A decepção de Guedes: Dois anos de governo e nada de privatizações

Artigo publicado no jornal Foice&Martelo Especial nº 20, de 26 de novembro de 2020. CONFIRA A EDIÇÃO COMPLETA.

Governo ultraliberal e bonapartista? Só no blefe. Teto de gastos? Adeus. Contra o sistema? Só se for abraçado com o centrão e a política tradicional. Planeja-se neste governo obras públicas[1], renda básica[2] e aumento importante no bolsa família[3]. Guedes, que afirmou, justamente, estar frustrado com toda essa situação[4], perdeu recentemente a companhia do secretário de privatizações[5], que entregou o cargo imprestável. Bolsonaro está longe de ter se tornado um político de esquerda e antiprivatista, sabemos. O que ocorre é uma enorme pressão da burguesia por cautela diante de uma situação mundial explosiva.

E os partidos operários de massa que estão na oposição (PT e PCdoB)? O que estão fazendo? Depois de anos tomando café da manhã, almoçando e jantando com o centrão, banqueiros, empresários e rentistas, agora tentam construir a frente-mais-ampla-que-já-existiu, pela democracia burguesa e pela ordem social que está aí. O objetivo estratégico dessa frente é eleger em 2022 um candidato de um destes dois partidos, mas, se não der, ao menos que seja um que o centrão aprove em nome da tal república de 88 e contra o espantalho do “bolsonarismo”.

Essa expressão é muito frágil, na medida em que Bolsonaro não tem nenhum enraizamento prático na sociedade, é apenas o fantoche da vez da burguesia. Não há uma organização política estável, um conjunto de ideias para serem seguidas e divulgadas que tenham vindo do esforço de Bolsonaro. Apesar disso, é comum chamar de “bolsonarista” os políticos oportunistas que estão ao lado do governo – e que estariam com qualquer outro que os favorecesse.

Quando a esquerda reformista ataca Bolsonaro publicamente, busca, na verdade, mostrar à burguesia que sabe exercer melhor o cargo de chefe do Executivo. Durante o governo Dilma, quando ninguém falava de ameaça do bolsonarismo, foram entregues à iniciativa privada obras em portos, aeroportos, rodovias e estradas[6], foi leiloado o maior campo de petróleo do Brasil[7] e foi assinado um decreto que permite, até hoje, o uso das forças armadas contra civis, como em favelas e protestos[8]. “Vejam, capitalistas, nós podemos ajudar melhor do que Bolsonaro! Basta nos ajudar um pouquinho também!”.

Diante de uma maré insurrecional no mundo, a burguesia voltou a olhar para o reformismo como uma alternativa às aventuras e instabilidade do atual governo. Sabendo que sua cabeça estava a prêmio e vários pedidos de impeachment foram postos na mesa do Rodrigo Maia, Bolsonaro mudou seu discurso.

Se antes o presidente repudiava com ódio “o sistema”, o STF, e flertava com grupos de extrema-direita, agora quer aprender com os mais experientes – os mais fanáticos dizem que Bolsonaro está apenas “ganhando tempo”. Em um ato repleto de simbolismo, atravessou a Praça dos Três Poderes a pé em direção ao STF[9], aproximou-se do centrão e de Rodrigo Maia em diversos acordos de verbas e negociatas de cargos[10] e começa a pensar como colher o favoritismo nas pesquisas para garantir a reeleição em 2022[11]. Está em curso uma disputa encarniçada pelo cargo de favorito para administrar os negócios da burguesia no Executivo.

Em 2018, Bolsonaro serviu bem para impedir que o PT assumisse o governo e fosse pressionado pela sua base social para impedir as privatizações e contrarreformas. Agora, a situação é outra. Com protestos de massa na Colômbia contra a austeridade e a violência policial[12], com uma nova constituição no Chile arrancada nas ruas[13], com três presidentes em uma semana caídos no Peru após escândalos de corrupção[14], e com o abalo causado pelo Black Lives Matter no coração do capitalismo mundial, o chão da política está movediço.

Além disso, com a vitória de Joe Biden nos EUA como uma promessa de estabilidade, a burguesia prefere esperar os “efeitos Joe Biden” e as consequências do “grande reset”, proposto pelo Fórum Econômico Mundial, antes de apostar novamente em uma austeridade direta. Por isso as privatizações estão emperradas, a reforma administrativa não sai, novas contrarreformas foram engavetadas e a própria esquerda reformista volta a ser vista como uma aliada. Tudo reflexo da luta de classes em efervescência e da economia mundial, que já vinha debilitada e foi mais ainda pela pandemia do novo coronavírus.

Enquanto a incerteza no futuro é a única certeza para a burguesia, os trabalhadores têm a certeza de que uma nova traição os espera. Basta pouca coisa para que o país pegue fogo e entre em sintonia com as insurreições que ocorrem em diversos países. A burguesia tentará ao máximo evitar protestos no Brasil, pois sabe que ao colocar em choque massas insatisfeitas com os cachorros loucos do incontrolável aparelho das polícias militares, colocará em risco não só Bolsonaro, mas todo o cinturão protetor que foi construído pela esquerda em torno do seu domínio econômico.

Referências

[1] https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2020/08/14/bolsonaro-cita-respeito-a-teto-de-gastos-mas-acerta-r-5-bi-extras-para-obras.htm

[2] https://fdr.com.br/2020/11/13/renda-brasil-vira-problema-para-governo-bolsonaro-e-perde-chances-de-validacao/

[3] https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/08/31/orcamento-2021-governo-propoe-aumento-de-quase-20percent-no-bolsa-familia-para-r-3485-bilhoes.ghtml

[4] https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/11/10/guedes-se-diz-bastante-frustrado-por-nao-ter-conseguido-vender-uma-estatal-em-2-anos-de-governo.ghtml

[5] https://www.bbc.com/portuguese/brasil-53759942

[6] https://epoca.globo.com/tempo/noticia/2015/06/entenda-o-pacote-de-concessoes-ou-privatizacoes-do-governo-dilma.html

[7] http://g1.globo.com/economia/noticia/2013/10/governo-faz-nesta-2-leilao-de-libra-maior-reserva-de-petroleo-do-brasil.html

[8] https://oglobo.globo.com/brasil/dilma-assina-decreto-de-garantia-da-lei-da-ordem-para-rio-12022760

[9] https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/07/bolsonaro-atravessa-praca-dos-tres-poderes-a-pe-e-vai-ao-stf-acompanhado-de-ministros.ghtml

[10] https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2020/10/05/interna_politica,1191606/bolsonaro-virou-refem-nos-bracos-do-centrao.shtml

[11] https://veja.abril.com.br/blog/thomas-traumann/bolsonaro-perdeu-mas-segue-favorito-para-2022/

[12] https://www.bbc.com/portuguese/internacional-50533914

[13] https://congressoemfoco.uol.com.br/mundo-cat/chile-aprova-nova-constituinte/

[14] https://www.folhape.com.br/noticias/4o-presidente-em-4-anos-sagasti-assume-no-peru-e-diz-que-vai/162484/