A saúde mental sob ameaça de retrocesso

O Brasil, sob o governo de Jair Bolsonaro, está retrocedendo décadas nas políticas públicas voltadas à saúde mental. O Ministério da Saúde revogou, por meio da Portaria 596, de 22 de março de 2022, o Programa de Desinstitucionalização que integra as Estratégias de Desinstitucionalização da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), no Sistema Único de Saúde (SUS).

O programa é composto por iniciativas para promoção do cuidado integral de pessoas com problemas de saúde mental e problemas decorrentes do uso, abuso ou dependência de álcool e outras drogas e que estejam internadas em hospitais psiquiátricos e demais instituições com caráter de longa permanência há mais de um ano, oferecendo recursos terapêuticos substitutivos à internação, buscando a reinserção e reabilitação psicossocial. Não apenas a proposta e sua estrutura foram derrubadas com uma canetada, como também o mecanismo de financiamento do programa.

Uma semana depois, o Ministério da Cidadania lançou um edital para destinar R$10 milhões a Organizações da Sociedade Civil (OSC) que prestam atendimento como hospitais psiquiátricos (neste caso, nos referimos basicamente às chamadas “comunidades terapêuticas”). A nova medida vai contra as diretrizes do extinto programa, que restringia a atuação de clínicas psiquiátricas com práticas semelhantes a de manicômios. O edital prevê a contemplação de 33 hospitais psiquiátricos, que receberão R$300 mil cada.

A sequência de medidas provocou forte reação das organizações da sociedade civil ligadas a políticas de saúde e à luta antimanicomial, e chegou à Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal em 18 de abril.

Em audiência pública, foi abordada a necessidade imediata de anular ambas as decisões. Segundo a comissão, este edital modificaria a Lei Nº 10.216, de 6 de abril de 2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental, extinguindo a prática manicomial no Brasil.

A reforma da atenção à saúde mental no Brasil foi uma conquista de vários anos de luta, envolvendo trabalhadores, usuários dos serviços, familiares e a sociedade, tendo sido instituído um sistema basicamente ambulatorial e centrado no respeito ao direito das pessoas – ainda que precise ser expandido e que tenha sido cada vez mais precarizado pelo avanço da terceirização e mesmo que pesem os limites de um sistema social e econômico baseado na exploração e na exclusão.

As mudanças impostas pelo atual governo almejam, em última instância, que retornemos àquele modelo manicomial, àquele modelo de exclusão social ao qual as pessoas com transtornos mentais eram submetidas, como forma de, como era no passado, enriquecer empresas e grupos privados que se lançam no ramo da saúde mental sob a roupagem de uma oferta de tratamento, mas que não passa do retorno ao velho e higienista modelo asilar.

Desde 2020, o governo federal tenta revogar diversas portarias no campo da saúde mental. Entre os programas que seriam descontinuados estavam o De Volta para Casa, de reintegração social de pessoas com transtornos mentais, e os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), voltados aos atendimentos de pessoas com sofrimento psíquico ou transtorno mental, incluindo dependentes de álcool, crack e outras substâncias.

Em nota divulgada em dezembro do ano passado, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) denunciou a destinação de mais de R$ 89 milhões, sem qualquer tipo de licitação, a Comunidades Terapêuticas pelo Ministério da Cidadania. De acordo com a Abrasco, as entidades, em sua maioria, são cientificamente leigas no trato com pessoas com distúrbios mentais e muitas delas são associadas a grupos religiosos.

O Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), em nota emitida em 11 de abril, pediram o cancelamento do edital, reafirmando que as discussões sobre a saúde mental devem seguir o rito das instâncias técnicas e políticas do SUS.

O Conselho Nacional de Saúde (CNS) subscreveu a nota do Conass e Conasems e as comissões intersetoriais e assessorias técnicas fariam uma análise detalhada do edital do ministério, com propostas a serem apresentadas para deliberação do pleno do CNS na Reunião Ordinária, nos dias 27 e 28 de abril, em Porto Alegre (RS).

Até o momento desta publicação, não havia qualquer informação a esse respeito no site do CNS.

  • Pelo cancelamento do edital do Ministério da Cidadania para financiamento de hospitais psiquiátricos!
  • Todo apoio à luta antimanicomial!
  • Por saúde pública, gratuita e para todos!

Artigo publicado na 5ª edição do Boletim em Defesa do Serviço Público, no início de maio deste ano.