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Os erros da guerrilha na luta contra a ditadura militar brasileira

Os 60 anos do golpe no Brasil, protagonizado pelas forças reacionárias da burguesia nativa e do imperialismo norte-americano, proporcionam aos comunistas debates dos mais variados. Da discussão cultural às organizações políticas do pré-1964, da formação da classe trabalhadora ao papel do capitalismo brasileiro no mundo, tratam-se de décadas dolorosas, mas ricas para conhecermos o passado, compreendermos o presente e transformarmos o futuro.

Ao longo dos anos de chumbo, setores da esquerda também lançaram luz ao método guerrilheiro de combate ao capitalismo e suas opressões. Principalmente por estar inserida a um contexto imerso na “guerra fria” e em experiências internacionais de revoltas populares – vitoriosas ou não – que adotaram tal forma de ação, as esquerdas no Brasil arquitetaram tentativas de derrubada do regime militar com esta tática.

Em linhas gerais, importantes compositores da historiografia brasileira apontam para as guerrilhas durante a ditadura militar (1964-1985) como as justificativas ideais para o aprofundamento da repressão através desses 21 anos. Teriam sido elas fatores fundamentais para a generalizada e perversa vigilância e censura à classe trabalhadora, estudantes, artistas e até mesmo parte da pequena burguesia, que também se organizava contra o regime.

Porém, há uma memória social – esse compartilhamento de lembranças e discursos acerca do passado ancorada em interesses do presente, que também pode ser vista como lembranças de um esquecimento1 – ainda presente nas esquerdas que se refere ao guerrilheirismo como a – suposta – maior expressão de luta contra os generais e o imperialismo.

A produção política e cultural, especialmente no fervor dos anos 1983-85, auxiliou nessa concepção onde as guerrilhas teriam responsabilidades diretas na luta pela “democracia”, essa entidade abstrata evocada pelos liberais de esquerda e de direita, mas também pelas organizações e partidos autointituladadas comunistas, quando conveniente às suas memórias. Entretanto, é preciso ter ciência que a luta armada de pequenos grupos no Brasil nunca esteve perto de ameaçar o poder ditatorial, fazendo pesar sobre os trabalhadores organizados não a liberdade, mas sim os “golpes dentro do golpe”.

Vale ressaltar o papel da Doutrina de Segurança Nacional (DSN) da ditadura militar, orientada pela guerra permanente entre capitalismo e comunismo, para o fomento do idealismo à guerrilha. Esta cartada militar para fundamentar a repressão tinha como premissa o combate irrestrito à qualquer subversão e ameaça comunista, externa ou interna. O combate ideológico ganhou, portanto, caráter objetivo e material a partir de 1968, mas também deu sustância narrativa aos guerrilheiros como últimos bastiões da liberdade.

Isso porque a própria tática das classes dominantes sob a ditadura transformou seu combate aos elementos subversivos também em uma repressão psicológica contra todos os cidadãos, que passaram a ser potenciais inimigos do governo autoritário. Estavam em voga todo jogo de espionagem, de gato e rato, de perseguições a qualquer “ação subversiva”.

Entendemos, então, como a própria DSN contribuiu para a construção e utilização dos setores guerrilheiros dessa memória social de seu enfrentamento aos generais. Uma boa síntese desse papel é a definição das Forças Armadas como o partido político da burguesia ao seguir à risca a DSN2.

Assim, apesar de lutadores, incluindo seus discursos comunistas, as ações guerrilheiras geraram para a memória social uma desfiguração sobre o que é democracia para os revolucionários. Como também oculta os reais resultados destas resistências desconectadas com a realidade operária: um grande saldo de mortes de militantes envolvidos (como veremos a seguir) e a guerra permanente das forças armadas, objetiva e subjetiva, contra os trabalhadores urbanos e rurais no país.

Para os guerrilheiros, era positiva a ideia (e continua sendo para as narrativas de memórias das organizações remanescentes ou seus “descendentes”) que estavam poderosos na correlação de forças com os militares, embora isso fosse mentira. Para os militares, era positivo os focos de guerrilha para manter sua guerra contra o povo trabalhador, justificado-a pela necessidade de eliminar o “inimigo interno”.

A alternativa da luta armada no Brasil teve seu auge entre 1967 e 1974 a partir de grupos como a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), Vanguarda Armada Revolucionária – Palmares (VAR- Palmares), Ação Libertadora Nacional (ALN), Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) e o Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Porém, não podemos esquecer da tentativa semelhante de Leonel Brizola, aos fins de 1963, ao construir o Grupo dos Onze, onde os trabalhistas-nacionalistas organizaram células armadas na tentativa de contrapor o golpe militar que se avizinhava em março-abril de 1964.

Brizola também foi um dos responsáveis pela orientação do Movimento Nacional Revolucionário (MNR) ainda em 1964, apoiado pelo governo de Fidel Castro. O grupo apresentou-se com a guerrilha lançada em 1965 sob o comando do coronel Jefferson Cardim Osório em Três Passos (RS), reprimido em poucos dias. O mesmo grupo tentou, novamente, guerrilhas frustradas em 1967 na Serra do Caparaó (MG-ES).

Já em 1967, a criação da Organização Latino-Americanda de Solidariedade (Olas), em Cuba, desempenhou importante papel para o impulsionamento dessa tática no Brasil. O evento contou com a participação de Carlos Marighella no seu momento de rompimento com o PCB, influenciando diretamente nas ações da ALN, sua organização, promotora dos primeiros assaltos a bancos em São Paulo.

Como sabemos, o período militar também produziu uma maior fragmentação da esquerda, onde vários grupos armados ou não passaram a se subdividir como reflexo dos choques do movimento operário e comunista internacional e da política burguesa do Partido Comunista Brasileiro (PCB), apostador da “revolução por etapas” via conciliação com os “setores progressistas e populares” da sociedade. Em condições ditatoriais e com a alternativa guerrilheira, essa fragmentação facilitou o trabalho militar em sua repressão à oposição.

Com guerrilhas majoritariamente urbanas, as ações foram de assaltos a banco, buscando captar fundos para a manutenção das organizações tornadas clandestinas, e as tentativas de sequestros – tendo 4 bem-sucedidas dos embaixadores americano, alemão e suíço e do cônsul japonês – visando a libertação de presos. O saldo positivo gira em torno de 115 presos políticos libertos.

É importante apontar que parte das diversas organizações guerrilheiras corretamente se opunham ao PCB devido a sua política de conciliação com setores da burguesia. Contudo, não conseguiam ultrapassar seus limites organizacionais e políticos para uma ação comunista de classe, decidindo pela guerrilha.

Assim, é certo dizer que 1969 foi o ano de maiores ações guerrilheiras no país: em janeiro, sob o comando de ex-capitão do Exército Carlos Lamarca e da VPR em São Paulo; em junho, com o VAR-Palmares assaltando US$ 2,5 milhões do ex-governador Adhemar de Barros no Rio de Janeiro; em setembro, com a ALN e o MR-8 sequestrando o embaixador Charles Elbrick.

Em 1970, temos também o exemplo da tentativa do VPR de foquismo (teoria guerrilheira inspirada em Che Guevara) no Vale do Ribeira, no estado de São Paulo. Longe de qualquer vitória, foram delatados por trabalhadores que moravam no local de suas instalações insalubres. Acabaram mortos, feridos e famintos. Até 1971 a guerrilha urbana estava liquidada pelos militares e os dirigentes guerrilheiros mortos ou presos.

Porém, quando falamos de guerrilha, o primeiro grande evento que vem à memória trata-se da protagonizada por militantes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) na ação do Araguaia. Salientamos que o PCdoB surge da cisão de 1958 do PCB pela ala devota de Stalin, mas que a partir de 1960 passa a adotar o maoísmo como sua tendência política até o ano de 1978, quando transformou-se em hoxhaísta, inspirado no burocrata nacionalista albanês Enver Hoxha. Esse seu período essencialmente maoísta, que influenciara todas tais organizações guerrilheiras, gestou e pôs em prática a luta na região amazônica.

Vejamos uma boa descrição da situação da maior guerrilha do período, a do Araguaia, empreendida pelo PCdoB:

“Quando o Exército chegou ao Bico do Papagaio pela primeira vez, em abril de 1972, cada um dos 71 guerrilheiros do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) dispunha de um revólver com 40 balas, quatro submetralhadoras (sendo duas de confecção doméstica), 25 fuzis e rifles. Havia também trinta espingardas, quatro carabinas e 63 armas longas – menos de uma arma por combatente. Além de escasso, o armamento era velho e defeituoso, tornando-o pouco seguro e confiável. […] As Forças Armadas chegaram à região com armamentos, aviões, helicópteros e fotos aéreas do local.”3

Tais condições fizeram essa experiência definhar ao ponto de se tornar uma mera caçada dos militares por militantes. A tática de guerra popular prolongada, uma tentativa de emular a revolução maoísta no Brasil politizando as massas camponesas até a revolução, demonstrou-se um retumbante fracasso em 1974, quando, na terceira campanha militar na região, o Exército capturou 64 militantes, passando a classificar os mortos como “desaparecidos”.

Se antes do Ato Institucional n°5, de dezembro de 1968, as organizações guerrilheiras que antes possuíam mais de cem militantes começaram a desmilinguir.

“Os assaltos a bancos, que chegaram a 36 entre março e abril de 1970, diminuíram para 11 entre junho e julho (Gaspari, 2002b). O mesmo ocorreu com os ataques a carros-pagadores: doze entre janeiro e março de 1970 contra seis entre abril e julho. No fim, os guerrilheiros passaram a roubar lojas comerciais, postos telefônicos, boates, farmácias, depósitos de sorvete, casas lotéricas e supermercados. Entre 1970-71, dos doze assaltos praticados pela Vanguarda Armada Revolucionária-Palmares (VAR-Palmares), dez foram em supermercados, sendo que, dos outros dois, um foi numa fábrica de parafusos.”4

A compreensão que os grupos guerrilheiros eram formados, majoritariamente, por universitários e/ou jovens pequeno-burgueses também esclarece a incapacidade destas ações em combater efetivamente a ditadura militar5. Evidentemente uma luta desigual, esses jovens tinham pouca ou nula experiência militar, eram em poucos, e não se forjavam coletivamente como quadros políticos marxistas capazes de organizar e dirigir os trabalhadores.

Tornaram-se vítimas do Estado militarizado ou exilados denunciando o governo brasileiro. Esta ação, por sua vez, contribuiu para a Anistia de 1979, porém, conciliada para que fosse Ampla, Geral e Irrestrita, portanto, também para os criminosos do Estado e seus mercenários.

Em números, a partir da pesquisa exposta pelo Memorial da Democracia (Fundação Perseu Abramo)6,podemos fazer o seguinte quadro de resultados da guerrilha no Brasil:

Tabela: Chico Aviz

“O marxismo distingue-se de todas as formas primitivas de socialismo pelo fato de ele não amarrar o movimento a qualquer forma determinada e única de luta. Ele reconhece as mais diferentes formas de luta, e além disso não as inventa, mas apenas generaliza, organiza, dá consciência àquelas formas de luta das classes revolucionárias que surgem por si no curso do movimento. Absolutamente hostil a todas as fórmulas abstractas, a todas as receitas doutrinárias, o marxismo exige uma atitude atenta em relação à luta de massas em curso, a qual, com o desenvolvimento do movimento, com o crescimento da consciência das massas, com a agudização das crises económicas e políticas, gera métodos sempre novos e cada vez mais diversos de defesa e de ataque.”7

Diante das questões que atravessam a guerrilha ao longo da Ditadura Militar brasileira já apontadas aqui, é crucial uma ressalva: os comunistas não descartam nenhum tipo de ação revolucionária. Porém, como explica Lênin, para a atuação revolucionária acontecer, devemos observar os contextos específicos e a movimentação das massas trabalhadoras.

Dois artigos são excelentes para desvendar esses pontos. O primeiro de Lênin, intitulado “A Guerra de Guerrilhas”, de 1906, e o segundo de Trotsky, chamado “Guerrilheirismo e o Exército Regular”, datado da década de 1920.

As considerações de Lênin tomam como exemplo a revolução russa iniciada na transição do século XIX para o XX, onde aponta que a tática de luta armada – ou guerra de guerrilha – tem maior adesão do lumpenproletariado, dos elementos sem classe definida e de grupos anarquistas. Na mesma linha, Trotsky compreendeu a possibilidade da luta armada quando analisou a Guerra Civil revolucionária na Rússia, após outubro de 1917. O dirigente do Exército Vermelho também realizou a distinção entre o guerrilheirismo e o comumente método de guerrilha que surge de “ações insurgentes semi-espontâneas”.

O guerrilheirismo ou a guerra de guerrilha, segundo Trotsky:

“pode ser um método de operação para unidades móveis bem formadas, por toda a autonomia que gozam, estão estritamente subordinadas a um quartel general operacional.”8

Ou seja, novamente como parte de um processo revolucionário das massas, onde este quartel general operacional significa o Exército operário, que por sua vez é subordinado ao partido e à vanguarda proletária. Nunca uma ação conspiratória de um pequeno grupo que nega o partido e a ação coletiva das massas.

Oposto a isso, as análises e ações das organizações da esquerda “radical” durante o regime ditatorial não tiveram aderência nas massas. Na realidade, o que derrubou a ditadura no Brasil, e em todo o continente, foram as organizações e lutas das massas, a partir de greves, manifestações de multidões e aprendizados colocados em prática pelo movimento operário.

Portanto, não reside na posição dos comunistas contra a guerrilha qualquer defesa do pacifismo pequeno-burguês, mas sim a compreensão de que ações terroristas, sejam individuais ou de grupelhos, não contribuem em nada com o combate ao capitalismo. Nós defendemos, desde já, o armamento geral da classe trabalhadora para que possamos nos proteger da polícia e dos elementos atrasados da sociedade e, principalmente, para impor a ofensiva contra a burguesia. Ou seja, enquanto classe, onde os trabalhadores terão responsabilidade coletiva por suas armas e atos, jamais individualmente com o mero intuito de defesa da propriedade privada.

Com o marxismo também aprendemos que as condições objetivas já amadureceram há muito para o socialismo, mas que apenas tais condições não fazem com que o capitalismo seja definitivamente derrotado. Para tanto, é preciso a construção de um partido comunista revolucionário internacionalista, centralizado, organizado e com influências de massas, capaz de dirigir e ser assimilado pela classe trabalhadora e sua vanguarda, o operariado.

As condições, a classe, o partido e a direção precisam convergir no momento histórico de uma situação revolucionária. E não é um erro afirmar que praticamente todos os elementos objetivos estavam disponíveis naquele período da vida brasileira e mundial, tal como estão ainda mais concretos em nosso tempo com a crise sem precedentes do capitalismo.

Porém, as direções conciliadoras e com graves erros políticos impedem a superação deste sistema. A culpa não é dos trabalhadores. Não foi entre 1964 e 1985, nem o é em 2024.

O proletariado segue produzindo e buscando transformações para esta vida miserável, mas não possui a direção capaz de organizá-la corretamente. Essa é a nossa tarefa imediata e, por isso, convidamos todos a construir a Organização Comunista Internacionalista e a Internacional Comunista Revolucionária sob a bandeira da revolução com os métodos bolcheviques e conectados com a classe trabalhadora e sua juventude!

1 CANDAU, Joël. Memória e Identidade. São Paulo: Contexto, 2011; FERREIRA, Maria Leticia Mazzucchi. Patrimônio industrial: lugares de trabalho, lugares de memória. MUSEOLOGIA E PATRIMÔNIO – vol.II n° 1 – jan/jun de 2009, p. 22-35.

2 BORGES, Nilson. A Doutrina de Segurança Nacional e os governos militares. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves (Orgs.) O Brasil republicano: o tempo da ditadura – regime militar e movimentos sociais em fins do século XX, vol. 4, 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, pp. 14-42.

3 ANGELO, Vitor Amaroim de. Ditadura militar, esquerda armada e memória social no Brasil. XI BRASA Congress, University of Illinois at Urbana-Champaign Panel: The Dictatorship and its Legacy, 06-08 September 2012, p. 8.

4 ANGELO, Vitor Amaroim de. Ditadura militar, esquerda armada e memória social no Brasil. XI BRASA Congress, University of Illinois at Urbana-Champaign Panel: The Dictatorship and its Legacy, 06-08 September 2012, p. 9.

5 RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo, Unesp/Fapesp, 1993.

6 Memorial da Democracia. Luta armada. Disponível em: <https://memorialdademocracia.com.br/card/luta-armada>. Acesso em: 13 de março de 2024.

7 LENIN, Vladimir. A Guerra de Guerrilhas, 1906. Disponível em: <https://www.marxists.org/portugues/lenin/1906/09/30.htm>.

8 TROTSKY, Leon. Guerrilheirismo e o Exército Regular. Organização Comunista Internacionalista, 2020. Disponível em: <https://www.marxismo.org.br/guerrilheirismo-e-o-exercito-regular/>. Acesso em: 13 de março de 2024.