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A decadência da esquerda que protesta para opinar sobre a taxa Selic

O Comitê de Política Monetária (Copom), órgão responsável por definir a taxa básica de juros no país, a chamada taxa “Selic”, reuniu-se quando ela estava fixada em 13,75% no dia 22 de março. O curioso sobre esse encontro foi que, no dia anterior, centrais sindicais e movimentos populares realizaram atos em todo o país para pressionar o Copom a reduzir a Selic. O resultado não foi nem de longe suficiente para causar qualquer pressão. A tentativa de levar a classe trabalhadora às ruas para opinar nos negócios da burguesia, ou seja, em negócios que envolvem a remuneração do capital e a exploração do trabalho, resultou em atos com algumas dezenas de pessoas, marcados pela presença da burocracia sindical e praticamente sem juventude.

O argumento dos organizadores foi o de que juros altos afetam negativamente a oferta de crédito, o custo da dívida pública, o endividamento das famílias, os investimentos produtivos, a geração de empregos etc. Tal explicação para estes problemas é tão simples quanto equivocada, e vamos mostrar o porquê.

Taxas de juro altas são utilizadas pelos governos e bancos centrais em todo o mundo sob a tese de que sua elevação é uma ferramenta eficaz para conter a inflação, isto é, para conter os efeitos em cadeia gerados pela perda do poder de compra do dinheiro. Resumidamente, o dinheiro perde poder de compra quando, por exemplo, uma crise mundial prejudica o lucro ou a expectativa de lucro dos capitalistas, que decidem cortar investimentos na produção. Ou, quando uma pandemia ou guerra faz com que as mercadorias não sejam produzidas ou não cheguem aos seus destinos, criando escassez. Além disso, quando a economia é inundada por dinheiro fictício criado pelo Estado, como foi após a crise de 2008 e durante a pandemia de Covid-19 para tentar evitar uma crise maior, o dinheiro também desvaloriza.

Elevar taxa de juros é uma tática que aumenta a remuneração do dinheiro guardado nos bancos para tirá-lo de circulação – o que inclui a massa salarial e serviços públicos –, aumentando seu poder de compra. O centro da tática não é manter as suadas economias dos trabalhadores depositadas, mas sim o capital dos capitalistas. Com juros altos, o capital é melhor remunerado quando parado, tornando menos interessante os investimentos na exploração do trabalho pela via do capital industrial. Isso é importante para os capitalistas em períodos em que as suas taxas de lucro caem – e caem fruto de contradições do próprio sistema.

Segundo Lula, que reclama da taxa de juros desde a campanha eleitoral e é o principal idealizador dos protestos pela sua redução, em entrevista para CNN Brasil, “só quem gosta de juros altos é o sistema financeiro, sabe, que sobrevive e vive disso, e ganha muito dinheiro com as especulações”. Ele está certo, mas parou na metade da explicação.

Foto: Gibran Mendes/Fotos Públicas
Com menos dinheiro em circulação há menos investimentos, menos empregos, menos empréstimos concedidos etc.? Talvez. A economia não é uma ciência exata e depende de uma série de circunstâncias. Durante décadas, as principais economias do mundo operaram com taxas de juros oficiais zeradas ou até mesmo abaixo de zero e isso não provocou um enorme afluxo de dinheiro na produção industrial, não diminuiu a quantidade de capital fictício investido no mercado financeiro nem diminuiu o peso da dívida pública.

Enfim, Lula está correto, os efeitos dos juros altos são péssimos para a classe trabalhadora e só favorecem o sistema financeiro. Mas podemos dizer o contrário? Isto é, que seria ótima uma situação de juros baixos onde uma maioria de trabalhadores com baixa qualificação é lançada para ocupar vagas necessárias à indústria para ter sua mais-valia expropriada enquanto recebe salários miseráveis? E como afirmar que o capitalismo de hoje teria, em franca crise e empreendendo uma nova corrida armamentista, diante de si uma expansão industrial significativa, um “boom econômico” em qualquer país?

A defesa de uma redução da taxa de juros demonstra a visão de mundo de uma esquerda que acha mais eficiente opinar nos negócios em crise dos capitalistas, do alto dos seus cargos no Estado ou regados pelo dinheiro dele, do que lutar por um governo dos trabalhadores. Essa esquerda teme a revolução mais do que a exploração. Na verdade, quer participar dessa exploração abocanhando uma fatiazinha da mais-valia como remuneração pelos seus serviços de conciliação de classe.

Na verdade, a cruzada de Lula contra os juros altos é pura demagogia. Trata-se de culpar o atual presidente do BC – que foi indicado por Bolsonaro – como responsável pelos juros altos. Se Lula realmente quisesse resolver este problema, bastava revogar a “independência” do BC e nomear sua equipe para gerir a taxa de juros como gostaria. Acontece que, no mundo todo, devido à alta da inflação, os bancos centrais estão aumentando a taxa de juros. Por exemplo, o FED, banco central americano, subiu a taxa oficial mais uma vez, em 0,25 pontos percentuais, após o colapso do Silicon Valley Bank e do Signature Bank e a tendência é continuar aumentando. Isso força as demais economias globais a aumentar suas taxas de juros também, para evitar uma fuga de capitais para os títulos da dívida americana. Portanto, mesmo com sua própria equipe no BC, Lula dificilmente conseguiria baixar os juros significativamente.

Lula ignora também que os grandes capitalistas especulam e ganham montanhas de dinheiro mesmo com taxas de juros baixas e uma economia “aquecida”. As maiores empresas capitalistas participam do mercado financeiro são sociedades por ações, e é através delas que a especulação ocorre nos mercados financeiros. Basta olharmos para o recente caso de fraude na Americanas, que já foi uma das maiores varejistas do Brasil, ou mesmo para declarações de Elon Musk que inflam o preço das ações de suas empresas do dia para a noite. Para barrar a especulação que Lula tanto odeia só há um meio: estatizar as maiores empresas nacionais e estrangeiras que atuam em nosso território, estatizar todos os bancos para criar um banco único do Estado para financiar a expansão industrial e romper com o capital financeiro internacional que suga a riqueza produzida no país.

Planificação sob controle dos trabalhadores é única a solução. É fantasioso lançar uma linha clara entre o banqueiro especulador e o capitalista industrial “bom”. O problema é a própria existência do mercado e sua lógica irracional, onde os trabalhadores são apenas números na mão de uma minoria de parasitas. Na época do imperialismo, os interesses particulares de industriais e banqueiros tornaram praticamente um só interesse. O mais impressionante é que não só a tradicional esquerda institucional opina sobre taxas de juros na economia capitalista, como as direções do PT e PCdoB, mas também PSOL, UP, PSTU e PCB, organizações que se divulgam como revolucionárias.

Enquanto os bancos e as maiores empresas não forem estatizados, colocados sob controle dos trabalhadores, e a dívida pública – que leva quase 50% do orçamento da União não parar de ser paga –, o Brasil, na sua condição de semicolônia, continuará na rota traçada pelo imperialismo: aprofundar sua condição de nação paraíso do rentismo e plataforma de exportação de minérios e alimentos a preços baixos. Nesse cenário, reivindicações como independência do banco central e juros baixos são apenas distrações fornecidas pelas direções traidoras, que, como vimos nas ruas, estão sendo ignoradas.