Devido ao impacto do anúncio da saída das fábricas da Ford do Brasil, debates polêmicos têm sido realizados na imprensa. As consequências da saída serão catastróficas: milhares de trabalhadores serão demitidos em diversas indústrias que forneciam para a Ford ou forneciam para as indústrias que forneciam para a Ford. Em meio à crise, os trabalhadores demitidos ficarão sem perspectivas de reincorporação no mercado formal, largados a própria sorte. Além disso, os empregados em outras empresas, sob a pressão do aumento da massa de desempregados, serão levados a negociar direitos ou tê-los diretamente atacados. Portanto, as atitudes da direção de uma grande empresa automobilística causam impactos não só no bolso dos proprietários das ações ou dos trabalhadores diretos desta empresa, mas impactos sociais, atingindo diversas outras empresas e o governo.
A saída da Ford do Brasil e a mudança do foco dos negócios para a Argentina têm um significado ainda maior, visto a dinâmica do capitalismo contemporâneo. Ela prenuncia a saída de outras indústrias automobilísticas do Brasil e mostra como o capital irá sempre buscar melhores condições para investir que é independente das necessidades reais dos consumidores. A tendência do mercado contemporâneo é essa: se um gigante se move para esse lado, melhor tentar aprender com ele ou só segui-lo. E a Ford é uma gigante, a primeira indústria automobilística a se instalar no Brasil e uma das maiores do mundo. Pragmaticamente, para a empresa, as SUVs dão mais lucro, e é na Argentina que se produzem a maior parte das SUVs. Pronto, vamos para lá! Movimentos semelhantes acontecem com o deslocamento de fábricas de diversas empresas da China para a Índia.
Desde que a expansão da produção capitalista mundial no século 18 tornou o crescimento de capitais de maneira isolada (empresas individuais de propriedade familiar) uma limitação ao desenvolvimento das forças produtivas, as empresas foram se transformando, progressivamente, em empresas de capital aberto, ou sociedade por ações[1], e toda a estrutura econômica produtivo virou simples base para a superestrutura de crédito[2]. Os patrões que eram proprietários do capital integral das indústrias foram relegados, em sua maior parte, à classe oprimida de pequenos industriais e comerciantes.
Por exemplo, a abertura dos novos mercados vindos da vitória da Inglaterra na Guerra do Ópio tornou pequenino o bolso do patrão individual e o caixa reserva das indústrias têxteis inglesas. Eram 300 milhões de novos consumidores chineses que caiam nos braços dos industriais ingleses. O número de adiantamentos em cima de adiantamentos de capital concedidos aos industriais pelos bancos trouxe um crescimento produtivo sem precedentes, que também criaram gigantescas bolhas especulativas e o risco de falência do próprio Banco da Inglaterra, que passou a funcionar, devido toda agitação, com menos regulamentações e emitindo cédulas bancárias livremente[3]. Isso significa que todo o capital de diversas empresas inglesas estava concentrado em um lugar, no banco, assim como o depósito de milhares de cidadãos. Este dinheiro foi direcionado para o interesse de alguns poucos setores da indústria que poderiam atender em massa os novos mercados. As empresas se conectaram fortemente aos bancos e a diversos “investidores”, assim como o dinheiro de vários capitalista isolados e dos trabalhadores passou a fluir para o interesse dos bancos.
É a sociedade, como um todo, impulsionando o crescimento das empresas. O capitalismo contemporâneo tem pouco a ver com livre iniciativa e livre mercado, ou mesmo com a genialidade de um patrão preocupado com a produção, mas sim com procedimentos cada vez mais eficientes de rapinagem e de uso do crédito, onde o uso dos exércitos nacionais para conquistar mercados é um dos elementos possíveis na busca por lucro, ou, para alguns, simplesmente por juros sob o título de proprietário.
O capital foi suprassumido como propriedade privada dentro do próprio modo de produção capitalista[4], ou seja, as empresas privadas que antes estavam na mão de alguns senhores se tornaram empresas sociais de capital aberto, com milhares de fios interligando umas às outras. Agora ainda menos senhores controlam a produção, sem, no entanto, precisar sujar as mãos indo às fábricas das empresas mais produtivas do planeta. A decisão de uma grande indústira automobilística, seja ela certa ou errada do ponto de vista racional e produtivo, afeta diretamente todo o sistema de empresas interdependentes. O modo de produção capitalista tornou-se grande demais para caber na propriedade privada individual de capitalistas individuais isolados, mas ainda não foi superado.
Como portadores de títulos que dão direito a parte do lucro total da empresa (mais-valor) ou como supervisores/diretores/gerentes remunerados pelo capital variável, os grandes capitalistas viraram sangue sugas que formam cartéis e trustes para regular a produção, controlar o mercado, e influenciar nos rumos dos Estados. Em alguns casos os capitalistas também são assalariados destas empresas, mas a maior parte dos seus rendimentos vêm da simples posse de títulos de propriedade, ou seja, de uma função meramente parasitária. Seus cargos de direção tem mais a ver com a capacidade de manobrar a favor da bolsa do que fazer a empresa produzir mais. Caso seja interessante, explodem uma empresa por fraudes e jogatinas para logo em seguida partirem para outra com o capital concentrado da manobra, celebrando o sucesso com a monopolização do mercado e com o aumento dos seus salários de diretores e dividendos. A crise dos hedge funds na China ocorrida na década de 1990 ilustra essa história, e está contada no documentário “The China Hustle” (2017).
Sobre a base da produção capitalista desenvolve-se nas empresas por ações novas formas de especulação, criando, ao lado e acima dos verdadeiros diretores e seus salários astronômicos, toda uma série de conselhos de administração e supervisão. Assim, a administração e a inspeção se convertem em mero pretexto para o saqueio dos acionistas e o autoenriquecimento[5]. É sobre essa situação escandalosa, que os trabalhadores já sabem ao menos de maneira inconsciente, que os comunistas precisam tornar cada vez mais consciente, elaborando propaganda e trazendo-os para o lado da causa revolucionária.
Todo o investimento na produção real de veículos hoje não depende mais da saúde financeira direta do patrão e do caixa das empresas. Ele agora reflete a saúde de toda a sociedade capitalista, que se transformou, de maneira invertida, na saúde dos bancos e da bolsa de valores. Por isso os capitalistas saem, em meio a pandemia, em defesa da vacinação gratuita para todos. Não é nenhum senso humanitário ou de solidariedade com relação à classe trabalhadora, mas de solidariedade com seus parceiros de negócio, que precisam de uma força de trabalho com uma produtividade média similar a anterior a pandemia o quanto antes. Eles sabem que o trabalhador comum não conseguiria pagar pela vacina, que sob as condições atuais de escassez teriam altos preços. Muito menos a própria empresa quer pagar pela vacina. Se a Ford realmente estivesse preocupada com o trabalhador, não teriam tirado suas fábricas do Brasil.
Na indústria automobilística, portanto, nenhum patrão mete a mão no próprio bolso para pagar os meios de produção e o salário dos trabalhadores. O caixa de uma grande empresa, de um truste, de um monopólio, está integrado ao caixa dos bancos e, cada vez mais, o caixa destes bancos estão integrados aos caixas centrais dos Estados nacionais. Cabe aos diretores e aos conselhos de administração equilibrarem-se no jogo econômico e político animado pela especulação para fazer seus negócios crescerem destruindo outros negócios.
Esse resultado do máximo desenvolvimento da produção capitalista é uma fase de transição necessária até a reconversão do capital em propriedade dos produtores, mas não mais como propriedade privada de produtores isolados, e sim como propriedade dos produtores associados, como propriedade diretamente social [6]. Estamos em um período de transição.
Contudo, a transição completa da propriedade privada de produtores isolados para a propriedade dos produtores associados ainda não aconteceu. A Ford nasceu como propriedade privada do Henry Ford, mas hoje, mesmo com seu capital aberto e com o impacto mundial das suas decisões, ainda é uma empresa nas mãos de poucos proprietários e a serviço do capital. Parte importante das ações ainda se concentra na mão da família Ford. O neto de Henry, William Clay Ford Jr., elege 40% do conselho de administração devido a sua quantidade de títulos. Esta realidade não é diferente em outras indústrias. The Vanguard Group Inc., por exemplo, é uma gestora de investimentos que está entre as duas maiores proprietárias de ações tanto da Tesla quanto da General Motors. É falsa a ideia que um trabalhador comum que compra ações da sua empresa, que valoriza ou rende algum dividendo, está se integrando a mesma.
A realidade é que quem manda na produção das mercadorias são acionistas, diretores e banqueiros. Esta classe de homens proprietários de grande fatia da riqueza mundial é protegida por um conjunto de aparelhos privados e do Estado, que existem para manter o capital acumulando e concentrando. O fato das grandes indústrias automobilísticas serem de capital aberto não as tornou mais democráticas. Os trabalhadores, que produzem toda a riqueza, apropriada pelas aves de rapina no topo da hierarquia, não tem participação alguma nas decisões, salvo em um ou outro momento de crise ou greves importantes. Esse sistema só poderá ser quebrado com a participação da classe que produz toda a riqueza em uma luta de massas contra a ordem estabelecida. E para haver uma luta vitoriosa é preciso de uma vanguarda consciente.
Uma revolução pode expropriar não só as grandes empresas automobilísticas, mas todas as empresas listadas na bolsa de valores, entregando seu funcionamento na mão dos legítimos e reais operadores dos meios de produção. Estamos há pelo menos 200 anos vivendo esta “fase de transição” ao qual Marx se refere em O Capital, que insiste em não se concluir por uma série de derrotas planejadas pelos próprios dirigentes da classe trabalhadora e uma série de vitórias dos capitalistas sobreviventes às crises sistêmicas. É hora de nos prepararmos para vencer, e para isso é necessário convencer os operários mais avançados de que é necessário ocupar as fábricas e centros de distribuição para iniciar um renovado e potente movimento de fábricas ocupadas, uma expropriação pelos trabalhadores de empresas que são muito maiores que seus proprietários.
Fonte:
[1] MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Livro III – O processo global da produção capitalista. São Paulo: Boitempo, 2017, l. 399/828
[2] Ibidem, l. 402/828
[3] Ibidem, l. 399/828
[4] Ibidem, l. 373/828
[5] Ibidem, l. 353/828
[6] Ibidem, l. 400/828