionária. O tempo é importante para que os trabalhadores possam realizar os balanços do processo e empreender seu programa, qual política irá aplicar com a tomada do poder. Nesta Paris da segunda metade do século 19, o operariado, repleto dos problemas já citados, pode apenas colocar as mãos à obra, enquanto a reação burguesa estava entrincheirada em Versalhes tramando a contrarrevolução com todas as forças possíveis. A defesa era a única política da Comuna e isto não possibilita a criação do novo mundo.

Está certo que foi uma experiência riquíssima para o movimento operário, mas, com tantos problemas, quais as medidas da Comuna que Lênin extraiu como características do processo? O dirigente bolchevique nos aponta: a) a substituição do exército permanente, braço repressor do Estado burguês, pelo armamento dos trabalhadores; b) a efetiva separação da Igreja do Estado; c) o fim do assalariamento dos padres pelo Estado; d) o fim do trabalho noturno; e) a abolição das multas aos operários; f) a promulgação do decreto de ocupação de fábricas abandonadas ou paralisadas pelos capitalistas com o governo popular entregando-as à produção e controle operário; e, g) a remuneração de todos os funcionários do governo não sendo superior ao salário de um operário. Embora fossem poucas, devido aos limites do programa, estas conquistas compunham o fantasma de terror vermelho para o velho mundo burguês, este baseado na exploração do homem pelo homem. Como poetizou Lênin, era a Bandeira Vermelha do Proletariado hasteada na capital da revolução burguesa de 1789, era a evolução da primeira revolução francesa.

O espectro do comunismo fez os generais bonapartistas realizarem a matança de 30 mil pessoas e mais 45 mil presos, executados ou destinados ao trabalho compulsório posteriormente. Ao todo, Lênin apresenta o dado de cerca de 100 mil parisienses a menos para a classe operária. Diante disso, o governo burguês e assassino de Thiers dizia, em sua propaganda pós-maio, que o socialismo havia sido destruído, ao menos por um longo período, mas “de nada serviram os grunhidos desses corvos burgueses”, respondeu Lênin. Não se passou uma década da Comuna e os operários franceses, incluindo alguns que sobreviveram às prisões burguesas, reorganizaram suas forças e voltaram ao combate contra o capitalismo, não só na França, mas em toda a Europa. As gerações seguintes foram enriquecidas pela experiência de 1871, não se acovardaram pela brutal derrota. Pelo contrário, o operariado:

“recolheu a bandeira caída das mãos dos combatentes da Comuna e levou-a adiante com firmeza e valentia ao grito de “Viva a revolução social! Viva a Comuna!”. E três ou quatro anos mais tarde, um novo partido operário e a agitação levantada por este no país obrigaram as classes dominantes a pôr em liberdade os communards que o governo ainda mantinha presos” (Lênin, 1911).

Foi desta forma que Lênin entendeu como o proletariado internacional deveria homenagear os franceses, pois estes não lutaram apenas por suas próprias vidas, mas por um novo mundo. Diante da experiência e da inestimável força demonstrada pelos communards, os russos compreenderam a necessidade de transformar a sua realidade desde 1905 até a revolução bolchevique de outubro de 1917. Assim Lênin buscava educar a vanguarda operária de seu país e de todo o mundo por meio da II e, posteriormente, da III Internacional. Por isso, como disse Lênin com sua habitual contundência, a Comuna é Imortal.

CONCLUI NA PARTE 2.

1 LÊNIN, Vladimir Illych. A Comuna de Paris e as Tarefas da Ditadura Democrática, 1905. Disponível em: <https://www.marxists.org/portugues/lenin/1905/07/17.htm>. Acesso em: 14 de abril de 2021.

2 ENGELS, Friedrich. Introdução à edição de 1891 para A Guerra Civil em França. Disponível em: <https://www.marxists.org/portugues/marx/1891/03/18.htm#tn122>. Acesso em: 14 de abril de 2021.

3 LÊNIN, Vladimir Illych. Enseñanzas de la Comuna. Disponível em: <https://www.marxists.org/espanol/lenin/obras/1908/marzo/23.htm>. Acesso em: 14 de abril de 2021.

4 LÊNIN, Vladimir Ilyich. Para a Memória da Comuna, 1911. Disponível em: <https://www.marxists.org/portugues/lenin/1911/04/28_ga.htm>. Acesso em: 14 de abril de 2021.