A Comuna é proclamada, Place de l'Hotel de Ville - 28 de março de 1871 - Imagem: Lamy, Le Monde Illustré

A Comuna é Imortal: Lênin e Trotsky sobre o Assalto aos Céus de 1871 (parte 2)

PARTE 1

Trotsky e as Lições da Comuna

Guerra e Revolução frequentemente se sucedem na história. […] É assim que há 46 anos na França a guerra franco-prussiana de 1870-1871 resultou na revolta dos trabalhadores e na criação da Comuna de Paris. […] A bandeira da Comuna é a bandeira da República mundial dos trabalhadores! (Trotsky, 1917).

Ao lado de Lênin, a contribuição de Trotsky para o entendimento da Comuna de Paris é fundamental para os revolucionários e a classe trabalhadora de nosso tempo. O dirigente do Exército Vermelho também reservou ao processo alguns artigos, os quais dois serão aqui apreciados. O primeiro é de 17 de março de 1917, publicado na Novy Mir], uma revista de emigrados russos em Nova Iorque, e o segundo, de 4 de fevereiro de 1921, foi publicado pela revista soviética Zlatoost2.

Sob a Bandeira da Comuna! Este é o artigo de Trotsky publicado em março de 1917, produzido quando a revolução política contra o feudalismo czarista havia sido feita na Rússia. A monarquia foi destituída e um governo provisório, de caráter liberal, estava no poder. A chama da revolução não era leve, mas uma labareda que ardia os ânimos da classe operária pela tomada do poder pelos sovietes. Este contexto fez Trotsky produzir mais uma análise da luta de classes, tendo como exemplo a Comuna de Paris. O fez, neste momento, apontando como uma guerra, ou seja, uma situação que põe o povo em polvorosa, é capaz de abrir o caminho revolucionário, pois expõe as mazelas do Estado estabelecido.

Se em tempos normais, a classe trabalhadora acaba por executar passivamente o trabalho ao capital, isso muda completamente em uma situação de guerra ou de grande crise, fazendo as massas sentirem as contradições da sociedade de classes com mais força. Na guerra, a burguesia promete liberdade, justiça e uma vida melhor, caso saia vitoriosa. Isso, evidentemente, conquista os trabalhadores, mas, quando estes veem que tais promessas são inaplicáveis, meras mentiras das classes dominantes, os trabalhadores se revoltam e destinam suas energias para a guerra de classes. É quando “a guerra dá origem à revolução”.

Antes de ir à Paris de 1871, Trotsky relembra que foi isso que levou a Rússia à Revolução de 1905, devido à Guerra Russo-Japonesa, e à própria Revolução de 1917, por meio da participação e o massacre contra os soldados russos na Primeira Guerra Mundial. Assim, para Trotsky, foi a Guerra Franco-Prussiana, iniciada em 1870, que possibilitou a fundação da Comuna de Paris. A precisão desta análise de Trotsky é cirúrgica, mas mesmo para os desatentos basta compreender o papel da Guarda Nacional no processo parisiense. Um destacamento de operários armados pelo governo burguês de Thiers, que deveria lutar contra os prussianos, tornou-se uma espécie de Comitê Central da Revolução, mesmo com todos os seus problemas. Isso porque, depois de capitular perante Bismarck, a burguesia francesa foi também derrotada, como aponta Trotsky, na tentativa de desarmar os trabalhadores. O espírito da guerra havia se transformado em revolta popular, tendo tomado as mentes e corações dos trabalhadores, que queriam muito mais do que cumprir a tarefa da burguesia nacional. Eles queriam mais do que expulsar o exército estrangeiro, eles queriam o poder da República, queriam um novo mundo.

Assim, no 18 de março de 1871, os trabalhadores derrotaram no campo de combate as tropas burguesas e, após 10 dias, instauraram a Comuna, o governo operário da capital. Trotsky não se demora em dizer que a experiência foi sumária, as fragilidades do governo popular não permitiram a consolidação operária, como já vimos. Mesmo assim, para Trotsky, a violência burguesa não apagou o fato da “Comuna ter sido o maior evento da história da luta proletária”, que seria superada apenas meses depois deste artigo do revolucionário bolchevique, em outubro de 1917.

Por fim, Trotsky lista algumas das conquistas concretas do processo, que deveriam servir como norte para os russos no ano revolucionário: separar Estado e escolas da religião; abolir a pena de morte; combater o chauvinismo; fixar os salários dos funcionários do Estado ao recebido por um operário; realizar censos em fábricas para que deixassem de ser insalubres; a ocupação das fábricas para a produção e controle operário; e, em suma, a primeira experiência da economia planificada. Ele reiterou: “agora, em 18 de março de 1917, a imagem da Comuna surge diante de nós com mais clareza do que nunca, pois, depois de um grande intervalo de tempo, voltamos a entrar na época das grandes batalhas revolucionárias”. Essa situação, para Trotsky, ainda estava, naqueles meses, restrita à Europa, mas que em breve alcançaria a América, pois, como nunca antes, a burguesia estava ávida pelo sangue da classe trabalhadora servindo aos seus lucros, ocultando essa realidade com palavras de ordem como “em defesa da pátria”. Trotsky estava correto, eram as décadas das guerras mundiais. Neste sentido, em 1917, a Rússia deveria ter sido apenas a precursora dos levantes proletários, o início da revolução permanente. Assim Trotsky convocou os trabalhadores a:

Arrancar a máquina do Estado das mãos burguesas, transformá-la de uma arma de violência burguesa em um aparelho de autogoverno proletário. Você agora é incomparavelmente mais forte do que seus antecessores eram na época da Comuna. Controle todos os parasitas. Pegue a terra, as minas e as fábricas e gerencie você mesmo. Fraternidade no trabalho, igualdade na partilha dos frutos do trabalho!

Entretanto, as décadas seguintes receberam a contrarrevolução da burocracia stalinista, sendo a barreira política para o internacionalismo proletário e para que as guerras mundiais se transformassem em revoluções mundiais.

Um outro artigo no qual podemos encontrar as considerações de Trotsky sobre o tema chama-se “Lições da Comuna de Paris”, publicado integralmente na nova edição da revista teórica da Corrente Marxista Internacional, a América Socialista, em seu número 183. Se em setembro de 1924, o bolchevique escreveu o clássico livro “Lições de Outubro”, para explicar o processo russo, em fevereiro de 1921, entre uma batalha e outra da Guerra Civil, Trotsky se dedicou também a explicar as lições de 1871.

Reside neste artigo de Trotsky uma compreensão histórica primordial: nunca refletiremos sobre um processo do passado do mesmo jeito que outrora, pois ao estudarmos ou revisitarmos tais acontecimentos, sempre seremos influenciados pelos eventos subsequentes e pelo próprio presente. Em 1921, Trotsky expressou este pensamento que a Teoria da História julga explicar como algo inédito e surpreendente.

Em seu tempo, Trotsky aponta que a Comuna de Paris não foi apenas um exemplo para as revoluções russa, alemã e húngara, mas que, após estes eventos do século 20, também passou a ser melhor entendida. Fora um “presságio de uma revolução proletária mundial”. Mais que isso, a Comuna, segundo Trotsky, mostrou todas as contradições que podem acometer as massas trabalhadoras em uma revolução. Os parisienses demonstraram todo o heroísmo dos explorados e oprimidos, capazes de se unirem em uma massa heterogênea, sacrificando suas vidas pela causa da liberdade. Mas também explicitou como a indecisão, a ausência de direção para o movimento, o refugo em horas decisivas, “permitindo que o inimigo se recomponha”, podem significar não apenas a derrota revolucionária, mas uma carnificina praticada pela burguesia.

Interessante ressaltar como Trotsky explica que a Comuna tinha explodido tarde demais. Para o bolchevique, ela obteve um caminho livre para ser instaurada em 4 de setembro de 1870, ou seja, 6 meses antes da vitória do 18 de março. Caso houvesse assim acontecido, a hipótese de Trotsky é que o proletariado de Paris teria conseguido levantar os trabalhadores de toda a França contra Bismarck e contra Thiers. Mas por que 4 de setembro de 1870? Embora Trotsky não aponte em seu artigo, esta foi a data da instauração da Terceira República Francesa, o regime que mais durou no país após a revolução burguesa de 1789 e que teve Adolphe Thiers como seu presidente.

A França havia declarado guerra à Prússia em 19 de julho de 1870, com a imediata resposta alemã contra Napoleão III e seu exército. Enquanto os franceses possuíam cerca de 200 mil soldados, os prussianos reuniram 400 mil. A primeira batalha, em 2 de agosto, teve a França vitoriosa, mas após este conflito foi enfraquecida e sendo derrotada até a batalha final, em 1° de setembro, na cidade de Sedan, no nordeste do país. Com o comando militar de Napoleão, a França foi derrotada e seu governo capitulou à Bismarck, com a prisão do comandante e de 83 mil soldados. Como Trotsky explicou em seu artigo de 1917, quando a guerra burguesa não realiza o que promete, as massas revoltam-se. Abre-se então o caminho para a revolução. Assim poderia ter acontecido, pois quando a notícia da derrota francesa chegou em Paris, a rebelião explodiu nas ruas, a Assembleia Constituinte foi dissolvida e, em 4 de setembro, foi proclamada a Terceira República, dando fim ao segundo império bonapartista.

Ao invés desta situação ter guinado o país para uma República operária, “o poder caiu nas mãos de demagogos democráticos, os deputados de Paris”. Isso pelo fato da ausência de direção, de um partido intimamente enraizado nas lutas dos trabalhadores. A vanguarda nesse momento estavam sendo os patriotas pequeno-burgueses, que não confiavam no proletariado, e balançavam suas bandeiras com, segundo Trotsky, “apenas dez frases vagamente revolucionárias”, uma mera fraseologia socialista, vazia de conteúdo e da participação operária. Este, aliás, é um aprendizado que devemos estar atentos nos nossos dias. Neste quesito, Trotsky aprofundou a explicação sobre as lições da Comuna, ao dizer que, na essência destas direções que divulgam fraseologias socialistas, está a mera adaptação ao Estado burguês, com o partido sendo uma máquina de manobra parlamentar. Ao contrário disso, o partido operário surge e atua com “a experiência acumulada e organizada do proletariado”.

O proletariado de Paris não tinha tal partido. Os socialistas burgueses, com os quais fervilhava a Comuna, levantaram os olhos ao céu, esperaram um milagre ou então uma palavra profética, hesitaram e, durante esse tempo, as massas tatearam, perderam a cabeça pela indecisão de uns e pela fraqueza de outros. O resultado foi que a Revolução estourou no meio deles, tarde demais. Paris estava cercada (Trotsky, 1921).

Trotsky foi cada vez mais incisivo em seu balanço, pois afirmou que, caso o proletariado francês tivesse fundado seu partido em setembro de 1870, não apenas a história da França, mas de toda a humanidade, dali em diante, teria tomado uma outra direção. Esta hipótese compreende a necessidade do tempo para o processo revolucionário, tal como Lênin expôs em suas considerações à Comuna. Significava a fundação do Partido, do programa socialista e as experiências que teriam sido vivenciadas pelos trabalhadores do país, 6 meses antes do Assalto aos Céus. Já em 18 de março de 1871, a possibilidade se abriu e o poder foi tomado pelos trabalhadores devido à fuga do governo Thiers para Versalhes. Fora como se a revolução estivesse caído no colo dos revoltosos, pois não tinham se preparado efetivamente para isso.

Mesmo assim, com todas as possibilidades de prender os ministros burgueses e caçar Thiers, ações que não teriam qualquer resistência popular, a Comuna não o fez, permitindo a reorganização burguesa fora de Paris. Não o fez, como explica Trotsky, por não haver uma “organização partidária centralizada com uma visão geral e órgãos especiais para executar suas decisões”. Trotsky relembra que os próprios defensores de Thiers se surpreenderam, naqueles dias, diante a passividade da Comuna, pois os revolucionários teriam total possibilidade de ganhar os soldados que ainda estavam nas fileiras burguesas devido suas insatisfações aos oficiais do governo. Para o bolchevique, a tarefa deveria ter sido trazê-los à Paris, porém, “ninguém pensou nisso. Não havia ninguém para pensar nisso” (Trotsky, 1921).

A Guarda Nacional, em especial seu Comitê Central que dirigia esta revolução, não possuía esse caráter. Era, na realidade, um Conselho de Deputados, reunindo trabalhadores armados e membros da pequena-burguesia. Este conselho foi eleito imediatamente pela Comuna e poderia ser um fundamental aparato de ação. Entretanto, acabou por representar mais as contradições populares do que a força do proletariado. Dentre vários refugos, isso se expressa na fuga do governo burguês para Versalhes, quando a Guarda Nacional se eximiu completamente da própria responsabilidade, dizendo haver uma suposta falta de legalidade democrática para sua atuação.

Os radicais pequeno-burgueses e os idealistas-socialistas, respeitando a “legalidade” e as pessoas que personificavam uma parte do Estado “legal”, os deputados, os prefeitos, etc., esperavam no fundo de suas almas que Thiers parasse respeitosamente diante da Paris revolucionária, assim que esta se cobrisse com a Comuna “legal” (Trotsky, 1921).

Politicamente, isso significava a defesa destes dirigentes da Comuna aos sagrados princípios de Federação e Autonomia. Negavam ser influência e base para as demais regiões do país, negavam a ditadura do proletariado. “Em suma, foi apenas uma tentativa de substituir a revolução proletária em desenvolvimento por uma reforma pequeno-burguesa: a autonomia comunal” (Trotsky, 1921).

Para Trotsky, isto não passava de uma tagarelice idealista, um tipo de anarquismo mundano, que servia para encobrir a covardia da Guarda Nacional em levar a revolução até às últimas consequências, a vitória proletária! É preciso, portanto, deixar claro, com as lições da Comuna, que tal defesa da atividade e independência individual e local é um legado pequeno-burguês, incrustado nesta classe e em anarquistas até nossos dias. Um erro brutal que custou a vida dos proletários franceses e de milhares de outros trabalhadores que estiveram em processos revolucionários sob esta política.

Diferente do que dizem seus críticos pequeno-burguês e anarquistas, o partido revolucionário centralizado não cria ou controla despoticamente uma revolução. O partido não escolhe o momento de tomar o poder ou outra ação de caráter autoritário. O que faz o partido centralizado, a sua verdadeira tarefa, é intervir ativamente nos acontecimentos, adentrar e motivar o espírito revolucionário dos trabalhadores, avaliar as forças inimigas e apontar para o momento favorável da ação decisiva. Assim atuaram os bolcheviques na Rússia, assim não atuou a Guarda Nacional na Comuna de Paris, pois, novamente, não tinha este caráter: “a comparação de 18 de março de 1871 com 7 de outubro (novembro em nosso calendário) de 1917 é muito instrutiva deste ponto de vista”. Este paralelo é detalhadamente descrito por Trotsky em seu artigo, uma aula de história comparativa, explicando como foi possível a vitória na Rússia e os motivos da derrota em Paris.

Ao fim deste esplêndido artigo, repleto de erudição histórica e ensinamentos para a luta revolucionária, Trotsky definiu que ao folhearmos toda a história da Comuna de Paris uma lição se sobressai entre tantas deste processo “é a necessária liderança partidária, forte e centralizada”. Para o revolucionário, o proletariado francês se sacrificou mais que qualquer outro no mundo, porém, também mais que qualquer outro, foi enganado pela burguesia e pequena-burguesia, pelos socialistas republicanos e democráticos, que apresentaram suas fórmulas mágicas de elegibilidade parlamentar, autonomismo e demais engodos que apenas fizeram (e fazem) apertar os grilhões nos pés proletários.

Imagem: Dugudus

150 anos de aprendizado e luta

O valor da Comuna de Paris de 1871 é inestimável. Todos os grandes revolucionários do século 20 estudaram este processo e extraíram seus ensinamentos, em especial Lênin e Trotsky, que, com os balanços necessários e longe de qualquer idealismo, puderam defender e criticar os rumos da revolução parisiense. Seus objetivos eram evidentes: não realizar os mesmos erros na Rússia, saudando e aprendendo com os atos heróicos da Comuna. Acima de tudo, travaram o combate pelo socialismo internacional, pela expropriação dos capitalistas de todas suas bases econômicas e políticas.

Os bolcheviques colocaram em prática a ação consciente de uma vanguarda operária e revolucionária, avançaram o projeto francês do século 19, arrancaram das mãos burguesas e monarcas os rumos da sociedade russa e consolidaram a luta internacionalista. Deixaram claro que deve ser tarefa dos marxistas e da classe trabalhadora aprender com a história, adquirir todo o acúmulo da ação dos homens no tempo, pois isto nutre nosso presente e nos permite diminuir nossos erros.

Portanto, realizemos a tarefa da humanidade de construir um partido revolucionário, uma direção marxista, que aprende com a história da luta de classes, com toda a ciência, arte e economia acumulada até nossos dias. Apenas assim seremos capazes de intervir concretamente no movimento da classe trabalhadora. Isso significa não apenas barrar os ataques do capitalismo senil e assassino, mas, fundamentalmente, estarmos qualificados para dirigir a derrocada final deste modo produtivo decrépito para a construção de um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres, tal como era o sonho dos communards.

1 TROTSKY, Leon. Sous la banniere de la Commune, 1917. Disponível em: <https://www.marxists.org/francais/trotsky/oeuvres/1917/03/commune.htm>. Acesso em: 14 de abril de 2021.

2 TROTSKY, Leon. Lessons of the Paris Commune, 1921. Disponível em: <https://www.marxists.org/archive/trotsky/1921/02/commune.htm>. Acesso em: 14 de abril de 2021.

3 Livraria Marxista. América Socialista 18. Disponível em: <https://loja.livrariamarxista.com.br/produto/america-socialista-18/>. Acesso em: 16 de abril de 2021.