“A guerra durou de abril de 1648 a fevereiro de 1649 e teve como cenário o Morro dos Guararapes, atual região de Jaboatão dos Guararapes, próximo ao Recife. E dessa união de brancos, negros e índios que compunham as áreas colonizadas do Brasil, surge à primeira força genuinamente brasileira, com sua doutrina militar própria e um elevado espírito de nacionalidade” (Hiago Brasil Barros Rolim, Batalha de Guararapes e a formação do Exército Brasileiro)
Na Cerimônia de 7 de Setembro de 2023, o governo Lula-Alckmin convocou para Brasília militares indígenas das etnias Tariano, Kuripaco, Baré, Kubeo, Yanomami e Wanano. Em sua conta oficial do Instagram, o presidente afirmou com orgulho – acionando a pauta identitária e a agitação ufanista – que: “O Exército brasileiro tem origem indígena”, seguida da saudação dos militares em suas línguas originárias.
Na aparência, essa ação divulga “representatividade”, “respeito” e “inclusão” aos povos originários, massacrados com mais intensidade durante o mandato de Bolsonaro. Porém, na essência, essa posição oficial do governo Lula nada mais é que uma reprodução da falsificação historiográfica e do mito da “três raças” promovida, inicialmente, pelas Escola Militar do Realengo e a Escola Militar da Praia Vermelha e, atualmente, pela Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), em Resende, no Rio de Janeiro – in stituições de ensino superior dos oficiais de carreira das Armas do Exército, que desenvolveram a historiografia do Estado nacional e de suas forças de repressão.
Efetivamente, o Exército no Brasil tem sua verdadeira organização na Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai (1864-1870), durante o Segundo Reinado, sob o comando de Luís Alves de Lima e Silva, o perverso patrono do Exército, Duque de Caxias. Na prática, fora uma carnificina contra mais de 60 mil brasileiros, especialmente pretos, escravizados e libertos, que viveram com a promessa da alforria e da propriedade, em caso de vitória contra as tropas de Solano López. Os negros que sobreviveram aos campos da bacia do Prata, morreram à míngua no Brasil, muitos sendo obrigados a formar, por exemplo, o Morro da Providência na virada do século 19 para o 20 e iniciando a favelização da então capital do país.
Contudo, a história oficial do Exército tem outra versão de sua fundação, a de um mito do Império, reforçado e utilizado durante a Ditadura Militar (1964-1985), servindo a esses governos para justificar o regime. Na perspectiva militar, a ditadura confirmava a história positivista e teleológica da Aman, que apontava a burocracia militar como a única mantenedora da ordem e progresso na República. Evidentemente, isso não é inocente, nem mesmo desprovido da política de identidades. Isso porque, nessa narrativa oficial, o Exército é a instituição do Estado capaz de sintetizar o povo brasileiro desde sua origem: a amálgama entre brancos, indígenas e pretos, como versavam os sociólogos da burguesia nativa.
Para a Escola Militar, chancelada e equiparada ao ensino formal superior pelo MEC, em pareceres e portarias consecutivas de 1998 até 20211, as forças de segurança e soberania nacional teriam sido fundadas na Batalha de Guararapes, especificamente em 19 de abril de 1648. Esse embate, que perdurou até fevereiro de 1649, fez parte da Guerra da Restauração (1640-1668), um conjunto de disputas entre as monarquias de Portugal e Espanha, pela independência lusitana. No novo mundo, o conflito foi crucial para a manutenção das posses portuguesas da recém-colônia do Pau-brasil.
As tentativas holandesas nas novas terras coloniais ibéricas ocorreu justamente quando o Reino de Portugal passou a ser administrado pelos espanhóis, a partir de 1580, com a morte de Dom Henrique. Esses processos fizeram a Holanda criar a sua Companhia das Índias Ocidentais e ocupar Pernambuco em 1630, com o objetivo semelhante ao dos lusitanos: explorar o açúcar na região.
Para o conflito, os portugueses foram comandados por Antônio Dias Cardoso, responsável por costurar, com nativos e negros escravizados, as táticas de guerrilhas que lograram a disputa contra os holandeses mais numerosos e melhor armados. Segundo os dados oficiais, foram mais de 4 mil holandeses contra 2.500 lusos, indígenas e negros. Mesmo com a vitória e toda a ideologia do Estado sobre a epopeia de Guararapes, os holandeses só saíram do nordeste brasileiro em 1654.
Logicamente, o Exército não afirma sua existência desde o século 17, isso seria a fraude pela fraude. Porém, toda sua ideologia cultua o 19 de abril, oficializado por Itamar Franco e Zenildo de Lucena, em 1994, como a forja do espírito de nacionalidade. Essa comunidade imaginada, como cunhou o pensador Benedict Anderson (2008), expressão da modernidade capitalista, tem a função de falsear a realidade, buscando construir, historicamente, a sonhada união nacional, que Lula reivindica, para amenizar os reais conflitos gerados pela luta de classes. Nos discursos oficiais, essa narrativa é escancarada, intitulando Guararapes como o “berço da nacionalidade e do Exército brasileiro”, utilizando, por exemplo, a carta de Muniz Barreto, um repentista do Império, ao rei português2.
Da historiografia às pinturas oficiais, as produções referentes a esses dois episódios bélicos do Brasil possuem apenas um sentido: expressar e impor um sentimento de União Nacional e de fundação quase ontológica do Estado no Brasil entre as “raças”, sob controle luso-brasileiro. Tal qual Pedro Américo em “Batalha do Avaí” (1872-77) representou a Guerra da Tríplice Aliança, a pintura de Victor Meirelles, intitulada “Batalha de Guararapes” (1875-79), compôs essa mitologia do Exército e do Estado a partir do Reinado de Pedro II.
Em 2023, o governo Lula-Alckmin segue esse fio condutor do Estado brasileiro defendendo uma falsa Democracia, uma fajuta Soberania e uma completa União com os interesses burgueses. Reacionário, fraudulento, Lula se dirigiu à cúpula do Exército, como Bolsonaro nunca ousou fazer, pois colocar indígenas fardados e cultuando as forças armadas e a nação, passa longe de uma afronta ou afirmação dos povos originários. Trata-se de uma ação que dialoga diretamente com o alto-comando militar, além de, claro, ser desrespeitosa com as populações nativas que são assassinadas diariamente pelo Estado e suas forças repressivas, aliadas aos garimpeiros e latifundiários na luta pela terra.
As festividades do Estado em nada representam as necessidades e a história da classe trabalhadora. A independência do Brasil foi a transferência da dependência de Portugal para a Inglaterra com a permanência do domínio lusitano pelos reinados de Bragança e Habsburgo. A República de 1889 também não significou uma transformação estrutural das condições materiais do país, mantendo o latifúndio, a exploração semicolonial e a ausência de conquistas democráticas que as burguesias mundiais efetivaram com suas revoluções, vide EUA e França.
Ao longo da república, os avanços que os trabalhadores conseguiram foram resultados de sua única e exclusiva organização e luta, justamente quando tivemos independência de classe. A União Nacional de Lula é o avesso desta necessidade de autonomia da nossa classe, é perversa e reprodutora ideológica da classe dominante, auxiliando no violento engendramento da emoção cívica e nacionalista da pátria.
Para nós, os comunistas, a efetiva defesa e conquista das riquezas, culturas e histórias nacionais só podem ser feitas falando e agindo com a verdade histórica, produzindo uma direção, um partido, capaz de apresentar para nossa classe um programa socialista e internacionalista. Assim, dialeticamente, o povo trabalhador assegurará o que é realmente seu de direito, sem falsificações históricas e identitárias, conquistando o poder, o pão, a paz, a terra, o trabalho e toda sua verdadeira emancipação.
Artigo publicado originalmente no jornal Tempo de Revolução 31, de setembro de 2023. Faça sua assinatura e apoie a imprensa comunista.
Notas:
1 Estas portarias e pareceres equiparam as instituições de ensino militar às civis, mesmo que os métodos científicos, especialmente nas produções das ciências humanas, sejam ignorados pelas produções militares. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/escola-de-gestores-da-educacao-basica/323-secretarias-112877938/orgaos-vinculados-82187207/12965-ensino-militar. Acesso em: 08 set. 2023.
2 Carta de Moniz Barreto cultuada pelo Exército brasileiro. Disponível em: https://www.eb.mil.br/amazonlog17/noticias/-/asset_publisher/BsJDxIc4XCbS/content/guararapes-berco-da-nacionalidade-e-do-exercito-brasileiro. Acesso em: 08 set. 23.
Referências bibliográficas:
ROLIM, Hiago Brasil Barros. Batalha de Guararapes e a formação do Exército Brasileiro. Monografia, curso de Ciências Militares. Academia Militar das Agulhas Negras, Resende, 2020.
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.