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Injúria racial e racismo

Artigo publicado no jornal Foice&Martelo Especial nº 15, de 17 de setembro de 2020. CONFIRA A EDIÇÃO COMPLETA.

Nos últimos dias, repercutiu a decisão de uma juíza do Paraná que condenou um homem negro utilizando argumentos de cunho racial, conforme se observa neste trecho da sentença:

“Sobre sua conduta social, nada se sabe. Seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça, agia de forma extremamente discreta os delitos. E o seu comportamento, juntamente com os demais, causavam o desassossego e a desesperança da população, pelo que deve ser valorada negativamente”.

A citação acima é reproduzida por três vezes na sentença que foi objeto de repúdio nos mais variados meios. Do ponto de vista do direito, a pergunta é se a conduta da juíza poderia ser tipificada como racismo ou injúria racial.

A injúria racial está definida no Código Penal da seguinte forma:

Art. 140 – Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:

Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa.

[…]

§ 3º Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência:

Pena – reclusão de um a três anos e multa.

O crime de racismo está previsto em outra norma, a Lei 7716/89, nos seguintes termos:

Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

[…]

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Pena: reclusão de um a três anos e multa.

A Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, de 1965, define em seu Art. 1º a discriminação racial como “toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto ou resultado anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício em um mesmo plano (em igualdade de condição) de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública”.

Já o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, tratado internacional ratificado pelo Brasil, assim como a convenção acima citada, assim dispõe sobre a proibição de todas as formas de discriminação:

Art. 26 – Todas as pessoas são iguais perante a lei e têm direito, sem discriminação alguma, a igual proteção da lei. A este respeito, a lei deverá proibir qualquer forma de discriminação e garantir a todas as pessoas proteção igual e eficaz contra qualquer discriminação por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação.

No caso concreto, não ocorreu apenas a ofensa ao réu acusado de um determinado delito, o que houve foi um tratamento discriminatório ao incluir o elemento raça como constitutivo de uma conduta criminosa. Assim, o fato de ser negro foi utilizado como um fator que resultou na sua condenação.

É mais do que evidente o racismo incrustado nas palavras da juíza, pois suas palavras indicam que os negros, em razão de sua cor de pele, são potencialmente criminosos.

O caráter racista e classista do Estado e, consequentemente, do judiciário sempre produziu decisões seletivas, lotando as prisões com pobres trabalhadores e jovens proletários desempregados e, neste caso, reverbera para que todos vejam como os órgãos do Estado cumprem seu papel de sustentáculo do poder dominante.

A Constituição Federal consagra em seu Art. 5º o princípio da igualdade quando preceitua que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Mas, no Estado burguês, esta igualdade ocorre apenas no aspecto formal e encobre a desigualdade substancial típica da sociedade de classes.

O jurista italiano Alessandro Baratta, expoente da criminologia crítica, dizia que essa “contradição fundamental de todo Direito burguês entre a igualdade formal dos sujeitos de direito e desigualdade substancial dos indivíduos […] se manifesta em relação às chances de serem definidos como criminosos”.

A juíza do Paraná deve sim ser responsabilizada pelo seu ato racista. Por outro lado, sua atitude apenas externaliza uma prática comum de todo o sistema penal, que é essencialmente seletivo. Mas o racismo não pode ser compreendido apenas na esfera da conduta individual desta ou aquela pessoa, seja ou não um agente do Estado. O racismo é elemento constitutivo da própria estrutura da sociedade de classes. Portanto a luta contra o racismo precisa estar associada à luta contra o capitalismo.

Dedicamos este pequeno artigo ao camarada Roque Ferreira, que nos deixou no último dia 4 setembro. Roque, militante da Esquerda Marxista e do Movimento Negro Socialista, sempre foi um abnegado combatente contra o racismo e contra o capitalismo. Nos últimos dias, Roque iniciava uma campanha pela anulação da sentença de que trata este artigo. O legado do camarada Roque Ferreira continuará inspirando nossa luta contra o racismo e contra o capitalismo.

Camarada Roque, presente!