Os governos do PT e o voto crítico em Lula

A situação política tem mostrado bastante efervescência nos últimos anos, acumulando tensões e piorando vertiginosamente as condições de vida da classe trabalhadora. Essa situação, entretanto, não é exclusividade do Brasil. Inúmeros exemplos lá fora poderiam ser mencionados, mas não é o foco deste artigo. Em vários contextos, não é raro vermos reviravoltas inusitadas, mudanças repentinas de conjuntura. Casos que podem gerar confusão se não compreendidos dialeticamente os interesses de cada classe em disputa e, principalmente, quais são e como se colocam as peças disponíveis no tabuleiro da luta de classes. Esta é a principal perspectiva para entender o que significa a aposta em Lula para as eleições de 2022 e os acontecimentos anteriores, atuais e muito provavelmente os futuros também.

Inicialmente não há como entender o papel que os governos do PT jogaram no passado e o que Lula está sendo chamado a fazer agora sem darmos o pano de fundo do que aconteceu e do que não aconteceu durante os mandatos Lula e Dilma. Ressaltamos que nosso objetivo não é inflamar alguma polêmica trivial entre militantes por mero esquerdismo denuncista. São constatações imprescindíveis para entendermos o que está colocado para a classe trabalhadora hoje e no próximo período.

14 anos de colaboração de classes

O Partido dos Trabalhadores tem origem operária e, ainda hoje, a maioria dos eleitores e militantes de base são trabalhadores e trabalhadoras organizados em sindicatos, associações de bairro, organizações estudantis etc. No entanto, o traço mais constante dos governos que encabeçou foi uma tentativa de conciliação entre dois pontos antagônicos: aumentar o lucro de grandes corporações particulares e agradar a opinião pública com contrapartidas sociais. Por isso, caracterizamos suas gestões como governos de colaboração de classes

Dentre as corporações beneficiadas, estão a gigante do agronegócio JBS (apesar da bandeira da reforma agrária ser conhecida nas propagandas eleitorais); o antigo Grupo Kroton de Educação (hoje, Cogna Educação); a empreiteira Odebrecht; bancos particulares como Santander e várias outras. Essa conciliação consiste em garantir as regalias fiscais ou de injeção bruta de dinheiro público via BNDES a esses bolsos enquanto provém medidas como ProUni, Fies, Bolsa Família, entre outros, nos 2 a 3% de vagas disponíveis nas universidades públicas, Minha Casa, Minha Vida, facilitação de acesso ao crédito, entre outros.

Essas políticas são muitas vezes compreendidas como melhorias na condição de vida, fruto de uma suposta orientação de esquerda do governo. Na verdade essas medidas tem efeitos paliativos apresentados como políticas públicas. São intencionalmente ineficazes justamente porque suas funções não vão além de passar uma imagem humanitária à assassina opressão de classe que o capitalismo impõe à classe trabalhadora.

Isso não só limita sordidamente o orçamento às pastas sociais (estamos falando de migalhas), como as torna estéreis em natureza. Além do mais, sua conformação ao quadro institucional atual encontra, por exemplo, um teto de gastos (EC nº 95). Até mesmo as migalhas são repartidas aos abutres do mercado financeiro através de licitações e concessões às Organizações Sociais “sem fins lucrativos”. Em outras palavras, existem para manter intactas as origens da desigualdade e apresentá-las em “níveis socialmente aceitáveis” (mas que garantem muito lucro mesmo assim).

Essas “soluções” dentro do capitalismo são medidas que se aproximam às ideias keynesianas e do economista liberal Milton Friedman. Além dessas supostas políticas públicas, devem ser mencionados outros ataques abertos, como as privatizações de aeroportos, concessões de rodovias e pedágios. Devemos citar também a manutenção das privatizações do governo FHC como a da Vale, além do leilão de Belo Monte em 2010, o leilão do campo de pré-sal em Libra em 2013. E sem deixar de fora a reforma da previdência já praticada em 2003 e os ataques também perpetrados por Dilma no fim de seu mandato. Ou seja, com ou sem perfume, qualquer caminho leva inevitavelmente ao lucro particular, que é a prioridade de qualquer governo que se propõe a ser um bom gestor do capitalismo.

Como explicar então que estejamos presenciando um sentimento de nostalgia que Lula, expresso com o slogan “O Brasil feliz de novo”? Durante o período de gestões petistas, o país experimentou um período de crescimento econômico a partir de 2003, coisa que o contexto do capitalismo mundial permitiu à época. Essa situação conjuntural deu alguma sensação, também distorcida, de desenvolvimento social devido em grande parte às políticas de poder de compra, como a possibilidade de financiar uma geladeira, um carro ou uma casa através de instituições de crédito públicas e privadas.

Tratava-se, porém, de uma falácia orquestrada pela mão do mercado que simplesmente tomou tudo de volta, o que já era bem previsível. Poder de compra financiado por crédito particular nunca significou desenvolvimento social, exceto se interpretado no campo das ilusões da política de conciliação de classes. No mesmo sentido está um dos mais lembrados feitos do governo Lula, quando anunciou o pagamento integral da dívida externa (ao FMI), como se a dívida estivesse definitivamente quitada e paga com o crescimento do PIB.

Primeiramente, o FMI nunca deveria ter recebido nem um centavo de dinheiro público já que a origem dessa dívida é fraudulenta. Não foi a classe trabalhadora que assumiu e não há razão alguma para que fosse paga por nós, trabalhadores. Mas para deixar ainda mais sórdido, foi “paga”, ou melhor, comprada por títulos de dívida pública interna. O contexto foi de bancos particulares, entidades financeiras e acionistas obtendo essas ações e que até hoje parasitam o dinheiro público em juros e amortizações completamente irracionais, que até superam o que é pago formalmente. É inclusive essa dissimulação cínica que compõe o desvio de 40 a 60% do orçamento da União aos bolsos particulares todos os anos.

A questão é que todo esse desmonte, esse dano incomensurável, teve como agentes principais, além da Ditadura Militar, não apenas Michel Temer, Jair Bolsonaro, FHC, e Itamar Franco, como sabemos. Há grande responsabilidade dos governos Lula e Dilma, por sinal, o maior período de mandatos sucessivos. Se a decisão política de não revogar as privatizações dos governos anteriores já gera em si uma enorme responsabilidade, avançar em novas reformas, privatizações, concessões e leilões diz muito claramente sobre de que lado jogou os governos do PT no jogo das finanças. Isso aponta com certa segurança o papel que a burguesia chama Lula a jogar e que, pelas alianças, há claros sinais de que tenha se comprometido a cumprir.

Temer e Bolsonaro a serviço da burguesia

Ao contrário do que se alardeou em várias organizações de esquerda, as eleições de Trump, Boris Johnson e Bolsonaro não significaram exatamente uma “vitória do fascismo” no mundo. Foi um período com manifestações fortíssimas em incontáveis países, vizinhos do Brasil inclusive, e que deram as caras aqui também. Os atos do “Ele Não” ainda em 2018 já foram um marco, ganhando mais força no carnaval com o Fora Bolsonaro.

Em 2019, o maior ato estudantil depois das Diretas Já! foi registrado no 15 de Maio, seguido pelo 14 de Junho. Outros atos pelo Fora Bolsonaro, breque dos entregadores de aplicativos e outros também mostraram que havia grande insatisfação acumulada nas ruas e repulsa ao governo Bolsonaro (todos esses atos aconteceram apesar do PT e da CUT, que poderiam ter mobilizado e inclusive organizado greves gerais, mas decidiram não fazer).

A questão é que Bolsonaro e seus similares de outros países foram eleitos, por um lado, por se apresentarem falaciosamente contra o sistema. Porém, por outro, subiram ao governo por não existir uma alternativa que atacasse o sistema de forma tão enérgica e mais consciente. Isso conquistou o voto de confiança de vários trabalhadores. A burguesia, por sua vez, avaliou que, embora essas peças não fossem das melhores, seus planos de governo eram mais compatíveis às contrarreformas e ataques do que as alternativas com apelo mais democrático.

Lula vinha como favorito para as eleições de 2018, mas foi tirado da corrida eleitoral pelas aberrações jurídicas que foram os processos em que foi condenado. É perda de tempo entrar no assunto das leis processuais desrespeitadas, bastando resumir que a burguesia, que muito enriqueceu com Lula durante seus dois mandatos, precisava de uma peça mais útil para o momento. No mesmo roteiro Michel Temer assumiu no lugar da Dilma e aplicou tudo que conseguiu com a ajuda da Câmara e do Senado. Bolsonaro assumiu e sua atuação vergonhosa em vários aspectos incomodou a burguesia, que passou a avaliá-lo como peça incompatível para prosseguir os ataques.

O sistema continuou em crise, agora agravado pelos tropeços do governo e a atuação miserável na pandemia (mas que também garantiu lucro de patenteadoras de vacinas como a Pfizer e corporações que venderam kit covid, como a Prevent Sênior). No entanto, as crises do capitalismo não decorrem apenas de um ou outro mandato. A nível mundial, a crise de especulação dos subprimes que estourou em 2008 em Wall Street foi marco de um período em que o capitalismo ainda não conseguiu se manter de forma estável. Menos ainda com os planos de refinanciamento de dívida pública que o FMI despejou como tentáculos na América Latina, a exemplo do Plano Brady.

Para a burguesia, Bolsonaro e sua equipe claramente não estão à altura de gerir uma crise dessa proporção de modo que a agrade, mesmo com Paulo Guedes na retaguarda. Portanto, do lado da burguesia, muito se explica que todos os processos contra Lula (aberrações jurídicas) foram repentinamente declarados nulos como em um passe de mágica, pelo mesmo judiciário que o prendeu e a que se rendeu dizendo “acreditar na justiça”.

Essa mágica e essa postura do Lula não são surpreendentes se entendermos que ele é, hoje, o nome mais cotado para cativar a opinião pública e mais aliados para manter o velho compromisso de salvar os bancos e a burguesia nacional da própria crise. De fato, tem uma certa experiência no assunto e sabia que possivelmente a burguesia precisaria dele de novo.

O que se coloca para 2023

Como já declaramos, não orientamos o voto nulo num suposto segundo turno entre Lula e Bolsonaro, visto que este representa, em sua natureza, algo que precisa ser incinerado na lata de lixo mais próxima. Orientamos o voto para derrubar Bolsonaro, o que não afasta a necessidade histórica de combater quaisquer ilusões que possam se gestar em torno de Lula (e isso é uma tendência das direções de esquerda).

A reviravolta de inserir Alckmin, adversário de longa data, como seu vice também é entendível se vermos através do materialismo histórico e dialético, uma ótica que não é uma conjectura enclausurada às bordas dos livros, mas um prisma fundamental para destrincharmos todas as cores variantes do que a princípio nos parece apenas branco. É através dele que entendemos o azul virando magenta e o amarelo se perdendo no vermelho, por exemplo.

O que se desenhou foi uma “união democrática”, uma federação com representantes da burguesia mais compromissados com a democracia (burguesa) e a estabilidade do sistema, estabilidade cuja prioridade é manter segura a margem de lucro longe de qualquer agitação social. No entanto, não vivemos em crescimento econômico como em 2003, o capitalismo ainda está em crise, com guerras, tensões diplomáticas, bloqueios econômicos e indicadores sociais despencando. Não há contexto confortável para conciliação de classes, nem mesmo para a burguesia. 

Se em várias oportunidades os governos do PT não moveram quaisquer esforços para revogar ataques aos direitos da classe trabalhadora, absolutamente nada garante que agora o farão e isso ajuda a entender por que Lula se recusa a levantar essa bandeira. Seria mais sincero falar que tal medida desagradaria a burguesia ou que “não está no cardápio do governo”. Essa foi a resposta dada por Lula em 2003, ao recusar apoio ao Movimento de Fábricas Ocupadas, iniciativa política impulsionada pelos camaradas da Esquerda Marxista que se estendeu a cerca de 30 fábricas no começo do mandato petista, que exigia a estatização das fábricas, mas continuando a produção sob controle operário. Lula recusou-se a apoiar o movimento na época porque o cardápio que tinha em mãos era o da burguesia. Com Alckmin de vice, a chapa de Lula parece não ter mudado o menu.

No entanto, há de se colocar da forma mais clara e reiterar quantas vezes forem necessárias que derrubar Bolsonaro é a tarefa no momento nos terrenos que estiverem disponíveis, onde se inclui a eleição presidencial. O que a realidade material mostra é que o grande anseio para que se derrote Bolsonaro nas eleições com o voto em Lula parte majoritariamente de um sentimento de ódio de classe, mais ou menos consciente, mas contra seus ataques, seus aliados da burguesia e/ou suas declarações repugnantes. Então é um erro considerar que votar em Lula por esse motivo seja um voto na burguesia simplesmente pelo fato do PT ter atendido interesses burgueses em seus governos.

Além dos fatores do voto, materialmente é a candidatura de Lula a via eleitoral disponível no momento e com grandes chances de êxito. Esses dois pontos nos permitem perfeitamente chamar o voto crítico em Lula e continuar o combate pelo socialismo nas ruas, inclusive contra ataques de seu provável governo, sem problema algum. Seria puro idealismo negar essa realidade e abrir mão da tarefa que está posta aos marxistas por uma desconexa e saudosista defesa de princípios. Ao ignorar este fator, crucial na atual configuração da luta de classes, as “vias alternativas” como o Polo Socialista Revolucionário, do qual fazem parte o Movimento Revolucionário dos Trabalhadores (MRT) e o Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados (PSTU), se mostram um movimento profundamente sectária e ultra-esquerdista.

É nas maiores concentrações da classe trabalhadora onde os revolucionários devem intervir porque aí contém força mais do que suficiente não só para derrotar Bolsonaro na eleição, mas arrancá-lo do poder, lançá-lo à lata de lixo da história e virar as relações de poder do modo de produção capitalista abrindo uma situação revolucionária, ainda que no momento esta força encontre o fator limitador da influência de suas direções traidoras. Aliás, é justamente aí que a intervenção dos revolucionários pode conduzir a crítica do movimento de massas a desmascarar suas direções traidoras e apontar a destruição do sistema capitalista e seu Estado burguês.

Ou seja, de um jeito ou de outro, através ou fora das eleições, é a mobilização da classe trabalhadora que se torna fator determinante para resolver os problemas que enfrentamos, infinitamente mais nas ruas do que nas urnas. É uma mobilização que as seitas que se proclamam vanguarda revolucionária sem a confiança e sem a concordância política da classe trabalhadora em seu programa não é capaz de conduzir nem nos melhores cenários.

O que determina a política não é a decisão individual de um ou alguns. Reformas como a Lei da Mordaça foram derrubadas por pressão popular. O anúncio de cortes na educação em 2019 teve que voltar atrás por medo que os protestos que ecoavam na América Latina ganhassem proporções incontroláveis ao chegar no Brasil. A ideia de “dar os anéis para não perder os dedos” acua a classe dominante e períodos de crise agravam qualitativamente a situação ao ponto de Donald Trump, o então presidente da matriz do capitalismo mundial, se esconder em um bunker da Casa Branca com medo dos protestos desencadeados pelo assassinato de George Floyd.

Em termos claros, o fator determinante de qualquer vitória da classe trabalhadora não é a assinatura ou o voto em alguma lei, mas a mobilização e a força dos que pressionaram a assinatura: as massas, a classe trabalhadora em luta. Essa é a enorme importância que as manifestações de rua sempre tiveram.

Mas essa não é a única pressão em jogo. Considerando a vitória de Lula e Alckmin, a burguesia também pressionará o governo a cumprir seu compromisso e assim se configuram as peças no tabuleiro: De um lado, as massas trabalhadoras brasileiras e sua vanguarda com consciência de classe, que também irá buscar fazer prevalecer seus interesses imediatos e históricos; Do outro, a burguesia que sempre contou com os governos do PT para lucrar longe da mira da insatisfação popular através de seus programas e medidas paliativas. Lula conseguirá servir a dois senhores? Os 16 anos de gestão petista anterior mostram que a resposta é não. 

Longe de propormos esperar sentados que Lula tome uma atitude, reafirmamos que a única força capaz de fazer Lula atuar em favor dos trabalhadores, contrariando Alckmin, a federação e toda a burguesia que confiou-lhe como atual melhor gestor do capitalismo no Brasil, é a pressão nas ruas e apenas ela, ressaltamos. É o que está previsto nas próximas páginas apesar da política de colaboração de classes do PT. Ou mesmo contra ela, se novamente enviar as forças de repressão às ruas como em 2013 e outras ocasiões. As questões a serem respondidas são até que ponto o capitalismo vai massacrar as condições de vida da classe trabalhadora, quem ajudará a superá-lo e quem será varrido junto com ele. O parâmetro dessa definição depende exclusivamente da atitude da classe trabalhadora.