Decreto publicado no dia 26/10 é um ataque ao direito ao aborto já limitado no Brasil /Foto: Pierre Albouy, Nações Unidas

Os ataques do governo Bolsonaro aos direitos das mulheres trabalhadoras: a questão do aborto

No último dia 27 de outubro, o poder Executivo publicou o decreto nº 10.531, que institui a Estratégia Federal de Desenvolvimento para o Brasil no período de 2020 a 2031. Neste documento, encontra-se, no item 5.3.5 o seguinte “desafio”: “efetivar os direitos humanos fundamentais e a cidadania”, cujas orientações incluem:

“- promover o direito à vida, desde a concepção até a morte natural, observando os direitos do nascituro, por meio de políticas de paternidade responsável, planejamento familiar e atenção às gestantes;

– promover políticas de fortalecimento dos vínculos familiares e da solidariedade intergeracional;

– ampliar redes de proteção social às famílias e aos indivíduos, com especial atenção às crianças, aos adolescentes e à população idosa;

– fortalecer os mecanismos de combate ao trabalho escravo e ao trabalho infantil e de acesso ao trabalho decente para todos;”

Depois de dois anos de governo Bolsonaro não é difícil ler esse documento e encontrar uma série de ironias, afinal, esse é um governo que, desde a campanha eleitoral, defendeu e vem aplicando diversos ataques à classe trabalhadora, à infância e às mulheres. Um presidente que afirma que crianças e adolescentes podem sim trabalhar, que só não estupra quem não merece e que vai virar gay porque tomou refrigerante rosa, beira o ridículo ao propor o direito à vida, o fortalecimento de vínculos familiares, a atenção às crianças e adolescentes e o fortalecimento do combate ao trabalho escravo e infantil.

Porém, apesar da infinidade de absurdos cotidianos desse governo, nesse texto vamos nos ater à questão da promoção do direito à vida “desde a concepção até a morte natural observando os direitos do nascituro”. Aqui, aliado à política reacionária desse governo, expressa fortemente pela ministra Damares, juntamente às publicações das portarias nº 2.282 e 2.562 em agosto e setembro desse ano, temos a consolidação de um processo que visa dificultar e eliminar as possibilidades das mulheres realizarem o aborto, mesmo dentro das situações já previstas em nosso código penal.

As portarias mencionadas incluem a necessidade dos profissionais da saúde que realizem um aborto, adotarem o “procedimento de justificação e autorização da interrupção da gravidez”, que deve ser anexado ao prontuário médico da paciente e que, entre outros itens, inclui “o tipo e forma de violência” e “identificação de testemunhas, se houver”. Devendo-se ainda, comunicar o procedimento à “autoridade policial responsável e preservar possíveis evidencias materiais do crime de estupro (…) tais como fragmentos de embrião ou feto”.

Ou seja, esse tipo de exigência busca dificultar o procedimento tanto para os profissionais de saúde quanto para a mulher, fazendo uma série de exigências burocráticas e ainda solicitando que evidências materiais sejam preservadas. Tudo para fazer crescer a dúvida sobre se houve ou não o crime, expondo ainda mais a mulher vítima da violência.

No decreto de 27 de outubro, o governo mantém essa linha de coagir, dificultar e questionar as decisões das mulheres vítimas de estupro e as demais que decidem pelo procedimento amparadas pela lei, e inclui a compreensão da vida desde a concepção, considerando os direitos do nascituro. Direitos estes que estão presentes no Estatuto do Nascituro, proposto em 2007 e ainda em discussão, que afirma que “nascituro é o ser humano concebido, mas ainda não nascido”. Portanto, através desses decretos e portarias, apresenta-se um conceito de vida que se sobrepõe aos direitos da mulher. Trata-se uma questão científica e jurídica pelo víeis religioso através de um argumento abstrato de “defesa da vida”.

Vida essa que, quando torna-se criança e adolescente, pode ser ceifada pelas “balas perdidas” e quando consegue atingir a vida adulta, torna-se estatística entre os mais de 150 mil mortos pela “gripezinha” e se, essa vida atinge a velhice, pode morrer à míngua sem aposentadoria, sem saúde pública, sem direito ao lazer e à cultura. Como falar em “paternidade responsável” e em “família” se as famílias dos trabalhadores são destroçadas pela violência, pelo desemprego, pela ausência de direitos, pela justiça burguesa, pelo racismo e pela barbárie cotidiana?

Em 2018, antes de se tornar ministra, Damares defendeu a importância da aprovação do Estatuto do Nascituro e o pagamento do que ficou conhecida como “bolsa estupro”, para auxiliar financeiramente a mulher violentada e que mantenha a gravidez. Ainda em outubro deste ano, o governo, representado pela ministra Damaras e Ernesto Araújo, assinaram, junto com Estados Unidos, Egito, Hungria, Indonésia e Uganda, a Declaração de Consenso de Genebra, cujo teor inclui a promoção do “papel da família como unidade fundamental da sociedade”. Na ocasião, Ernesto Araújo demonstrou explicitamente a política do governo federal em relação ao direito da mulher ao aborto:

“Rejeitamos categoricamente o aborto como método do planejamento familiar, assim como toda e qualquer iniciativa em favor de um direito internacional ao aborto ou que insinue esse direito ainda que veladamente.”

Novamente: nada mais hipócrita e nefasto, afinal, sabemos bem que às mulheres burguesas esse direto está garantido, desde que tenham condições de pagar e seguir suas vidas. Às mulheres trabalhadoras cabe a procura por profissionais de competência duvidosa e baratos, colocando-se em risco e morrendo todos os dias. Esses que falam em “planejamento familiar” e em defesa da vida são os mesmos que defendem a privatização do SUS, atacam as escolas por tratarem de questões ligadas à educação sexual, dificultam o acesso ao aborto mesmo em casos previstos em lei e armam, sorrateiramente, o linchamento público de profissionais de saúde e crianças estupradas que buscam pelo procedimento a que tem direito.

Cabe a nós, mulheres trabalhadoras, nos organizarmos em defesa do direito ao nosso corpo, ao aborto em qualquer situação e dos direitos sociais que foram duramente conquistados em séculos de lutas. A luta pelo direito ao aborto é uma luta histórica e mundial, e cabe a nós derrubarmos esse governo reacionário, tomando o poder em nossas mãos.

  • Pelo direito ao aborto seguro e gratuito!
  • Que cada mulher decida sobre sua vida!
  • Somente como uma classe trabalhadora unida, as mulheres e os homens trabalhadores juntos derrotarão esse governo!
  • Somente a derrubada do capitalismo garantirá a todas as pessoas seus direitos!

Fontes:

<https://exame.com/brasil/damares-alves-defende-bolsa-a-mulheres-estupradas/>

<https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=DB32556DB6516B26B80A1D84EE0E8745.proposicoesWebExterno2?codteor=443584&filename=PL+478/2007>

<https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-2.561-de-23-de-setembro-de-2020-279185796>

<https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-2.282-de-27-de-agosto-de-2020-274644814>

<https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-10.531-de-26-de-outubro-de-2020-285019495>

<https://www.gov.br/pt-br/noticias/assistencia-social/2020/10/brasil-assina-declaracao-sobre-defesa-do-acesso-das-mulheres-a-promocao-da-saude>