Quando a notícia do falecimento de Yevgeny Prigozhin chegou ontem às manchetes, os habituais especialistas apareceram na imprensa com a vivacidade de um bando de abutres, ansiosos por recolher os ossos de um animal morto na savana africana.
Fizeram as perguntas mais profundas e interessantes: Prigozhin estava ou não no avião? Ele estava vivo ou estava morto? A organização Wagner sobreviveria ou pereceria? Poderá este ser mais um ponto de virada na guerra na Ucrânia? Significará a queda iminente de Vladimir Putin? E assim por diante.
As perguntas brotaram como o gás de um gasoduto rompido. Mas não houve respostas. Exceto em uma coisa sobre a qual todos os “especialistas” foram unânimes: que tudo é muito complicado. E que, para citar a célebre frase de Winston Churchill, a Rússia é “um enigma dentro de um enigma envolto em um mistério”.
Escusado será dizer que tais pérolas de sabedoria não nos levam muito longe. Além disso, um pouco de reflexão servirá para resolver todos os mistérios e enigmas. Mostrará que, longe de ser extremamente complicado, o que ocorreu não é um enigma ou um mistério, mas algo realmente muito simples.
Quem era Prigozhin?
Yevgeny Viktorovich Prigozhin era membro da oligarquia russa. Conhecido internacionalmente como o líder do grupo mercenário Wagner, ele ascendeu de uma posição humilde na vida (diz-se que certa vez vendeu cachorros-quentes em Petersburgo) para uma posição elevada entre a camarilha governante do Kremlin, tornando-se um confidente próximo de Vladimir Putin.
Referido desdenhosamente pelos seus inimigos como “o chef de cuisine de Putin”, ele era dono de restaurantes e empresas de catering que prestavam serviços ao próprio Kremlin. Mas, como Lênin certa vez alertou sobre Stalin: este era um cozinheiro que servia pratos apimentados.
Prigozhin era o arquétipo do alpinista social: um vigarista ambicioso que desenvolveu uma habilidade especial para escalar o poste escorregadio que levava às vertiginosas alturas do poder estatal no período caótico que se seguiu ao colapso da União Soviética.
Começou a sua ascensão pelo degrau mais baixo da escada, como alguém bem familiarizado com o interior de uma prisão soviética – não por qualquer resistência heroica ao regime stalinista, mas apenas como um pequeno criminoso.
Sua habilidade como escalador social foi superada apenas pelo homem que mais tarde se tornou seu mestre, amigo e confidente: Vladimir Vladimirovich Putin. E embora tenham seguido dois caminhos muito diferentes para chegar ao poder – um como um pequeno criminoso; o outro, como oficial subalterno da KGB – eram moral e psicologicamente do mesmo tipo: oportunistas sem princípios e carreiristas com egos e ambições descomunais à altura.
Um regime bonapartista
Desde a queda da União Soviética, a Rússia tem vivido uma contrarrevolução em todos os sentidos da palavra. Esta não é apenas uma questão da destruição da economia planificada nacionalizada. Houve um retrocesso colossal da cultura em todos os sentidos da palavra.
A oligarquia burguesa que agora governa a Rússia enriqueceu-se através da pilhagem da riqueza do Estado soviético. Mas os oligarcas lutam constantemente por uma parcela maior desta riqueza. Eles exigem um “Homem Forte” para manter a ordem e proteger os seus interesses. O nome deste “Homem Forte” é Vladimir Putin.
O palhaço bêbado Boris Yeltsin foi persuadido a renunciar em favor de Vladimir Putin.
O regime de Putin é um regime de bonapartismo burguês. Pode tentar equilibrar diferentes classes e facções, mas, em última análise, baseia-se na violência organizada do Estado e nos órgãos de repressão do Estado. Mas esta base é demasiado estreita para garantir a estabilidade do regime. Putin precisa criar pontos de apoio adicionais.
Ele próprio acumulou uma vasta fortuna através de todos os tipos de negócios obscuros, fraudes, roubos e corrupção. Isto significa que ele não pode perder o poder, com medo de acabar na prisão. Ele deve agarrar-se ao poder por todos os meios à sua disposição.
Um papel fundamental nesta estratégia foi desempenhado por Prigozhin.
Existe um provérbio inglês que diz: “pássaros da mesma plumagem voam juntos”. Era apenas uma questão de tempo até que esses dois desesperados se reconhecessem um no outro e instintivamente percebessem que poderiam ser de grande utilidade um para o outro na busca pelo poder.
A única questão nesta equação interessante era: quem estava usando quem?
Não se pode afirmar que Putin ou o seu comparsa de crime possuíssem quaisquer sinais notáveis de poder intelectual. Tais indivíduos têm um desprezo arraigado pelos intelectuais: uma aversão profunda a amplas generalizações teóricas de qualquer tipo.
Não! Eles se consideram homens de ação. Eles seguem o célebre lema de Goethe (embora provavelmente nunca tenham ouvido falar dele): “No princípio era a ação”. E que atos podem ser mais eficazes do que os atos de violência?
Foi isso o que Alexandre, o Grande, quis dizer quando cortou o nó górdio com sua espada. Pois a violência, em última análise, está por trás de todo o poder, seja ele o poder organizado do Estado ou a pequena violência de gangues criminosas nas esquinas.
Essa lição foi muito bem aprendida por ambos os homens, embora em extremos muito diferentes do espectro social. Eles estabeleceram uma espécie de simbiose mutuamente lucrativa.
Putin permitiu que Prigozhin participasse livremente na pilhagem do Estado. Em troca, ele comprou os serviços de um capanga leal em quem se podia confiar para realizar qualquer tarefa – por mais desagradável ou suja que fosse – ordenada pelo Chefe no Kremlin.
Um passo fundamental no avanço do seu protegido foi a criação do grupo Wagner – uma empresa privada de mercenários que tinha praticamente liberdade para operar dentro e fora da Rússia – nomeadamente na África, onde participava em atividades de mineração e em outras atividades altamente rentáveis, bem como na oferta de ajuda militar a regimes considerados amigos da Rússia.
Este foi um empreendimento altamente lucrativo que tornou Prigozhin fabulosamente rico. Também inflou seu ego a um nível em que ele se via como um rival em potencial de seu amo e senhor.
Este não foi um desenvolvimento muito aconselhável do ponto de vista da sua saúde e bem-estar pessoal. Mas, na vida em geral, e na política em particular, essas coisas têm uma lógica própria.
Ébrio com o êxito, Prigozhin parecia ter perdido de vista o fato de que ainda dependia inteiramente do Estado russo – isto é, em última análise, de Vladimir Putin.
De fato, de acordo com uma investigação de 2022 do The Insider e do Der Spiegel, as atividades de Prigozhin “estão fortemente integradas com o Ministério da Defesa da Rússia e com o seu braço de inteligência, o GRU [Departamento Central de Inteligência]”.
O motim de junho
A guerra na Ucrânia serviu para inflar ainda mais o ego de Prigozhin. Os erros iniciais cometidos pelo Alto Comando Russo, contrastando com os êxitos dos comandos Wagner em Bakhmut, tiveram um efeito duplo.
Em primeiro lugar, aumentou o prestígio de Prigozhin e do grupo Wagner, para fúria do Comando do Exército, que reagiu reduzindo os fornecimentos ao grupo Wagner e sabotando assim as suas operações na Ucrânia. Os generais começaram a pressionar Putin para dissolver completamente o grupo Wagner e integrá-lo ao exército regular.
Prigozhin resistiu ferozmente a isso, denunciando furiosamente os generais Sergei Shoigu e Gerasimov por incompetência. O conflito terminou no motim fracassado liderado por Prigozhin em Junho, e na chamada marcha sobre Moscou, que também colapsou.
O que Prigozhin queria?
Os eventos que levaram ao colapso do motim permanecem obscuros. Será que Prigozhin imaginou que poderia derrubar Putin e assumir o poder? Isto dificilmente parece provável, embora a conduta de Prigozhin parecesse calculada para provocar uma ruptura aberta com o seu chefe.
Embora não tenha feito nenhuma crítica direta a Putin, limitando os seus ataques a Shoigu e Gerasimov, Prigozhin não podia ignorar que, ao fazê-lo, estava a lançar um desafio direto ao próprio presidente.
Pelo seu conhecimento pessoal de Vladimir Putin, ele devia estar bem ciente de que este é um homem que não consegue tolerar nem a mais leve dissidência. A crítica mais branda resulta na punição mais severa. Participar numa manifestação pacífica pode resultar numa pena de prisão prolongada.
No entanto, aqui estava um homem que liderou uma revolta armada contra o governo – uma revolta que levou a uma série de mortes de militares.
Vladimir Putin deixou os seus sentimentos mais do que claros. Ele chamou isso de “traição” e “facada nas costas” contra a Rússia. Ele prometeu que os perpetradores seriam punidos. Mas os líderes do motim nunca foram presos, levados a julgamento, nem sequer acusados de qualquer crime.
Diz-se que Prigozhin foi convidado a ir à Bielorrússia como hóspede de honra do presidente Lukashenko, levando consigo todos os Wagneristas que lhe permaneciam leais, enquanto o restante tinha a alternativa de se juntar ao exército russo ou regressar às suas casas.
Isso não foi sequer um cutucão!
Comentando o compromisso combinado (acabar com o motim em troca de imunidade judicial), um jornal russo comentou:
“Este tipo de compromisso normalmente é feito com adversários políticos. Nunca com criminosos e terroristas. Isso significa que devemos ver o Sr. Prigozhin agora como uma figura política?”
As pessoas em Moscou e em outros lugares ficaram se perguntando o que diabos estava acontecendo. Agora eles não precisam mais se perguntar.
“A vingança é um prato que se serve frio”
O presidente Joe Biden disse que “não ficou surpreso” com a notícia de que Prigozhin pode ter morrido num acidente de avião na Rússia.
“Não sei ao certo o que aconteceu, mas não estou surpreso”, disse Biden, acrescentando: “Não acontece muita coisa na Rússia que Putin não esteja por trás. Mas não sei o suficiente para dar a resposta.”
Por trás da fraseologia diplomática, a mensagem é transmitida em alto e bom som: PUTIN MATOU PRIGOZHIN!
Essa é a explicação mais provável? É de longe a mais provável – na verdade, é a única que merece crédito. Putin tinha todos os motivos para querer livrar-se de Prigozhin, e nenhum para querer que ele permanecesse na terra dos vivos.
Não é nada estranho que ele tenha ordenado sua morte. Seria realmente muito estranho se ele o não tivesse feito. Como já tivemos a oportunidade de observar, Vladimir Vladimirovich é um homem muito sensível. Ele não perdoa nem esquece.
Mesmo o menor insulto será vingado, mais cedo ou mais tarde. E o que Prigozhin disse e fez não foi pouca coisa. Em junho, ele infligiu o que equivale a um insulto humilhante a Putin. E ele pagou o preço inevitável por sua audácia.
A vingança, como dizem, é um prato que se serve frio. Era prática comum na época do Império Romano que o Imperador convidasse alguém de quem quisesse se livrar para participar de um jantar no palácio, onde seria atacado, amarrado e executado sob uma variedade de formas pitorescas para o entretenimento dos convidados.
Seria muito próprio de Putin que ele tivesse persuadido o seu velho amigo a abandonar o seu motim em troca de termos mais liberais ditados pela velha amizade e pela compreensão mútua.
Parece que, apesar do exílio sugerido na Bielorrússia, Prigozhin foi visto em diversas ocasiões em atividades dentro da Federação Russa, tendo mesmo estado presente no recente acolhimento de chefes de estados africanos no Kremlin. Escusado será dizer que nada disto teria sido possível sem o acordo explícito de Vladimir Putin.
O infeliz Prigozhin foi assim levado a uma falsa sensação de segurança, imaginando ingenuamente que o seu velho amigo perdoaria e esqueceria os seus pecados. Se foi assim, então foi um erro de julgamento muito grave que acabou por levar à sua morte num misterioso acidente aéreo, enquanto viajava de Moscou para Petersburgo.
Esta não seria a primeira vez que Putin se livrou dos seus inimigos através do extermínio físico. A lista é, de facto, bastante longa e variada. Organizar um acidente aéreo é um meio muito simples para se atingir esse fim, e é muito provável que tenha sido precisamente isso o que ocorreu. Pelo menos nisso não temos motivos para discordar de Joe Biden.
Mas a lógica interna e o significado desses acontecimentos são uma questão completamente diferente. Não é nenhuma surpresa que um regime bonapartista recorra a métodos deste tipo. Um regime bonapartista é instável por natureza. O bonapartismo russo não é exceção.
Por trás da aparência de solidez, o regime de Putin é inerentemente instável. Existem inúmeras contradições, divisões e conflitos entre os diferentes sectores da oligarquia, e esses conflitos irão inevitavelmente crescer no próximo período.
A divergência entre Putin e Prigozhin é apenas o exemplo mais óbvio disso. O problema imediato foi resolvido pelo simples expediente do assassinato de Estado. Mas nenhuma quantidade de repressão e violência pode servir para eliminar as fraquezas fundamentais do atual regime.
O inevitável alarde do Ocidente é, no entanto, totalmente descabido. Eles previram que o motim de Junho levaria à Guerra Civil na Rússia. Estavam errados. Putin lidou com esse incidente sem muita dificuldade – embora o motim tenha sido claramente um choque para ele e para a sua camarilha.
Esse caso também não teve qualquer efeito real na guerra na Ucrânia, que, apesar de todas as esperanças do Ocidente, está a correr muito mal para a Ucrânia. O clima de cansaço da guerra na população aumenta a cada hora. A tão ambiciosa “contraofensiva” sofreu uma derrota humilhante.
E as divisões no regime ucraniano revelar-se-ão ainda mais violentas do que as que observamos agora na Rússia. A pressão sobre Zelensky para negociar com base no sacrifício de terras pela paz está se tornando intensa. O resultado poderá muito bem ser o colapso do governo de Kiev, um golpe de Estado ou mesmo o assassinato de Zelensky.
E o que dizer das tensões e contradições que existem nos chamados regimes democráticos do Ocidente? É verdade que Joe Biden não desfruta da possibilidade de eliminar fisicamente o seu inimigo, Donald Trump. Um feliz acidente aéreo não aparece como uma solução imediata para os seus problemas – pelo menos no futuro imediato.
No entanto, a pressa indecente do establishment dos EUA em livrar-se do perigo de uma vitória de Trump nas próximas eleições presidenciais através do simples expediente de colocá-lo atrás das grades não é de forma alguma diferente da motivação pela qual o homem no Kremlin procura resolver seus problemas políticos.
Não está nada claro se haverá uma Guerra Civil na Rússia antes de haver uma Guerra Civil nos Estados Unidos da América. As contradições econômicas, sociais e políticas na América são tão graves como as da Rússia, se não mais.
Recordemos que não faz muito tempo que uma multidão de mais de 2 mil manifestantes assaltou o Congresso dos EUA, muitos dos quais vandalizaram e saquearam partes do edifício do Capitólio, incluindo os escritórios da presidente da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi, e de outros membros do Congresso.
Os manifestantes também agrediram guardas do Capitólio e repórteres e tentaram localizar legisladores para capturá-los e agredi-los. Estes acontecimentos constituem um testemunho eloquente das profundas fissuras que dividem a sociedade dos EUA.
Na verdade, todo o mundo ocidental está a ser minado por uma crise profunda do sistema capitalista, que pode envolvê-lo em crises revolucionárias muito mais rapidamente do que a maioria das pessoas pode imaginar.
TRADUÇÃO DE FABIANO LEITE.