Vivemos agora, quando o mundo do trabalho conhece ofensiva de intensidade violenta, um estranho confronto, a “Guerra dos Turbantes”, de conteúdo ideológico e sentido que expressa e alimenta a fragilidade do movimento social no Brasil.
Apresentação:
A regressão teórica e a falta da profundidade necessária para análise dos fenômenos sociais em tempos de “pós-modernismo” têm levado a conclusões apressadas e vulgares se utilizando de um suposto marxismo.
Em tempo, surge luz novamente para levar a discussão a outro nível, sobre um acontecimento que despertou paixões e muita discussão, em especial nas redes sociais.
O acontecimento foi uma verdadeira guerra com várias posições e contraposições sobre o uso de turbantes. O fato aconteceu no final do ano passado com uma garota de pele clara, interpelada por uma mulher negra acusando a garota de “apropriação cultural”.
Antes de formar sua opinião sugiro a leitura do excelente artigo do Professor da Universidade Federal de Pelotas Mario Maestri.
Boa leitura.
José Carlos Miranda
Coordenador do MNS ( Movimento Negro Socialista)
Já tivemos a “Guerra das Laranjas”, no período colonial, com tiros e mortos e, século mais tarde, em plena República, a “Guerra das Lagostas”, apenas com impropérios diplomáticos. Vivemos agora, quando o mundo do trabalho conhece ofensiva de intensidade inaudita, um estranho confronto, a “Guerra dos Turbantes”, de conteúdo ideológico e sentido não desprezível, pois expressa e alimenta a fragilidade do movimento social no Brasil.
Em geral, os termos da declaração de guerra foram os seguintes. Eu sou negra, uso turbante. Tu és branca e necessariamente racista, mesmo se não sabes. Portanto, tira a mão de meu turbante. Se não o fizeres, serás liquidada com a acusação de “apropriação cultural”, ou seja, adesão simbólica à exploração racial e econômica que teus ancestrais realizaram aos meus, no passado, e de que sigo sendo objeto, por parte dos brancos, no presente.
O que impacta na presente “Guerra dos Turbantes” não é a verbalização de tais propostas estranhas, mas a repercussão que alcançam nos meios de esquerda e progressistas anti-racistas, aos quais são dirigidas. Nesses segmentos, não raro, elas alcançam ampla adesão, nem que seja por anatematizar de saída como racistas a todos os que não as aceitam.
História e Memória
Dizem que o Diabo sabe por que é velho, não por que é Diabo. Em inícios dos anos 1980, assisti no Rio de Janeiro à chegada do talvez primeiro missionário negro estadunidense da Fundação Ford – rosto gentil, do Departamento de Estado USA – oferecendo bolsas para estudar a escravidão e a África Negra naquele país. O oferecimento chamou-me a atenção pois, de volta ao país após sete anos de exílio, eu era então um dos poucos africanistas em mercado universitário que então desprezava aquela formação. O que me causou indiscutível espanto e apreensão foi o fato de que o formulário de candidatura exigia foto, já que o financiamento era, ainda que não explicitamente, apenas para estudantes negros. Isso hoje pode parecer normal, então causava ampla e geral surpresa e, até mesmo, indignação.
Naqueles anos finais da ditadura militar, no movimento negro que se organizava, dominavam as tendências de esquerda revolucionária, com destaque para a Convergência Socialista, onde eu militara, até havia poucos meses. Na CS, conheci grandes camaradas negros, como o João, no Rio Grande do Sul, o Flavinho, o Hamilton e outros, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Todos vinculavam, estreitamente, as lutas anti-racista e social, vistas como indissoluvelmente imbricadas. Impunha-se matar o dragão da maldade racista, que oprimia sobretudo os trabalhadores e populares negros, na luta contra suas reafirmações capitalistas.
Eram anos em que, junto com os Panteras Negras estadunidenses, as direções negras gritavam: – Nada de cotas! – Nada de migalhas, para alguns privilegiados. Escola de qualidade, pública e universal para todos os jovens negros. Mesmo que no início não se obtivesse tudo, deveria ser para todos, sem privilegiados. Naquele então, pouca atenção se dava às propostas inaceitáveis que chegavam dos USA de consolidar a sociedade e a exploração capitalista, pondo na vitrine algumas caras negras.
Por um desses paradoxos da história, em uma reunião da regional rio-grandense da Convergência Socialista, defendi, desavisado, a política das cotas, na primeira vez que a discutimos, em 1979, creio. Quase apanhei. O João, operário metalúrgico negro, muito respeitado, liquidou meus frágeis argumentos, explicando, com exemplos de seu cotidiano, a exigência de que a população negra mais explorada fosse contemplada e jamais esquecida, desde o primeiro momento. Apontou a proposta como saída dos segmentos médios negros colaboracionistas.
Luta Racial, Luta Social
A fusão da luta racial e social era antiga e tradicional política da esquerda comunista. Nos anos 1930, transitoriamente, comunistas brasileiros discutiram e enunciaram a proposta de um Estado negro independente na Bahia, certamente em transplantação apressada para os Trópicos das repúblicas autônomas soviéticas. Em 1929, o primeiro operário candidato à presidência do Brasil foi um comunista negro, o marmorista Minervino de Oliveira, como lembra o historiador Muniz Ferreira. José da Silva, comunista, foi o único “negro retinto” na constituinte de 1945 e, como tal, destratado pela imprensa burguesa. Carlos Marighella, célebre dirigente do PCB, era filho de operário italiano e tinha como avós maternos trabalhadores escravizados. Em geral, esse passado é desconhecido pelos militantes de esquerda, que, por falta de informação, assimilam a acusação de “insensibilidade marxista” à questão racial.
A própria consciência teórica da importância singular do escravismo em nosso passado foi em grande parte obra de pensadores comunistas, marxistas e esquerdistas, de todos os sabores, como Astrogildo Pereira; Duviano Ramos; Benjamin Perret; Clóvis Moura; Jorge Amado; Édison Carneiro; Décio Freitas, Emília Viotti da Costa, etc. Alguns deles propuseram a luta dos cativos contra a escravidão como formas fundamentais da luta de classes no Brasil, propondo que o âmago de nossa história até 1888 seria a saga da oposição inquebrantável do escravizado ao escravizador.
Em inícios de 1980, o movimento negro em organização e a luta contra o racismo sofriam a forte influência das classes trabalhadoras em ofensiva. Em 1978, vivemos verdadeiro “Ano Vermelho”, com vastíssimo renascimento das lutas sindicais. Nos anos seguintes, fundava-se o PT, aguerrido e anti-capitalista, e a CUT, classista e combativa. Foi nessa conjuntura de ofensiva social que nasceu o Movimento Negro Unificado, sob a forte influência assinalada.
A Maré Neo-Liberal
Tudo isso, porém, já faz parte da história. Em inícios dos anos 1980, em derrota epocal, que pesa ainda hoje sobre o destino da humanidade, maré contra-revolucionária mundial retrocedeu as organizações, as lutas e as consciências das classes trabalhadoras e subalternizadas. Triunfaram e tripudiaram as visões pró-liberais, conservadoras, colaboracionistas, irracionalistas, anti-operárias, sociais-democratas. Eram os tempos do “fim da história”, em que refluíram o estudo da história dos trabalhadores escravizados, dos operários, das mulheres populares, dos camponeses, etc.
No novo contexto, socialismo, revolução, solidariedade, uma sociedade sem racismo e opressão, etc. transformaram-se em verdadeiras aberrações indecentes, naturalizando-se a opressão. O individualismo e o social-darwinismo transformaram-se em axiomas sociais. O sucesso pessoal passou a ser o norte fixo da bússola a ser seguida, redirecionando suas visões legiões de políticos, ativistas, sindicalistas. No PT e na CUT, triunfaram as propostas colaboracionistas que transformaram a militância em caminho – direto ou torto – para o sucesso pessoal.
No PT, pôs-se fim ao partido dos núcleos em prol do partido dos parlamentares, dos administradores, dos capas-pretas. Em nome da ascensão social de segmentos populares, jamais realmente vista, sob o império da sociedade de classes, regou-se com a abundância a horta do grande capital industrial e sobretudo bancário. Militantes e sindicalistas metamorfosearam-se em carreiristas, intermediários e agenciadores do grande capital. Um e outro terminou fazendo milhões, conferenciando para burgueses! Apenas hoje temos a dimensão jamais imaginada de um processo de corrupção em geral já conhecido desde os seus primeiros momentos.
Negros de Sucesso
Acompanhando a debâcle das idéias e lutas sociais, triunfaram também, no movimento negro organizado, dominado agora por seus segmentos médios, as propostas pró-burguesas e antisocialistas de racialização das relações sociais, com seu corolário de integração à sociedade de classe tornaram-se dominante, ainda que não exclusivas. Propôs-se que o racismo não era expressão e reprodução da sociedade de classe. Não haveria exploradores e explorados. Haveria apenas negros, explorados, e brancos, exploradores. Tout court! Promoveu-se também forte deslocamento da representação identitária do movimento. Abandonou-se como figura exemplar o trabalhador feitorizado que, com seu trabalho e luta construíram a nação, em favor do negro de sucesso. No frigir dos ovos, trocou-se Zumbi pelo Pelé.
O novo paradigma passou a ser, no passado, o raro cativo que alcançou o sucesso social, mesmo se transformando em escravizador. E, muito logo, procedeu-se o literal encobrimento da história da escravidão, como algo vergonhoso, procurando concatenação do passado do negro brasileiro diretamente com uma sociedade africana imaginada e idealizada. Os estudos sobre a escravidão desapareceram tendencialmente enquanto os sobre a África romantizada multiplicaram-se, em geral desconectados da experiência escravista colonial.
Militou-se pela construção de consciência, organização e representatividade racial destacada e em oposição ao resto do movimento social. Agora, o que imperava era a construção de um “nós” [negros] e de um “vocês” [brancos]! Tentou-se parir, nem que fosse a forceps, uma multitudinária consciência racista anti-branco. Com ela, construiria-se a autoridade de direção negra que negociasse com o Estado, em nome do racismo branco e de suas sequelas, não a emancipação da população negra explorada, mas a promoção de indivíduos singulares. Não se tratava, jamais, de pôr fim à sociedade de classes branca, mas apenas de integrar a ela alguns negros privilegiados. Não se queria virar a mesa dos privilegiados, mas apenas obter alguns lugares no ajantarado dos bem servidos.
Um ministro, um general, um juiz, um banqueiro, um burguês negros eram os novos objetivos históricos dos segmentos hegemônicos do movimento, mesmo que, nesse processo, se consolidasse a exploração social e racial geral. Lutava-se para que tivéssemos os nossos Colin Powell, as nossas Oprah Winfrey e Condoleezza Rice e, sonho dos sonhos, algum dia, um Barak e uma Michelle Obama! Tudo igual ao determinado pela cartilha dos segmentos negros integrados e pró-imperialistas, sobretudo do Partido Democrata estadunidense.
Tudo pela Auto-Estima
As promoções sociais isoladas e a conta-gotas, enquanto a massa negra vegetava submergida na miséria material e espiritual, foram defendidas como imprescindíveis à promoção da “auto-estima” da população brasileira com afro-descendência. Era como se os operários negros apinhados nos transportes coletivos, em direção ao trabalho duro e enfadonho, reverberassem de orgulho, ao verem um burguês com afro-ascendência sentado no banco de trás de um mercedes! O PT satisfez parcialmente essa expectativa com, entre outras iniciativas, a de alguns ministros, com destaque para a indicação de Joaquim Barbosa ao Superior Tribunal Federal, por ser apenas indiscutivelmente negro. E deu no que deu!
A reconversão pró-burguesa e anti-operária dos setores hegemônicos do movimento negro organizado foi toda ela comandada pelo imperialismo estadunidense. As ditas elites brasileiras não estavam, definitivamente, à altura de uma operação tão refinada. Em fins dos anos 1978, Abdias do Nascimento chegava ao Brasil de um pretendido auto-exílio, de dez anos, … nos USA! Em verdade, ele viajara para aquele país a convite de universidade, ali permanecendo devido às oportunidades oferecidas. Jamais participara de organização de esquerda ou de oposição à ditadura militar.
No passado distante, entre outras atividades políticas secundárias, aderira ao fascismo tupiniquim, tendo sido, inclusive, amigo de Plínio Salgado, fundador da Ação Integralista Brasileira. Apenas desceu do avião, Abdias do Nascimento começou a disparar contra a esquerda marxista, acusando-a de racista. O que certamente alegrou os ditadores de plantão. No seu retorno, foi acolhido e apadrinhado por Leonel Brizola, que, mesmo não podendo ser mais branco, tudo fez para promovê-lo como parlamentar. Principal líder das propostas racialistas e socialmente assimilacionistas, Abdias morreu aos 94, militando no PDT.
Os Anos Dourados
Os setores hegemônicos do movimento negro organizado, sob o controle e influência dos segmentos médios, conheceram anos dourados, nos quais consolidaram-se as políticas racialistas e social integracionistas quando o PT, na presidência da República, abraçou as propostas de promoção étnica seletiva e restritiva como parte de sua demagogia social-liberal, colhendo o que Brizola plantara! Sob o reino petista, as “cotas” e as ‘políticas compensatórias” transformaram-se na bandeira triunfante da promoção exemplar e restritiva, enquanto a imensa maioria dos jovens brasileiros, com destaque para os negros, era mantida na ignorância, exploração, pobreza, alienação. Nos anos do reino petista, prosseguiu o massacre da população popular jovem, com destaque para a negra.
Entretanto, os resultados dessas políticas foram pífios, a não ser para os poucos contemplados. Em nosso país de 200 milhões de habitantes, número pouco significativo de médicos negros cotistas, quanto muito, foram formados, anualmente, como demonstração maior do conquistado, enquanto se degradava as condições gerais da educação. – É melhor isto do que nada, respondiam as lideranças negras e petistas à pergunta sobre os milhões de jovens brasileiros de todas as cores marginalizados. Talvez a resposta e essa defesa tenha chegado nas asas dos aviões que derramaram sobre o Brasil borbotões de médicos negros cubanos. Todos eles formados, naturalmente, em um país de extrema pobreza de recursos, se comparado ao Brasil. Pais que garante o ensino não apenas para privilegiados diversos, mas para todos os jovens que desejem estudar.
Nesses quase quarenta anos em que estive envolvido por tais questões, três momentos paradigmáticos da hegemonia da política de racialização neo-liberal me golpearam fortemente. O primeiro foi o literal ostracismo político em que morreu Clóvis Moura, relegado pelos segmentos hegemônicos do movimento negro organizado reconvertidos ao neo-racialismo pró-burguês e pró-capitalista. Ele que, já nos anos 1950, por primeiro iluminou a dominância da escravidão na antiga formação social brasileira e realizou talvez a obra mais completa e radical sobre a questão negra no Brasil, amargou com a extrema dignidade que era sua o literal arquivamento a que foi objeto.
Uma vez perguntei-lhe: – Clóvis, meu velho, por que nunca te propuseram para a Fundação Palmares, o que sabia ter sido sempre um seu desejo, ainda que jamais verbalizado. – Maestri, não confiariam em um velho militante comunista como eu – foi a resposta que recebi. E jamais confiaram. Destaque-se, a bem da verdade, que, até além de sua morte, sentida e prematura, Clóvis Moura recebeu o agradecido reconhecimento solidário por parte do MST, em geral, e de Pedro Stédile, em particular.
O segundo momento foi a visita ao Brasil de Hillary Clinton, secretária de Estado dos USA, em dezembro de 2013. Ela proferiu badalada palestra-debate, na Faculdade Zumbi dos Palmares, centro acadêmico para negros, fortemente inspirado e apoiado pelos estadunidenses. Com a mediação de William Waack e Maria Beltrão, da indefectível Globo, Hillary pontificou sobre as maravilhas das políticas compensatórias estadunidenses e de sua cópia cabocla.
Os elogios e salamaleques à dama de mãos ensanguentadas foram incessantes e sequer um entre as dezenas de estudantes e lideranças negras presentes levantou uma palavra, um cartaz, uma faixa, em solidariedade às centenas de milhares de jovens negros mortos e enviados para a prisão, como forma de contenção social, sobretudo durante a administração Clinton. Ou para pedir a liberdade de presos políticos negros nos EUA, alguns encarcerados há décadas.
O terceiro e último fato que me impactou foi o enorme silêncio, da imensa maioria das lideranças do movimento negro incrustado no PT ou fora dele, sobre a miserável ocupação militar do Haiti comandada pelo Brasil, às ordens do imperialismo estadunidense. Agressão inaugurada precisamente no segundo centenário da vitória gloriosa da insurreição haitiana, em 1804. Revolução negra que resultou no primeiro estado americano livre da escravidão! Até hoje, as tropas de ocupação brasileiras lá seguem, sem praticamente oposição nacional consistente a sua ação criminal.
Um Balanço Geral
A política de racialização da sociedade procurou sempre a divisão radical do movimento social. Para tal, mobilizou-se por uma divisão inverossímil da sociedade brasileira em dois campos. No primeiro, estariam os “brancos” exploradores. Seriam, todos eles, descendentes de escravistas, criados e amamentados por mães-pretas. Ou trabalhadores imigrantes europeus, chegados após o fim da escravidão, também privilegiados pelo racismo, em verdade, não se sabe como ou por que. Uma descrição desrespeitosa de milhões de brasileiros não negros que viveram e vivem apenas de seu trabalho explorado.
Do outro lado se encontrariam os “negros”, todos eles explorados, e jamais exploradores, totalmente desterrados em sua própria terra, ou seja, o Brasil, pois incapazes de reconstituírem suas raízes africanas. “[…] seres sem um pertencimento definido, sem raízes facilmente traçáveis, que não são mais de lá [da África] e nunca conseguiram se firmar completamente por aqui [no Brasil].” Tudo como as raízes raciais e não a vida real fosse o elemento fundante da vivência social. Procura-se incessantemente divisão da sociedade brasileira em facções étnicas incomunicáveis, cada uma encastelada em suas tradições, como assinalado. Uma proposta amalucada que fatia o Brasil artificialmente, como um salame, em descendentes de italianos, de alemães, de judeus, de portugueses, de africanos, de asiáticos e assim vai, cada um com seu gosto especial. Cada etnia com seus representantes raciais, negociando as reivindicações de seus nacionais, com o Estado e com as diversas outras etnias. Um projeto que nega de per si a possibilidade de uma nacionalidade comum, mesmo assentada na dignidade niveladora do trabalho.
Teríamos, simplificando, essencialmente, uma cultura branco-européia e uma cultura negro-africana. A pizza seria dos italianos; o turbante, dos afro-descendentes. Se a apropriação da primeira não traria problemas, pois produzida por população “branca” que se pressupõe ter sido e ser racista, a segunda deve ser monopólio intocado, já que expressaria simbolicamente a resistência anti-racista, necessariamente negra. Tudo isso construído no reino das fantasias ideológicas. A pizza, nas suas raízes mais recentes, é bom lembrar, não é produção cultural italiana, mas das classes subalternizadas napolitanas, o que é muito, mas muito diferente. Assim como a proposta de uma cultura africana unitária é produto de uma síntese falsa, nascida da manipulação ideológica ou da ignorância olímpica da realidade da África Negra.
Unidade Cultural Contraditória
O fatiamento social étnico proposto, verdadeira abstração fantasiosa, talvez seja possível de ser proposto, sempre em forma forçada e manipulada, para algumas regiões dos EUA, da África do Sul, etc. Ele é totalmente artificial e inexequível entre nós. Sobretudo, no Brasil, fora imigrantes europeus e africanos muito recentes, a imensa maioria dos ditos “brancos” tem “um pé na África” e outro na “maloca”, assim como, os mais insuspeitos “negros” possuem raízes étnicas europeias e indígenas. É o que nos tem ensinado os mais recentes estudos genéticos sobre a nossa população.
Procurar encontrar as raízes e locais de proveniência dos ancestrais, para multidões de brasileiros, é se abrir em um leque vertiginoso de origens africanas, europeias, americanas, asiáticas, etc., nenhuma delas possíveis de serem apreendidas fora de suas diversidades internas. Em apenas quatro gerações, cada um de nós possui nada menos do que quatorze ancestrais! E, se vamos um pouco mais longe… Mas, em verdade, a verdadeira manipulação não se dá a partir da falsa proposta de uma população brasileira dominante de raízes raciais puras.
As propostas racialistas pró-burguesas e pró-capitalistas procuram sobretudo o encobrimento das verdadeiras raízes de nossa sociedade, operação empreendida por praticamente todos os ideólogos das classes dominantes brasileiras. As origens basilares da nossa nacionalidade não são europeias, africanas, americanas. Esses e outros aportes culturais menores foram metabolizados e recriados por mais de três séculos de ordem escravista colonial, resultando desse processo sociedade nacional determinada pelas fortes contradições enraizadas naquelas organizações sociais.
É sandice maior propor a separação do afro e do europeu na cultura brasileira. Nos fatos, é o mesmo que pretender separar o hidrogênio do oxigênio e beber ainda água. Da simbiose escravista, terrível em suas violências e contradições, nasceu nossa forma de falar, de comer, de dançar, de amar, de socializar. A escravidão pariu a própria unidade nacional brasileira. Se temos Brasil, devemos a ela. A sociedade escravista foi a casa que nos coube, onde fomos infantados, que nos conformou as raízes que temos que defrontar, para superar o que teve e que nos legou de terrível iniquidade.
Por além das múltiplas ascendências étnicas que todos nós portamos, algumas dominantes, outras subordinadas, somos, todos os brasileiros, descendentes de trabalhadores escravizados ou de escravizadores, segundo nosso pertencimento atual, não a uma raça, mas ao mundo do trabalho ou do capital, objetiva ou subjetivamente. Nesse sentido, podemos dizer que é, efetivamente, a cor do turbante que todos nós portamos, em forma consciente e inconsciente, que define nossa alma social.
Um Novo Período
Entretanto, as políticas racialistas e compensatórias já fazem parte também de um passado em superação. O capital imperialista pôs fim às concessões sociais pontuais que acompanhavam as políticas liberais e que justificaram e alimentaram em boa parte a era petista. Elas estão sendo enviadas para as calendas. Ato inicial do governo Temer foi pôr fim ao Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos. Muito logo, o financiamento nas universidades privadas serão feitos a juros de mercado, entregando-se ao formando, junto com o diploma, dívida que jamais poderá pagar, como normal nos EUA. Já se iniciou, também, o desmonte das escolas e universidades públicas.
Aquelas iniciativas e concessões pontuais, criadas para favorecer a dominação pacífica do movimento social, através da cooptação dos seus segmentos superiores e direções, são desprezíveis para gestão do Estado e da sociedade que abre confronto direto com os núcleos centrais do mundo social e do trabalho. Para uma forma de governar despreocupada com o literal processo de canibalização da sociedade, na procura desenfreada do grande capital pelo lucro. Vivemos hoje a radicalização da violência social do passado que golpeará a todos, com destaque indiscutível para os mais frágeis, entre eles, as populações negras marginalizadas. A união dos oprimidos segue sendo, hoje mais do que jamais, o único caminho a ser trilhado. Sua divisão é criminal.