Imagem: IRNA, Fotos Públicas

A fome que mata crianças atinge também os últimos jornalistas em Gaza

A fome em Gaza se aprofunda. Ela está estampada nos principais jornais, nas redes sociais e torna cada vez mais difícil ignorar a situação. Segundo a Classificação Integrada de Fases da Segurança Alimentar (IPC), produzida por uma revisão técnica apoiada pela ONU, cerca de 2,3 milhões de pessoas em Gaza, vivem, neste momento, o “pior cenário possível de fome”. Dentre elas, aproximadamente 470 mil em “níveis catastróficos”. 

Uma reportagem no site da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) denuncia:

“Na clínica de Al-Mawasi, no sul do território, e na clínica de MSF na Cidade de Gaza, no Norte, registramos o maior número de quadros de desnutrição já atendidos por nossas equipes na Faixa de Gaza. É necessário permitir urgentemente a entrada contínua de alimentos e suprimentos médicos.

[…] Atualmente, mais de 700 mulheres grávidas e lactantes e quase 500 crianças com desnutrição grave e moderada estão inscritas nos centros de nutrição terapêutica ambulatorial nessas duas instalações de saúde.

É a primeira vez que testemunhamos uma prevalência tão grave de casos de desnutrição em Gaza”, afirma Mohammed Abu Mughaisib, coordenador médico adjunto de MSF em Gaza. ‘A fome da população de Gaza é intencional e poderia acabar amanhã se as autoridades israelenses permitissem a entrada de alimentos em escala suficiente’.”

No meio de tudo isso, os últimos olhos do mundo sobre esse massacre estão sendo fechados por Israel. Com a proibição de entrada da imprensa de outros países, todas as agências internacionais dependem dos jornalistas palestinos e dos poucos estrangeiros que ainda permanecem no território, mas eles também estão morrendo por falta de comida e água. 

Desde 7 de outubro de 2023, mais de 200 jornalistas morreram na Faixa de Gaza, sendo a maioria palestinos, segundo a ONG Repórteres sem Fronteiras. A história do jornalismo de guerra conheceu grandes nomes, como Robert Capa, Ernie Pyle, Sebastião Salgado, Ernest Hemingway, John Reed, Martha Gellhorn, Emily Hobhouse, entre tantos outros. Muitos deles sofreram privações, adoeceram e até mesmo passaram por longos períodos com alimentação precária. No entanto, os números de comunicadores mortos e famintos em Gaza já fazem dessa uma das tragédias mais letais da história da imprensa.

Em 2024, mais de 60 veículos internacionais assinaram uma carta conjunta pedindo a proteção dos jornalistas que ainda atuavam na região, com a criação de corredores humanitários e ajuda internacional para trabalhadores da imprensa. Desde então a situação só piorou. 

No último 24 de julho, quatro importantes agências de notícias internacionais, BBC News, Agence France-Presse (AFP), Associated Press (AP) e Reuters, assinaram um comunicado conjunto:

“Estamos extremamente preocupados com nossos jornalistas em Gaza, que estão cada vez mais incapazes de alimentar a si mesmos e a suas famílias. Há muitos meses, esses jornalistas independentes têm sido os olhos e ouvidos do mundo em Gaza. Agora, enfrentam as mesmas condições extremas das pessoas sobre as quais estão fazendo a cobertura. Jornalistas já enfrentam muitas privações e dificuldades em zonas de guerra. Estamos profundamente alarmados com o fato de que a ameaça de fome passou a ser mais uma delas. Mais uma vez, apelamos às autoridades israelenses que permitam a entrada e saída de jornalistas em Gaza. É essencial que suprimentos adequados de alimentos cheguem à população local.”

Na segunda-feira (28/07), os jornais de todo o mundo noticiaram a morte do ativista palestino Odeh Hadalin, conhecido por sua atuação contra demolições promovidas por Israel e por sua participação no documentário vencedor do Oscar “Sem Chão”. Ele foi baleado por um colono israelense na vila de Umm al-Kheir, que fica em uma das áreas mais tensas da Cisjordânia. Nesta região, que é um território palestino ocupado, existem atualmente 140 assentamentos israelenses, com cerca de 450 mil colonos, que continuam se expandindo. 

Em março, o codiretor do mesmo documentário Hamdan Ballal já havia sido linchado por colonos israelenses e detido por militares das Forças de Defesa de Israel que atuam na Cisjordânia.

Tudo isso é apenas mais um exemplo da hipocrisia de Israel, que se denomina como a única democracia do Oriente Médio, mas que ataca de forma mortal o princípio democrático fundamental da liberdade de imprensa. Os marxistas já desmascararam essa ideia há muito tempo. Em 1842, Marx escreveu:

“Em nenhum lugar o espírito específico dos Estados manifesta-se mais claramente que nos debates sobre a imprensa. Na oposição à liberdade de imprensa, bem como na oposição à liberdade em geral da mente em qualquer esfera, os interesses individuais dos Estados particulares, a natural unilateralidade dos seus caráteres, aparecem em forma franca e brutal, mostrando simultaneamente seus dentes.” (Debates sobre a liberdade de imprensa e a comunicação, no livro Liberdade de Imprensa)

O que ocorre em Gaza não tem outro nome senão um genocídio, que já deixou cerca de 60 mil mortos, segundo autoridades locais de saúde. Todos os números são incertos, já que a maioria da infraestrutura do país, incluindo hospitais, foi destruída por Israel. No entanto, nas últimas semanas, dispararam os casos de desnutrição e mais de 100 organizações internacionais de defesa humanitária denunciaram a fome em massa. A Folha de São Paulo divulgou uma matéria nesta terça-feira (29/07) sobre os níveis catastróficos da fome em Gaza. 

Segundo o Organização Mundial da Saúde, foram registradas 74 mortes relacionadas à desnutrição em 2025, sendo que 63 ocorreram em julho, incluindo 24 crianças com menos de cinco anos. 

Os últimos jornalistas da Agência France-Presse que ainda permanecem no território alertaram “vamos morrer de fome”. Estes profissionais enfrentam não apenas os perigos da guerra, mas a falta de acesso à comida, água potável, assistência médica, combustível e a impossibilidade de sair do território de forma segura. Receber um salário de fora do país não ajuda. Não há comida para comprar. Além disso, o sistema bancário colapsou e qualquer transação, como sacar dinheiro, tem taxas de até 40%. Gaza enfrenta ainda ataques às linhas de telecomunicação por parte de Israel.

Uma carta assinada pela Sociedade de Jornalistas da AFP, publicada em 21 de julho, dizia: “Vemos a situação deles piorar. São jovens, estão perdendo peso e muitos já não têm mais forças físicas para trabalhar”. E alertava: “se nada for feito imediatamente, os últimos jornalistas em Gaza vão morrer”. 

Segundo o Organização Mundial da Saúde, foram registradas 74 mortes relacionadas à desnutrição em 2025, sendo que 63 ocorreram em julho, incluindo 24 crianças com menos de cinco anos / Imagem: Jaber Jehad Badwan, Wikipedia Commons

Em uma entrevista à Agência Pública, a jornalista e professora da Universidade Metodista de São Paulo, Cilene Victor, resumiu a denúncia: “Provocar a morte por inanição é uma forma horrenda de crime de guerra. Israel conseguiu atualizar todas as formas de violação de direitos humanos, e isso inclui jornalistas sendo colocados sob risco real de morrer de fome”. São redatores, fotógrafos, cinegrafistas… que relatam já não terem forças para segurar uma câmera ou redigir uma frase. 

Em entrevista ao G1, Bashar Taleb, fotógrafo selecionado este ano para o Prêmio Pulitzer, declarou: “Tive que interromper várias vezes meu trabalho para buscar comida para minha família”. Com 35 anos, ele vive entre as ruínas da sua casa em Jabaliya al Nazla, no norte de Gaza. “Pela primeira vez, me sinto completamente abatido”. 

As organizações Médicos Sem Fronteiras (MSF), Save the Children e Oxfam também divulgaram que os profissionais de saúde na região estão “definhando”.

Enquanto isso, o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, disse, no último domingo, que acusação de que Tel Aviv é responsável pela fome em Gaza é “uma mentira descarada” e que as forças israelenses possibilitaram a entrada da quantidade exigida pelo direito internacional de ajuda humanitária. De acordo com ele, o Hamas estaria roubando os suprimentos. 

Essa afirmação, que não é nova, foi desmentida em junho em um relatório produzido pela Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), dissolvida em 1º de julho por Trump e por Elon Musk, à frente do Departamento de Eficiência Governamental. De acordo com uma reportagem do New York Times, oficiais militares israelenses também admitiram que não tinham evidências de que o Hamas roubava rotineiramente o auxílio da ONU.

Enquanto isso, o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, afirma que acusação de que Tel Aviv é responsável pela fome em Gaza é “uma mentira descarada” / Imagem: ONU News

O longo caminho que os palestinos precisam percorrer e os assassinatos nas filas por comida também têm sido denunciados. Antes de março deste ano, a distribuição de alimentos ainda estava sendo feita em cerca de 400 pontos do território, supervisionados pela ONU. No entanto, desde o final de maio, a distribuição está sendo feita pela polêmica Fundação Humanitária de Gaza (GHF), grupo apoiado pelos EUA, em apenas quatro lugares, todos localizados em zonas controladas por Israel, das quais os civis receberam ordens de evacuação.

Esses locais estão conectados a zonas desmilitarizadas por caminhos que começam com pelo menos quatro quilômetros de distância. Por isso, multidões precisam percorrer longas distâncias em áreas de bombardeios. Não bastasse, o Exército israelense já matou mais de 1 mil pessoas que buscavam comida nas filas desta fundação.  

O genocídio é tão evidente que cada vez mais crescem no interior de Israel manifestos e protestos contra a guerra

Segundo matéria da revista The Economist, mais de 240 instituições de caridade e ONGs pediram o fechamento da GHF. Em 21 de julho, 31 governos, incluindo o Reino Unido e a França, acusaram Israel de “distribuir ajuda a conta-gotas” e pediram que cumprisse suas obrigações sob o direito humanitário. Essa ação, no entanto, é apenas cosmética. Esses estados fazem o jogo do imperialismo enquanto manifestam um falso apoio aos palestinos.

Agora, Israel anuncia que interromperá os combates em partes da Faixa de Gaza para permitir a entrada de mais ajuda e que o sistema GHF será complementado por lançamentos aéreos e suprimentos adicionais da ONU e de outras agências. Mas, mesmo que essas promessas sejam cumpridas, elas são ainda muito insuficientes.

No Brasil, o governo Lula, apesar das declarações contra o genocídio, não toma nenhuma medida econômica concreta para romper relações com Israel.

Enquanto o povo palestino está sendo massacrado, grandes corporações capitalistas lucram, incluindo a Petrobras, que segue fornecendo combustível às forças armadas israelenses para seus tanques, navios e aviões.

Diante de toda essa hipocrisia, a Organização Comunista Internacionalista (OCI) explica que a única arma dos oprimidos do mundo são os métodos de luta da classe trabalhadora internacional. É preciso uma revolução, que inclua a classe trabalhadora de Israel e de todos os povos da região. 

Da mesma forma, cabe aos revolucionários comunistas de todos os países a tarefa primeira de pressionar seus próprios governos, exigindo ruptura de relações comerciais, diplomáticas e políticas com o Estado sionista de Israel.

No Brasil, o governo Lula, apesar das declarações contra o genocídio, não toma nenhuma medida econômica concreta para romper relações com Israel / Imagem: Evandro Colzani

Tomemos como exemplo os trabalhadores portuários da Suécia e da França, que decidiram em assembleia bloquear o envio de cargas militares a Israel; dos trabalhadores portuários de  Oakland, Estados Unidos, que se recusaram a carregar um navio israelense; dos funcionários civis do aeroporto de Pisa, Itália, que se recusaram a continuar carregando um voo militar disfarçado de ajuda humanitária que levava armas a Israel; dos portuários de Durban, África do Sul, que impediram a atracação de um navio; de trabalhadores dos setores ferroviários e industrial de Leicester, Inglaterra, que bloquearam os portões da fábrica da Elbit Systems, fornecedora militar de Israel, entre outros. 

No Brasil, a iniciativa dos petroleiros de se contraporem ao envio de petróleo brasileiro a Israel foi importante. Mas ela precisa se traduzir em ação, em greve, para pressionar o governo Lula a tomar uma atitude. 

O mesmo exemplo precisa ser seguido pelos jornalistas. Não há como depositar esperanças nas empresas de comunicação, que seguem financiadas pelos governos e grandes grupos econômicos. Os mitos de neutralidade, imparcialidade e apoliticidade no jornalismo há muito contribuem para a desorganização desses trabalhadores e para a manutenção do status quo.  

Além disso, é preciso ajustar o curso da política defendida. A solução apresentada pela maior parte dos movimentos e partidos de esquerda, de criação de dois Estados, reconhecendo a legitimidade do Estado de Israel, nada resolve. A OCI defende que, em primeiro lugar, é preciso parar o genocídio. E que a solução definitiva para a questão palestina só virá com uma revolução, com o levantamento dos trabalhadores de Israel ao lado dos palestinos e dos povos da região, com o fim do Estado sionista de Israel e com a criação de um Estado único e laico em todo o território histórico da Palestina, onde todos os seus cidadãos terão direitos democráticos iguais, independente de suas origens e crenças. 

Isso só poderá ser conquistado com a unidade internacional da classe trabalhadora. 

Francine Hellmann é militante da OCI, jornalista, trabalhadora da Companhia Águas de Joinville e diretora do Sintraej. Foi jornalista do mandato do vereador Adilson Mariano, em Joinville, e do Sinsej.