Publicamos artigo sobre um dos muitos crimes que a “onda” de ditaduras militares cometeu na América do Sul.
No dia 18 de março de 1976 desaparecia, na Argentina, o pianista brasileiro Tenório Jr: “como assim, desaparecia?”, perguntarão os mais jovens, que escaparam dos expedientes repressivos das ditaduras militares latino-americanas.
Tenório Jr. encontrava-se naquele país acompanhando os artistas Vinícius de Moraes e Toquinho, nas apresentações que estes realizavam na cidade de Buenos Aires, no Teatro Grand Rex. Naquela noite, a única notícia que seus amigos obtiveram do Tenório, foi um bilhete deixado no quarto do hotel Normandie, no qual estava escrito “saí para comprar cigarros e um remédio. Volto logo” . Ele nunca mais voltou ou foi visto.
Tenório Jr. nasceu e foi criado no bairro das Laranjeiras, na cidade do Rio de Janeiro e despontou muito cedo, através de um estilo de samba jovem como ele, a bossa nova. Com apenas 21 anos de idade, em 1964, lançou seu primeiro disco pela gravadora R.G.E. , “Embalo” . Este álbum continha clássicos da bossa nova, como “Consolação” , “Nuvens” e “Inútil Paisagem” , além de cinco composições originais de autoria dele, como a faixa título. Além desse álbum, Tenório gravou outros antológicos da música popular brasileira, como “Desenhos” , o primeiro do saxofonista Victor Assis Brasil, e “Samba Novo” , do baterista Edson Machado, o inventor do “samba de prato”.
Ao mesmo tempo em que desenvolvia uma carreira como pianista, gravando discos (naquela época era assim que se chamavam os Lps) e apresentando-se ao vivo, principalmente nas casas noturnas do “Beco das Garrafas”, também cursava a Faculdade Nacional de Medicina.
A carreira promissora deste jovem pianista teria seu fim decretado quando ele tinha apenas 33 anos de idade, na fatídica noite da apresentação em Buenos Aires, quando foi seqüestrado pelo chamado grupo de tareas, uma espécie de milícia composta de militares e paramilitares, que realizavam seqüestros para o regime.
Com sua barba e cabelo comprido, Tenório Jr. assemelhava-se ao “típico militante de esquerda” daquela época. Preencher um estereótipo foi o suficiente para que fosse preso pelos militares que já arquitetavam o golpe do dia 24 de março de 1976 e buscavam eliminar toda e qualquer resistência organizada antes de executá-lo contra o governo. O fato de Tenório não saber absolutamente nada sobre coisa alguma, e não poder assim dar informações durante o interrogatório, deve ter sido o suficiente para despertar a ira dos seus algozes.
Desaparecido Tenório, espalhou-se o pânico entre os artistas, pois nem mesmo os conhecimentos e contatos locais de Vinícius de Moras permitiram obter qualquer notícia sobre o paradeiro do pianista. Vinícius havia sido membro do corpo diplomático brasileiro, antes de ser exonerado pelos militares que governavam o Brasil, após o golpe de estado do dia primeiro de abril de 1964 (para não entrar para a história como “um golpe de mentira”, pela fama do primeiro de abril, os militares brasileiros resolveram adotar o 31 de março como data do golpe, apenas mais uma entre as inúmeras farsas que adotariam ao longo de seu autoritário regime, realizado para manter intacta a propriedade privada dos meios de produção no Brasil).
Vinícius e toda equipe retornaram ao Brasil sem Tenório. Nem ao menos a entrevista do poeta para uma rede de televisão, onde ele declarava o desaparecimento do pianista, seria veiculada por aqui. Eram os chamados “anos de chumbo” para os povos latinos, e, sucedendo-se aos golpes militares brasileiro de primeiro de abril 1964 e chileno de onze de setembro de 1973, se dava o golpe militar argentino, em vinte e quatro de março de 1976.
O poeta Ferreira Gullar, que na época encontrava-se exilado na Argentina, foragido do regime brasileiro, também intercedeu e buscou informações sobre o paradeiro de Tenório, mas nada descobriu. Gullar teria que fugir da Argentina em breve, sem poder retornar para o Brasil.
No Brasil, Vinícius moveu um abaixo assinado junto a intelectuais e artistas, pela libertação do pianista, com pedido de habeas corpus, mas o Itamaraty não se pronunciou a respeito. Oficialmente, Tenório Jr. encontrava-se no limbo dos desaparecidos, e seus amigos e familiares sequer sabiam se ele se encontrava preso ou assassinado.
Durante essa mesma década de 70, teria início a chamada “Operação Condor”, através da qual as ditaduras militares do Brasil, Chile e Argentina realizaram operações conjuntas, de prisões, torturas e assassinatos a opositores dos três regimes, numa ação internacional contra-revolucionária, que lançou na clandestinidade toda uma geração de militantes e revolucionários, que lutavam pela democracia e autonomia dos povos latino-americanos.
A cantora Elis Regina, que em 1978 havia recusado apresentar-se na Argentina, por conta da censura do governo local ao seu álbum “Falso Brilhante” , que continha a música “Gracias a La Vida” , da chilena Violeta Parra, aceitou viajar para o país e lá se apresentar em 1979, apenas para obter informações sobre o paradeiro de Tenório. Declarou antes de viajar:
“Vou fazer um giro pela Argentina que tem não só, pra mim, a finalidade de ir até a Argentina pra fazer um negócio que estão me pedindo já há algum tempo, mas, principalmente, ver se eu agito o lance do Tenório Júnior com o pessoal de lá que sabe onde ele está.”
Ela trouxe para o Brasil uma notícia, que obteve junto a um compositor argentino, que o pianista estaria preso na penitenciária de La Plata.
O limbo histórico onde se encontrava Tenório teria fim somente no ano de 1986. Nesse ano, no Brasil, o movimento pelas “Diretas Já”, contra a ditadura e pelas liberdades democráticas havia conquistado uma Assembléia Constituinte. Já havia sido fundado o PT (1980), fruto das lutas operárias e greves do final da década de 70 e início de 80, que culminou na convocação do CONCLAT (Congresso Nacional da Classe Trabalhadora), em primeiro de agosto de 1981. Esse processo culminou na fundação da CUT, em agosto de 1983. Em dezembro de 1986, a CUT convocaria uma greve geral contra o governo Sarney e as recessões causadas pelo seu “Plano Cruzado”.
É nesse mesmo ano de 1986, que aportaria na cidade do Rio de Janeiro um argentino de nome Claudio Vallejos, portando dossiês sobre sete brasileiros desaparecidos na Argentina, com a intenção de vendê-los á imprensa brasileira. Vallejos integrava o Serviço de informação Naval da Argentina, foi um dos sequestradores de Tenório Jr. e teria informações de que o Capitão Acosta, um famoso torturador da ESNMA (Escuela de Mecânica da Armada), teria entrado em contato com o SNI (Serviço Nacional de Inteligência, a polícia secreta e órgão de espionagem da ditadura militar brasileira). O contato visava obter informações sobre o cidadão Francisco Tenório Jr.
Nesses documentos consta que:
“Do dia 20 de março de 1976 – quando o Capitão Acosta solicita ao Contra-Almirante Chamorro autorização ‘para estabelecer contato com o agente de ligação, código de guerra 003, letra C, do SNI do Brasil’, para que informasse a central do SNI no Brasil que o grupo de tarefa chefiado por Acosta estava ‘interessado na colaboração para a identificação e informações sobre a pessoa do detido brasileiro Francisco Tenório Jr.’”
Outro documento, em ofício assinado por Acosta é dirigido ao embaixador, em nome do “Chefe da Armada Argentina”, e datado de 25 de março de 1976, quando a embaixada brasileira era comunicada sobre o seguinte:
“1) Lamentamos informar a essa representação diplomática o falecimento do cidadão brasileiro Francisco Tenório Júnior, Passaporte n° 197803, de 35 anos, músico de profissão, residente na cidade do Rio de Janeiro;
“2) O mesmo encontrava-se detido à disposição do Poder Executivo Nacional, o que foi oportunamente informado a esta Embaixada;
“3) O cadáver encontra-se à disposição da embaixada na morgue judicial da cidade de Buenos Aires, onde foi remetido para a devida autópsia.”
(morgue significa necrotério, N.A.)
O Estado brasileiro nada fez para resgatar o corpo de Tenório, nem sequer notificou seus familiares do ocorrido.
Mesmo com a divulgação do assassinato de Tenório dez anos depois do ocorrido, em 1986, demoraria ainda mais vinte anos para que o Estado brasileiro se pronunciasse oficialmente, reconhecendo “ter feito pouco” a respeito do desaparecimento dele. Apenas em 2006 a esposa de Tenório recebeu o status oficial de viúva! O juiz Alfredo França Neto reconhecendo a omissão do Estado brasileiro, concedeu uma pensão à viúva e aos filhos de Tenório, por danos morais e materiais. Segundo sua sentença:
“No caso concreto, a violação à dignidade da pessoa humana ocorre no momento em que o Estado não protege, como deve, os seus nacionais, e não atua eficientemente, quando menos, na busca das informações sobre o paradeiro e o destino de Tenório Júnior, e deixa sem qualquer notícia a sua família, ao longo de mais de vinte anos…”
A Esquerda Marxista presta aqui sua homenagem a este grande artista brasileiro, vítima da violência de um regime autoritário e antidemocrático, instaurado, como tantos outros, apenas para manter a ordem burguesa da propriedade privada dos meios de produção e os interesses imperialistas intactos naquele país.
Resgatar a memória e história das vítimas das ditaduras latino-americanas é uma tarefa necessária, para que todos saibam o sentido da frase que ecoou na Argentina, neste mês de março de 2011, quando completaram-se 35 anos do golpe militar daquele país: NUNCA MAIS!