As apurações de votos das eleições americanas colocam o democrata Joe Biden à frente na disputa pela Casa Branca, mas nada está garantido. Apesar disso, essa não é uma questão que está dada e, independente do resultado, não se trata de um processo que beneficiará a classe trabalhadora. Em primeiro lugar, como explicamos anteriormente, Trump e Biden são candidatos dos dois principais partidos burgueses dos EUA e representam os interesses da classe dominante. Em segundo, o processo eleitoral norte-americano não é e nunca foi pensando para ser realmente democrático.
Esse sistema distorcido possibilita, inclusive, que o candidato mais votado pela população não seja o eleito. Apesar de raro, foi o que aconteceu nos anos de 1824, 1876, 1888, 2000 e 2016. Em 2000, por exemplo, o republicano George W. Bush foi eleito ao conquistar 271 delegados, com 50.456.987 votos diretos, entretanto seu oponente, Al Gore, conquistou 51.003.926 votos diretos e ficou com 266 delegados. A diferença entre Hilary Clinton e Trump foi ainda maior em 2016, quando a democrata perdeu as eleições mesmo fazendo 3 milhões de votos a mais que seu oponente. Enquanto essas linhas são escritas, Biden já é o candidato mais votado da história dos EUA em números absolutos e mesmo assim pode não ser o próximo presidente do país.
O processo eleitoral
Nos EUA o voto é indireto, o que significa que não importa o número de votos absolutos nas eleições, mas, sim, o número de delegados no colégio eleitoral. Cada estado tem direito ao número de delegados correspondentes à quantidade de vagas no Congresso americano (Câmara dos Deputados e Senado). O estado da Flórida, por exemplo, tem 27 vagas na Câmara e duas no Senado, somando 29 delegados no colégio eleitoral. As vagas na Câmara são distribuídas de acordo com a população de cada estado.
A questão é que, os delegados de um estado são obrigados a votar no candidato vencedor: winner-takes-all (o vencedor leva tudo). Então, mesmo com uma votação acirrada na Flórida, não importa se um candidato recebeu 49% dos votos dos mais de 20 milhões de habitantes, todos os delegados serão do vencedor.
Apenas dois estados fogem à regra: Maine e Nebraska. Neles, a votação é conduzida distrito a distrito. Vai um delegado para o vencedor de cada distrito e um, de bônus, para quem ganhou a eleição no estado inteiro.
Cada estado é dividido em distritos eleitorais, que são modificados pelos legislativos estaduais, garantindo desta forma que a minoria se torne maioria em vários estados (tanto democratas como republicanos) e “evitando” que o Estado mude “sua” preferência política.
O número total de votos no colégio eleitoral é de 538 e ganha quem chegar a 270 votos (50% mais um).
Origem
Para entender por que isso ocorre, é preciso retomar à origem desse processo, isto é, na Constituição dos EUA enquanto Estado burguês moderno.
Ao se fazer a independência dos EUA, ao lado das instituições que depois se tornariam tradicionais na democracia burguesa da maioria dos países imperialistas – Parlamento e Judiciário – foi instituído um “Presidente” que cumpria um papel quase de um “rei por quatro anos”, em regime parlamentarista – o Congresso aprovava leis e orçamentos, mas quem governava o país de fato era o presidente. A outra notável exceção nos países imperialistas é a França, que também tem um “presidente” (já teve reis e imperador em regime parlamentarista).
O voto indireto foi instituído pela primeira vez nos Estados Unidos em 1787, com a formulação da primeira Constituição. Os eleitores de cada estado escolhiam os representantes que se reuniam em uma conferência nacional, o colégio eleitoral. Nessa conferência, esses representantes – delegados – debatiam entre si e escolhiam o presidente.
Esse processo rapidamente se modificou e os delegados começaram a escolher seus candidatos antes mesmo da conferência nacional. Já no início do século 19, os estados – que possuem um certo nível de autonomia – aprovaram leis obrigando todos os delegados daquele estado a votar no mesmo candidato, sendo, obrigatoriamente, o que recebeu a maioria dos votos naquela unidade federativa.
Em 1830, o modelo como conhecemos hoje já estava em vigor, ou seja, uma mescla entre a proposta do colégio eleitoral e o voto popular nos estados.
O voto indireto pode parecer um modelo progressista se compararmos os EUA com as monarquias vigentes na Europa no século 18, entretanto, é preciso compreender que o objetivo dos pais fundadores da nação norte-americana não era garantir um governo da maioria sob a minoria. Se por um lado compreendemos a revolução americana – período entre a Guerra de Independência (1775-1783) e a Guerra da Secessão (1861-1865) – como um momento progressista da história humana, por outro, a degeneração e decadência deste modelo se deu de forma rápida e avassaladora. Devemos compreender, portanto, que se trata de um Estado imperialista e por mais democrático que seja, jamais permitiria uma forma “legal” de perder o seu poder político de uma minoria sobre a maioria da população.
Lembramos que no momento da independência, os “Estados Unidos” eram 13 estados, e os demais foram constituídos pelas expansões: para o Oeste, por meio da guerra com os indígenas, que dominavam efetivamente esta parte; para o Sul, por meio da guerra com o México (1846-1848) e com a Espanha (1898), que levou à ocupação de Porto Rico (colônia dos EUA até hoje) e de Cuba (“protetorado” até a Revolução Cubana); para o Norte, por meio da compra de parte do Canadá da França (guerra com a Inglaterra). Depois disso, houve a “compra” do Alaska (1856) e a invasão do Havaí (concretizada em 1897).
Esta expansão não modificou a Constituição originária dos EUA, nem mesmo a Guerra Civil. Em essência, trata-se de um “acordo” para a mútua defesa e organização dos diferentes Estados burgueses, nos quais a soberania popular sobre o conjunto da nação tem pouca influência.
Destaca-se também uma característica dos EUA, que não existe em nenhuma outra nação imperialista: o poder do Senado Federal, constituído por dois representantes por estado (no Brasil, temos uma cópia disso, com três senadores por estado). Assim, o parlamento bicameral acaba dando ao presidente uma força que ele não teria imediatamente, já que sempre pode jogar entre a Câmara e o Senado.
Eleições indiretas no Brasil
Ao longo de sua história, o Brasil elegeu oito presidentes de forma indireta. Deodoro da Fonseca (1889-1891), Getúlio Vargas (1934-1937), Humberto de Alencar Castello Branco (1964-1967), Arthur da Costa e Silva (1967-1969), Emílio Garrastazu Médici (1969-1974), Ernesto Geisel (1974-1979), João Baptista de Oliveira Figueiredo (1979-1985) e Tancredo de Almeida Neves, que morreu antes de assumir o cargo em 1985.
Ironicamente, o sistema eleitoral da maior “democracia” do mundo, foi o mesmo adotado pela Ditadura Militar brasileira (1964-1985). Durante esse período, prefeitos, governadores, deputados e o presidente eram eleitos pelos colégios eleitorais. A classe trabalhadora compreendeu a farsa desse sistema eleitoral e foi o combate ao voto indireto que possibilitou a conotação revolucionária da luta pelas “Diretas Já!” (1983-1985). Em plena ditadura, manifestações que iniciaram com a participação de 10, 15 mil pessoas chegaram a reunir mais de 200 mil na Praça da Sé, em São Paulo, e mais de 1 milhão de pessoas na Candelária, Rio de Janeiro.
A palavra de ordem “Diretas Já!” foi a reivindicação que colocou as massas em movimento para transformar a sociedade naquele momento e só não foi mais longe devido à traição das direções reformistas que buscaram o caminho da conciliação.
Entretanto, é correto afirmar que o voto direto é realmente democrático? Não. Devemos compreender que democracia burguesa como um todo é uma farsa. Assim como os ideais da Revolução Francesa de liberdade, igualdade e fraternidade, foram impossíveis de se aplicar na sociedade burguesa nascente, da mesma maneira, a democracia burguesa está muito longe de representar o poder de uma maioria sobre a minoria – é o completo oposto.
Nós vimos esse ano como o Partido Democrata se utilizou de todos os meios legais para impedir que Bernie Sanders pudesse ser o candidato para concorrer contra Trump – obviamente, puderam contar com a típica covardia reformista de Sanders. Porém, trata-se de um sistema feito para não funcionar quando estamos falando dos interesses da maioria.
A farsa eleitoral norte-americana foi criada com um propósito: garantir a estabilidade do sistema, dos seus partidos, isto é, a estabilidade necessária para a burguesia realizar os seus negócios e manter o seu poder político.
O combate para expor a podridão desse sistema eleitoral e para derrubar as ilusões na democracia burguesa passa pela luta pelas eleições diretas e pela derrubada do atual regime. A verdadeira democracia, a democracia operária, só será conquistada na luta pelo socialismo.