“O anúncio da demissão de 500 mil trabalhadores do setor estatal cubano anunciado dia 13 de setembro sem dúvida marca uma encruzilhada no futuro do país e de sua Revolução.”
O anúncio da demissão de 500 mil trabalhadores do setor estatal cubano anunciado dia 13 de setembro sem dúvida marca uma encruzilhada no futuro do país e de sua Revolução. Estes trabalhadores que representam 10% dos empregados do Estado – que por sua vez emprega 85% de toda a mão de obra do país – deverão agora ser realocados para atividades autônomas, cooperativas ou então para empresas privadas que os contratarão como assalariados, abrindo-se um inédito precedente na história do país pós-Revolução.
O objetivo declarado de tais medidas é impulsionar o crescimento da produtividade e da renda da economia cubana em novos empreendimentos à parte das empresas puramente estatais. Sem dúvida, as condições econômicas do país se agravaram drasticamente com a crise mundial. A queda nas exportações (concentradas em níquel, açúcar e tabaco) e a diminuição do turismo que é a principal atividade do país em termos de valor, agravaram a escassez de dólares. Com isso, o país tem sido obrigado a reduzir as suas importações, inclusive de alimentos. [Nota: Cuba importa cerca de 70% dos alimentos que consome.]
As dificuldades da conjuntura internacional contribuíram para reduzir o crescimento econômico e debilitar as finanças do governo. O PIB que chegou a crescer 12% em 2006 cresceu apenas 1,4% em 2009. Ao mesmo tempo o déficit fiscal do governo – diferença entre arrecadação e gastos – chegou em 2009 a quase 7% do PIB.
Se de um lado a recente crise mundial ajudou a trazer o quadro que descrevemos acima, por outro lado a persistência das dificuldades de Cuba tem raízes bem mais profundas e estruturais. As gigantescas conquistas sociais da Revolução Cubana, como sua educação e saúde universalizadas e de qualidade, não podem anular o fato de que Cuba é um país de economia pequena e tecnicamente atrasada, e que ainda é encurralado pelo bloqueio comercial e financeiro dos EUA.
Quando da vitória da Revolução em 1959, o povo cubano tinha diante de si a difícil tarefa de construir o socialismo, não apenas contra a hostilidade do mundo capitalista externo, mas também contra seu próprio passado de economia semi-colonial e pouco industrializada. O fim da cooperação econômica do bloco soviético no início dos anos 90 agravou ainda mais a situação.
A sobrevivência da Revolução Cubana até os dias de hoje é algo que move paixões de hostilidade à direita e de solidariedade à esquerda. Se Cuba é de um lado a comprovação de que é impossível o socialismo num país só, por outro lado também ela é a demonstração de que mesmo em condições tão adversas é possível melhorar as condições de vida ao se planificar a economia de acordo com as necessidades do povo e não do capital.
A questão que se coloca hoje é saber se as medidas propostas pelo governo poderão ou não amenizar o dilema em que Cuba se encontra…
Modelo chinês?
Como dissemos, a baixa produtividade e a falta de diversificação da economia cubana tornam o país profundamente dependente dos mercados externos. Não apenas o país tem que importar muito, como também tem que realizar um esforço gigantesco em função de sua base técnica inferior para produzir produtos exportáveis em troca de suas importações. Não é por outro motivo que o incentivo ao turismo foi a tentativa do governo cubano de remediar tais obstáculos.
O consumo subsidiado pelo governo é insuficiente em relação à demanda do povo que não tem acesso aos pesos conversíveis (CUCs). Estes últimos, cujo valor é 25 vezes o dos pesos comuns e que foram originalmente concebidos para serem utilizados por turistas em lojas especiais e impedir a evasão de dólares, passaram a ser extremamente desejados pela população em busca da complementação de sua renda. Ao mesmo tempo atividades de mercado negro se proliferam diante das dificuldades do Estado em prover os bens requisitados pela população.
É nesse quadro que o governo propõe as novas medidas. O reforço do setor privado da economia será complementado por estímulos à entrada de capital externo, tanto no turismo como em outros setores. Para cortar gastos, o governo fala em retirar os subsídios que permitem que serviços e bens sejam adquiridos a baixo preço pela população.
Não se pode dizer de antemão se tais medidas terão sucesso em aumentar a produção em Cuba e se conseguirão também trazer os recursos externos de que o país necessita no curto prazo. É possível que sim. Todavia, independentemente disso, a perspectiva da adoção com sucesso no longo prazo em Cuba do “modelo chinês” como querem alguns é totalmente falsa. O “milagre” chinês, baseado na mão de obra baratíssima das populações oriundas da zona rural e na utilização de infra-estrutura pré-existente relativamente desenvolvida de um país de dimensões continentais, ao mesmo tempo em que acarretou em altas taxas de crescimento econômico, por outro lado só fez aumentar o fosso entre pobres e ricos. E uma alta proporção destes novos ricos são justamente os representantes da burocracia de Estado que mantém a ferro e fogo o controle da política.
Modelo Chinês significa capitalismo e é a esse sistema que a China já aderiu. A idéia de se promover o mesmo modelo em Cuba só pode minar a longo prazo a perspectiva do socialismo. Ao mesmo tempo, a reintrodução do capitalismo em Cuba de forma alguma abre a perspectiva de solucionar sua pobreza. O futuro de uma Cuba capitalista não pode ser o de uma Suécia ou de uma Holanda capitalistas. A hierarquia mundial do capitalismo só poderá oferecer a Cuba um futuro semelhante a seus países vizinhos que não puderam seguir seu exemplo revolucionário: dependência, pobreza e desigualdade social.
A solidariedade internacional a Cuba
O próprio Fidel recentemente havia criticado setores do governo que defendiam o “modelo chinês” justamente por acreditar que isso poria em xeque a própria Revolução Cubana. Entretanto, as novas medidas adotadas caso sejam permanentes e irreversíveis tendem inevitavelmente a reproduzir na sociedade cubana relações de produção cada vez mais capitalistas criando complicações políticas, econômicas e sociais imprevisíveis.
Não se trata aqui de adotar a ingênua posição de que nada deve ser feito em Cuba. Tampouco é certo adotar uma posição de princípio contra qualquer estímulo às atividades privadas e à entrada de capital externo diante da conjuntura cubana efetiva. O exemplo histórico da NEP na URSS nos anos 20 mostrou como foram necessários e úteis expedientes deste tipo para dar um fôlego necessário à economia soviética.
Todavia, a política de abertura ao mercado na URSS foi arquitetada de forma a ser temporária e com limites bem definidos. Pois do contrário é certo que ela minaria as bases de qualquer possível desenvolvimento futuro do socialismo.
Por isso, a única solução para a encruzilhada cubana se encontra no plano da política. É claro que o avanço da Revolução na América Latina, em especial na Venezuela, seria algo extraordinário para Cuba. Mas, para além desta possibilidade, é necessário intensificar a pressão contra o embargo dos EUA, mas também exigir que governos como o do Brasil intensifiquem a cooperação econômica com Cuba nas mais diferentes formas: acordos comerciais, empréstimos, doações, subsídios, intercâmbio de profissionais (por exemplo, os médicos cubanos). Apenas 4% das relações comerciais de Cuba com o exterior são feitas com o Brasil, enquanto que 25% são feitas com a Venezuela, país economicamente muito menor que o nosso.
Cuba pode dar um passo atrás hoje para dar dois passos à frente amanhã? É possível. Mas isso depende de duas condições.
Primeiro, é preciso afrouxar a corda que sufoca a Revolução Cubana e evitar que ela seja derrotada pela lógica implacável e destrutiva do capital. Por isso, a solidariedade internacional é fundamental. E isso não apenas pela ajuda material que ela haveria de trazer, mas também por que tal ajuda certamente contribuiria para a segunda condição: aumentar a confiança dos cubanos em sua própria Revolução.
Pois, afinal, em última instância quem vai dar a última palavra é o povo cubano. O mesmo povo que tão bravamente mostrou ao mundo sua combatividade, seu ódio à opressão, e seu desejo de uma sociedade socialista livre e justa, não há de aceitar passivamente que vençam aqueles que dentro e fora de Cuba querem minar esse sonho. É preciso que aumente a participação do povo cubano nos rumos políticos e econômicos para que se evite que os interesses burocráticos e/ou capitalistas dêem o tom da situação, antes que seja tarde demais.