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Processo de adoecimento de professores amplia durante pandemia

Não me dão pena os burgueses vencidos.
E quando penso que vão a dar-me pena,
aperto bem os dentes e fecho bem os olhos.
Penso em meus longos dias sem sapatos nem rosas.
Penso em meus longos dias sem abrigos nem nuvens.
Penso em meus longos dias sem camisas nem sonhos.
Penso em meus longos dias com minha pele proibida.
Penso em meus longos dias.

(Nicolás Guillén – poeta cubano)

As mudanças no mundo do trabalho e a constante necessidade dos capitalistas de manter sua taxa de lucro, crise após crise, já vinha ocasionando uma série de consequências na vida da classe trabalhadora antes da pandemia.

Uma das consequências, o aumento da produtividade sem em contrapartida melhorar as condições de trabalho, já estava levando ao sofrimento e adoecimento vários trabalhadores, das mais variadas categorias. Além disso os governos e patrões colocaram em ação uma série de campanhas e propagandas culpabilizando o trabalhador pelos seus problemas de saúde. Ao mesmo tempo em que aumentam as exigências relativas ao cumprimento de metas nos ambientes de trabalho, cobra-se ações individualizadas, como atividade física por exemplo, que os mantenham saudáveis e produtivos.

Marx já chamava atenção para os prejuízos causados aos trabalhadores quando escreveu: “Certa deformação física e espiritual é inseparável mesmo da divisão do trabalho na sociedade. {…} ataca o indivíduo em suas raízes vitais…” (MARX, 2008, p.418). Essa citação foi retirada de O Capital, obra escrita no século 19, quando o capitalismo dava os seus primeiros passos. Em pleno século 21, pode-se afirmar que o capitalismo mudou algumas de suas características, aprofundou o processo de exploração do trabalho, gerou populações de desempregados, aumentou a distância entre as classes burguesa e trabalhadora, desencadeou um ritmo de trabalho alucinante, destruiu as famílias, exacerbou o individualismo e a competição e ampliou o rol de drogas e doenças.

Tudo isso produz muito sofrimento e contribui muito no processo de adoecimento da classe trabalhadora no geral. Queremos dentro dela, fazer um destaque aos professores e é a eles que vamos nos dedicar a partir de agora.

Com efeito, a educação está envolvida pelas transformações no mundo do trabalho que refletem cada vez mais na organização dos sistemas educativos. Os professores por sua vez, sejam eles de escolas públicas ou privadas, sofrem cada vez mais com menos investimentos, que se traduzem: em ataques aos direitos e condições de trabalho; na forma como desempenham seu trabalho; nas relações com as chefias, com os colegas de trabalho, com as famílias dos estudantes e com os próprios estudantes; na forma e capacidade de se organizarem; nas ameaças de demissões; no aumento do número de alunos em sala; na ampliação da carga horária; etc. 

Em especial nos últimos quinze anos, os professores já se encontravam entre as categorias de maior número de afastamentos do trabalho em função do adoecimento e os transtornos mentais já eram as maiores causas de afastamentos. Não são poucos os estudos que apontavam também outras questões: problemas com a saúde vocal, estresse laboral, saúde física e emocional, condições de trabalho, relações pessoais, relações de poder, entre outros. Destacava-se também a síndrome de Burnout ou mal-estar docente, que pode ser resultante da insatisfação entre o que se exige, o que se planeja e o que se consegue atingir, mas que também pode ser motivado pelas relações e organizações do trabalho. Olhando com mais atenção para esses estudos, nota-se que mesmo quando não fazem a associação direta entre condições de trabalho e adoecimento, mostram que a organização do trabalho do professor contribui muito para esse processo e indicam uma necessidade urgente de se repensar as políticas públicas, o espaço escolar, as relações de poder, as condições de trabalho e o próprio sistema vigente.

Agora com a pandemia, já se amplia a preocupação com o processo de adoecimento dos trabalhadores dos mais variados setores. A Organização Mundial da Saúde (OMS) chegou a divulgar um guia com cuidados para saúde mental durante a pandemia, destacando as consequências psicológicas e mentais do novo coronavírus. Em outro artigo, a OMS destaca que o impacto da pandemia na saúde mental das pessoas já é extremamente preocupante. Também associações, sindicatos e universidades estão produzindo materiais, lives, entrevistas com psicólogos e outros profissionais da saúde, alertando para os perigos do adoecimento mental. E os professores estão entre as categorias que mais preocupam. Em podcast, a Folha de São Paulo aborda cuidados com a saúde mental do professor em tempos de pandemia.

Foto: Alexandra Koch, Pixabay

Para a grande imprensa, os professores estão há um tempão em casa sem fazerem nada. Ganhando por nada. Somente quem é professor sabe o que está representando este momento. Como é mais difícil entender o complexo trabalho pedagógico com todos os seus envolvimentos, para quem não é professor. Muitas vezes nem os familiares conseguem. Mas claro, na nossa sociedade, parece que todo mundo é pedagogo, que todos conhecem bem o processo ensino-aprendizagem, todo mundo consegue dar pitacos na educação, empresários, jornalistas, analistas de todos os tipos, mas é importante lembrar que isso acontece porque querem desqualificar o trabalho, para poder colocar a população contra os professores,  e assim mais facilmente aplicar as políticas de privatização e cortes de direitos. 

Os professores, como todos os trabalhadores, foram pegos de surpresa. E como todos, estão pagando o preço pela irresponsabilidade dos governos que não quiseram implementar uma política verdadeiramente em defesa da vida. Sabemos que no sistema capitalista a vida não está entre as prioridades. Mas nem o mínimo foi feito. Vimos que com todo o avanço da ciência e da tecnologia, que podiam ter sido usadas pelos governos pelo menos para amenizar tanto sofrimento, continuaram a serviço do lucro dos grandes empresários. 

Com as escolas fechadas (como se isso por si só representasse um grande feito), estudantes e professores tiveram a árdua tarefa, da noite para o dia, de se reinventarem. Palavra bonita quando se tem a liberdade de pensamento e a estrutura necessária. 

Os professores, sejam eles de escolas públicas ou particulares pois apesar de ambas possuírem estruturas diferentes, não estavam preparados e em função da pandemia também não tiveram tempo para este preparo. Tiveram que adaptar o planejamento majoritariamente presencial às aulas online. A falta de familiaridade com o chamado mundo virtual, com os aplicativos e plataformas gerou muita apreensão. As secretarias municipais e estaduais, a fim de dar uma resposta à sociedade pelo pagamento dos salários e as escolas particulares justificando as mensalidades, impuseram cobranças de trabalhos de diversas atividades que antes não faziam parte da rotina dos professores. Muitos acabaram se transformando em máquinas de produção de exercícios. Outros se esgotando preparando material online e depois adaptando este mesmo material para impresso, para atender estudantes sem acesso à internet como relata a professora Márcia Luzia dos Santos, alfabetizadora da Prefeitura Municipal de Florianópolis.  Nesta troca de materiais, ainda correndo o risco de contaminação. Tudo isso gera ansiedade que pode evoluir para doenças mais graves.

Soma-se: o medo e a insegurança de muitos professores de perderem o emprego e/ou a renda; a atenção e os cuidados de segurança consigo e com seus familiares para não se contaminarem; para muitos, a administração delicada das relações com os filhos em casa; a perda de amigos e/ou familiares para a doença; o impedimento de contato e trocas afetivas com colegas de trabalho e amigos; enfim, são várias questões que configuram um desgaste emocional muito grande.

Ainda sobre as atividades online, é bom destacar que em muitos lugares do país, as secretarias em especial das escolas públicas, antes da pandemia, estavam investindo milhões em compras de tablets, aplicativos e outras ferramentas, com um discurso de que era preciso inovar no processo ensino aprendizagem, que os alunos não estavam conseguindo aprender matemática e ciências, porque os professores não estavam ensinando direito e que a internet seria a grande sacada. Então várias empresas foram contratadas para dar formação aos professores. Os professores por sua vez diziam, tem que ir devagar, as ferramentas eletrônicas devem ser importante apoio no processo ensino aprendizagem, mas muitos dos nossos alunos não têm acesso à internet ou é precária, muitas escolas não têm acesso à internet ou é precária, e em muitos casos não foram ouvidos. Milhões foram gastos com empresas. Esta situação toda já não estava indo bem e agora na pandemia ficou escancarada: falta estrutura na quase totalidade das escolas públicas. Falta estrutura de internet na quase totalidade das casas dos estudantes das escolas públicas e como não poderia deixar de ser, falta estrutura adequada na casa da maioria dos professores. E aí veio o grande problema: como dar aulas online com esta situação? Para quem olha de fora, talvez não perceba, mas os professores sofrem quando o resultado do seu trabalho não é adequado, não é próximo daquilo que colocou como objetivo, quando não atinge a todos, enfim quando o resultado do trabalho causa frustração. E este sofrimento e frustração podem representar geradores também de adoecimento.

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Os professores se preocupam em planejar atividades que mantenham os alunos estimulados, pois isso é inerente à função. Mas em meio à pandemia, esta tarefa tem exigido muito mais tempo, justamente por tudo que foi exposto anteriormente. E assim a cabeça não desliga. Tomando banho e planejando, fazendo comida e planejando, pensando em como fazer para atingir o aluno, como produzir algo atraente. Tanta dedicação mesmo sabendo que muito pouco das atividades propostas terá retorno, em função da não ou precária conexão, pelas dificuldades que as famílias têm de orientar seus filhos, até porque não é função delas, pela total falta de estrutura e ambiente para estudo em casa, entre tantos outros motivos. À carga de trabalho soma-se o fato de que agora as famílias possuem acesso ao WhatsApp, e-mail, número de telefone, e tudo mais dos professores. E não por maldade, ficam em qualquer horário pedindo explicações, tirando dúvidas, pedindo orientação etc. Os professores trabalhando em casa, na grande maioria, trabalham o tempo todo. A jornada ampliou demasiadamente. Presencialmente explica-se, orienta-se, tira-se dúvidas, avalia-se de forma coletiva. Agora isso é feito, na maioria dos casos de forma individualizada, o que faz com que os professores estejam o tempo todo à disposição. Esta sobrecarga de trabalho poderá potencializar os já terríveis processos de adoecimento dos professores.

Se não bastasse os problemas todos do momento, os professores estão sofrendo com o futuro: como será a volta? Os noticiários mostram vários países permitindo que as escolas voltem ao presencial, logo depois avaliam a retomada dos contágios e acabam por terem que voltar atrás. As constantes mudanças na legislação; as falas dos secretários, prefeitos e governadores, que hora dizem aos pais que o ano de 2020 não será contado e poucos dias depois dizem que tudo que for feito agora valerá na carga horária; os professores não são chamados a se manifestar, ficam sabendo pela imprensa que tem grupos escrevendo “Protocolos de retorno das atividades”. A grande pergunta que tira o sono, o que está sendo feito remotamente valerá na contagem dos dias letivos? Terão que refazer? E assim, sem respostas, os professores sofrem com ansiedade. 

Muitos outros aspectos precisariam ser pontuados, mas longe de querer dar conta do impossível, o central é compreender que se esta categoria formada por professores já estava com um processo de adoecimento bastante grave antes da pandemia, agora como resultado dela e pós ela, é bem provável que tenhamos, um processo de adoecimento em massa de professores. E aí? Os professores irão simplesmente constatar isso? Vão achar que não é com eles? Alguém acha que consigo não?

Os professores precisam perceber que não teremos remédio milagroso para o processo de adoecimento, para o que gera dor e sofrimento, pelo contrário, a tarefa é árdua. Até porque como vimos, são vários fatores que interferem neste processo, entre eles as condições de trabalho. Então é preciso conquistar melhores condições para desenvolver este trabalho. Por outro lado, estamos em um momento propício às discussões, em especial com os jovens estudantes e com os jovens trabalhadores, que estão vendo o futuro sem perspectivas. E é justamente esta discussão e/ou esta organização entre trabalhadores e juventude que pode dar uma resposta positiva para o futuro.

Os professores não podem admitir sofrer tudo o que foi pontuado acima, sozinhos, em isolamento, chorando no banheiro. É preciso reagir! É preciso aproveitar este momento para não só trabalhar remotamente. É bom lembrar aos professores que estão usando todo ou quase todo o tempo em casa, trabalhando, que não vão receber por este sobretrabalho, pelas várias horas        extras, pelo contrário, vão adoecer por isso. Então é importante tirar tempo para ler, entre outras coisas, textos sobre a organização e a luta dos trabalhadores e participar de lives que ajudem na organização dos professores.

O isolamento social é para manter as pessoas fisicamente longe umas das outras, mas não desconectadas. A internet precisa ser utilizada não só para as aulas online, ela precisa ser usada para nossa organização. É preciso conversar com os pares sobre o assunto abordado neste artigo, ler sobre, buscar quem está tentando fazer algo, é preciso participar das atividade que os sindicatos estão organizando e cobrar a responsabilidade deles. É uma excelente e importante oportunidade para se conhecer as organizações que lutam pelos trabalhadores, que lutam por uma outra sociedade, é preciso se envolver com alguma organização, é preciso militar.

A Esquerda Marxista convida, venham nos conhecer, venham construir a resistência com a gente. Recentemente organizamos o 1º Seminário Em Defesa da Educação Pública, Gratuita e Para Todos em que discutimos a organização dos professores e estudantes para barrar os ataques, preparar as lutas para o pós-pandemia, preparar a volta ao trabalho presencial, tendo claro que esta luta só terá êxito se juntamente com toda a classe trabalhadora criamos as condições para pôr abaixo o sistema capitalista. 

Referências:

Covid-19: OMS divulga guia com cuidados para saúde mental durante a pandemia – news.un.org/pt/story/2020/03/1707792

OMS: O impacto da pandemia na saúde mental das pessoas já é extremamente preocupante – https://nacoesunidas.org > amp

Folha de São Paulo – Podcast aborda cuidados com a saúde mental do professor em tempos de pandemia