A luta de Lênin contra a burocracia

O post scriptum de Lênin à sua “Carta ao Congresso” conhecido como o seu “Testamento” completou 100 anos no dia 4 de janeiro de 2023. Nele, Lênin assumia a luta contra a burocratização do Estado soviético, que ameaçava descarrilar todas as conquistas da revolução. Suprimido durante décadas por Stalin, este Testamento dissipa a calúnia de que o stalinismo era a continuação do leninismo.

Juntamente com seus últimos artigos e cartas, o Testamento de Lênin evidencia a importância que ele dava ao perigo da crescente burocracia. Em sua carta e post scriptum, ele pede explicitamente a remoção de Stalin como secretário-geral do Partido Comunista e o compara a Trotsky, que ele descreveu como “o homem mais capaz do atual CC [Comitê Central]”.

No entanto, a carta de Lênin não foi lida no congresso do Partido Comunista e foi suprimida pelos stalinistas por décadas.

Aproveitamos, portanto, esta oportunidade para republicar um trecho do livro Lênin e Trotsky: O que eles realmente defenderam, de Alan Woods e Ted Grant, que trata em detalhes do Testamento de Lênin e de sua luta contra Stalin e a burocracia.

[O método marxista] permite explicar a burocracia como um fenômeno social, que surge por determinadas razões. Lênin, abordando a questão como marxista, explicou a ascensão da burocracia como um crescimento parasitário e capitalista no organismo do Estado operário, que surgiu do isolamento da revolução em um país camponês atrasado e analfabeto.

Em um de seus últimos artigos, “Melhor poucos, porém bons”, Lênin escreveu:

“Nosso aparelho de Estado é tão deplorável, para não dizer miserável, que primeiro devemos pensar muito bem em como combater seus defeitos, tendo em vista que esses defeitos estão enraizados no passado, que, embora tenha sido derrubado, ainda não foi superado, ainda não atingiu o estágio de uma cultura que tenha o seu próprio passado”. (Collected Works, vol. 33, p. 487)

A Revolução de Outubro derrubou a velha ordem, reprimiu e expurgou impiedosamente o Estado czarista; mas, em condições de atraso econômico e cultural crônico, os elementos da velha ordem estavam por toda parte voltando às posições de privilégio e poder na medida em que a onda revolucionária recuava com as derrotas da revolução internacional.

Engels explicou que em toda sociedade onde a arte, a ciência e o governo são exclusivos de uma minoria privilegiada, essa minoria sempre usará e abusará de suas posições em seu próprio interesse. E este estado de coisas é inevitável, enquanto a grande maioria das pessoas for forçada a trabalhar por longas horas na indústria e na agricultura para as necessidades básicas da vida.

Guardas Vermelhos em 1917. A classe trabalhadora que fez a Revolução de Outubro em 1917 foi em grande parte destruída na Guerra Civil: dispersa dentro do Exército Vermelho ou desclassificada à medida que a indústria decaía – Foto: Viktor Bulla
Depois da revolução, com a ruína da indústria, a jornada de trabalho não foi reduzida, mas alongada. Os trabalhadores trabalhavam 10, 12 horas ou mais por dia com rações de subsistência; muitos trabalhavam nos fins de semana sem remuneração, voluntariamente.

Mas, como Trotsky explicou, as massas só podem sacrificar o seu “hoje” por seu “amanhã” até um limite muito definido. Inevitavelmente, a tensão da guerra, da revolução, de quatro anos de sangrenta Guerra Civil, de uma escassez na qual morreram 5 milhões de pessoas, tudo isso serviu para minar a classe trabalhadora em termos de números e moral.

A NEP [Nova Política Econômica] estabilizou a economia, mas criou novos perigos ao estimular o crescimento do pequeno capitalismo, especialmente no campo, onde os ricos “kulaks” ganhavam terreno às custas dos camponeses pobres.

A indústria renasceu, mas, estando ligada à demanda do campesinato, especialmente dos camponeses ricos, o renascimento foi confinado quase inteiramente à indústria leve (bens de consumo). A indústria pesada, chave da construção socialista, estagnou. Em 1922, havia dois milhões de desempregados nas cidades.

No 9º Congresso dos Sovietes, em dezembro de 1921, Lênin observou:

“Desculpe-me, mas o que você descreve como o proletariado? Essa classe de trabalhadores que é empregada pela indústria em grande escala. Mas onde está essa grande indústria? Que tipo de proletariado é esse? Onde está sua indústria? Por que está ocioso?” (Obras, vol. 33, p. 174)

Em um discurso no 11º Congresso do Partido, em março de 1922, Lênin apontou que a natureza de classe de muitos dos que trabalhavam nas fábricas nessa época não era proletária; que muitos evadiam o serviço militar, camponeses e elementos marginais:

“Durante a guerra, pessoas que não eram de forma alguma proletárias foram para as fábricas; foram para as fábricas para escapar da guerra. E as condições sociais e econômicas em nosso país hoje são tais que induzam os verdadeiros proletários a irem para as fábricas? Não. Seria verdade de acordo com Marx; mas Marx não escreveu sobre a Rússia; ele escreveu sobre o capitalismo como um todo, começando no século XV. Foi verdade durante um período de seiscentos anos, mas não é verdade para a Rússia atual. Muitas vezes, aqueles que vão para as fábricas não são proletários; eles são elementos casuais, da maior variedade possível.” (Obras, vol. 33, p. 299)

A desintegração da classe trabalhadora, a perda de muitos dos elementos mais avançados na Guerra Civil, o influxo de elementos atrasados do campo e a desmoralização e exaustão das massas era um dos aspectos do quadro.

Por outro lado, as forças da reação, aqueles elementos pequeno-burgueses e burgueses que haviam sido temporariamente desmoralizados e empurrados para a clandestinidade pelo êxito da revolução na Rússia e internacionalmente, em todos os lugares começaram a recuperar a coragem, a se lançaram à frente, aproveitando a situação para se insinuar em todos os recantos dos órgãos dirigentes da indústria, do Estado e até do Partido.

Imediatamente após a tomada do poder, o único partido político que foi suprimido pelos bolcheviques foi o fascista Centúrias Negras. Mesmo o burguês Partido Cadete não foi imediatamente ilegalizado. O próprio governo era uma coalizão de bolcheviques e socialistas revolucionários de esquerda.

Mas, sob a pressão da Guerra Civil, ocorreu uma forte polarização das forças de classe, na qual os mencheviques, socialistas revolucionários (SR) e “SRs de esquerda” ficaram do lado da contrarrevolução. Ao contrário de sua própria intenção, os bolcheviques foram forçados a introduzir um monopólio do poder político. Este monopólio, que era considerado uma situação extraordinária e temporária, criava enormes perigos em uma situação em que a vanguarda proletária estava sob crescente pressão de classes estranhas.

Em fevereiro de 1917, o Partido Bolchevique não tinha mais de 23 mil membros em toda a Rússia. No auge da Guerra Civil, quando a adesão ao partido envolvia riscos pessoais, as fileiras foram abertas aos trabalhadores, que elevaram o número de membros para 200 mil. Mas à medida que a guerra chegava ao fim, a filiação partidária na verdade triplicou, refletindo um influxo de carreiristas e elementos de classes e partidos hostis.

Nessa época, Lênin enfatizou repetidamente o risco de o partido sucumbir às pressões e humores das massas pequeno-burguesas; e que o principal inimigo da revolução era:

“A economia cotidiana em um país de pequenos camponeses com uma grande indústria arruinada. É o elemento pequeno-burguês que nos envolve por todos os lados e que penetra profundamente nas fileiras do proletariado. E o proletariado é marginalizado, isto é, desalojado de sua rotina de classe. As fábricas e moinhos estão ociosos – o proletariado está fraco, disperso, enfraquecido. Por outro lado, o elemento pequeno-burguês dentro do país é apoiado por toda a burguesia internacional, que mantém o seu poder em todo o mundo.” (Obras, vol. 33, p. 23)

O “expurgo” iniciado por Lênin em 1921 não tinha nada em comum com os monstruosos julgamentos de Stalin; não havia polícia, nem tribunais, nem campos de prisioneiros; apenas a eliminação implacável dos elementos pequeno-burgueses e mencheviques das fileiras do partido, a fim de preservar as ideias e tradições de Outubro dos efeitos venenosos da reação pequeno-burguesa. No início de 1922, cerca de 200 mil membros (um terço dos membros) foram expulsos.

A correspondência e os escritos de Lênin desse período, quando a doença o impedia cada vez mais de intervir na luta, indicam claramente sua preocupação com a invasão da burocracia soviética, o insolente arrivista, em todos os cantos do aparato estatal. Assim, em uma carta a Sheinman, em fevereiro de 1922, Lênin escreve:

“Atualmente, o Banco do Estado é um jogo burocrático de poder. Aí está a verdade para você, se você não quiser ouvir as doces mentiras oficiais comunistas (com as quais todos te alimentam como a um alto mandarim), mas a verdade. E se você não quer olhar para esta verdade com os olhos abertos, através de toda a mentira comunista, você é um homem que pereceu no auge da vida em um pântano de mentiras oficiais. Essa é uma verdade desagradável, mas é a verdade.” (Obras, vol. 36, p. 567)

Compare-se esta destemida honestidade de Lênin com todas as falsidades açucaradas com as quais todos os líderes e “teóricos” do Partido Comunista alimentaram o movimento comunista internacional sobre a União Soviética por gerações, e avaliem por si mesmos as profundezas da degradação em que os autodenominados “Amigos da União Soviética” mergulharam as ideias e tradições de Lênin! Novamente, em carta datada de 12 de abril de 1922:

“Quanto mais esse trabalho for feito, mais nos aprofundamos na prática viva, afastando a atenção de nós mesmos e de nossos leitores das atmosferas burocráticas e intelectuais fedorentas de Moscou (e, em geral, da burguesia soviética), maior será nosso êxito em melhorar nossa imprensa e todo nosso trabalho de construção.” (Obras, vol. 36, p. 579)

No 11º Congresso, Lênin apresentou ao partido uma acusação contundente de burocratização do aparato estatal:

“Se tomarmos Moscou”, disse ele, “com seus 4.700 comunistas em cargos de responsabilidade, e se tomarmos a enorme máquina burocrática, esse amontoado gigantesco, devemos perguntar: quem está dirigindo quem? Duvido muito que se possa dizer com verdade que os comunistas estão dirigindo essa pilha. Para dizer a verdade, eles não estão dirigindo, eles estão sendo dirigidos”. (Obras, vol. 33, p. 288, grifos nossos)

Para realizar o trabalho de eliminar burocratas e carreiristas do aparato estatal e partidário, Lênin iniciou a criação da Inspetoria dos Trabalhadores e Camponeses (RABKRIN), com Stalin no comando.

Lênin viu a necessidade de um organizador forte para garantir que esse trabalho fosse realizado minuciosamente. O histórico de Stalin como organizador do partido parecia qualificá-lo para o cargo. Em poucos anos, Stalin ocupou vários cargos organizativos no partido: chefe da RABKRIN, membro do Comitê Central e dos Politburo, Orgburo e Secretariado. Mas sua visão organizativa estreita e ambição pessoal levaram Stalin a ocupar o cargo, em um curto espaço de tempo, como o principal porta-voz da burocracia na direção do partido, não como seu oponente.

Já em 1920, Trotsky criticou o trabalho da RABKRIN, que, de uma ferramenta na luta contra a burocracia, estava se tornando um foco de burocracia. Inicialmente, Lênin defendeu a RABKRIN contra Trotsky. Sua enfermidade o impediu de perceber o que estava acontecendo às suas costas no Estado e no partido.

Stalin usou sua posição, que lhe permitia selecionar pessoal para cargos de direção no Estado e no partido, para reunir silenciosamente em torno de si um bloco de aliados e homens obsequiosos, umas nulidades políticas que lhe eram gratas por suas promoções. Em suas mãos, a RABKRIN tornou-se um instrumento para construir sua própria posição e eliminar seus rivais políticos.

Lênin só tomou conhecimento da terrível situação quando descobriu a verdade sobre a maneira como Stalin lidava com as relações com a Geórgia. Sem o conhecimento de Lênin ou do Politburo, Stalin, junto com seus capangas Dzerzhinsky e Ordzhonikidze, realizou um golpe de Estado na Geórgia.

Os melhores quadros do bolchevismo georgiano foram expurgados e os líderes do partido negaram-lhes o acesso a Lênin, que foi alimentado com uma série de mentiras por Stalin. Quando finalmente descobriu o que estava acontecendo, Lênin ficou furioso. De seu leito de enfermo, no final de 1922, ele ditou uma série de notas para seu estenógrafo sobre “as notórias questões de autonomização, que, ao que parece, é oficialmente chamada de questão da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas”.

Stalin e seus aliados, Ordzhonikidze e Mikoyan. Ao testemunhar o golpe conduzido por Stalin e seus capangas na Geórgia, Lênin ficou alarmado e partiu para a ofensiva – Foto: Domínio público
As notas de Lênin são uma acusação contundente da arrogância burocrática e chauvinista de Stalin e sua camarilha. Mas Lênin não trata esse incidente como um fenômeno acidental – um “erro lamentável”, como a invasão da Tchecoslováquia, ou uma “tragédia”, como o esmagamento da comuna operária húngara – mas como a expressão do nacionalismo podre e reacionário da burocracia soviética. Vale a pena citar longamente as palavras de Lênin sobre o aparelho de Estado:

“Diz-se que se necessitava de um aparato de Estado unificado. De onde procedia essa segurança? Não procedia do próprio aparato russo que, como apontei em uma das seções anteriores de meu diário, nós assumimos do czarismo e ungimos levemente com óleo soviético?

Não há dúvida de que essa medida deveria ter sido adiada até que pudéssemos dizer que garantimos o nosso aparato como próprio. Mas agora, devemos, de plena consciência, admitir o contrário; o aparato estatal que chamamos de nosso é, de fato, ainda bastante estranho a nós; é uma miscelânea burguesa e czarista e não houve possibilidade de nos livrarmos dela nos últimos cinco anos sem a ajuda de outros países e porque estivemos ‘ocupados’ a maior parte do tempo com compromissos militares e o combate à fome.

É bastante natural que, em tais circunstâncias, a ‘liberdade de se separar da união’ pela qual nos justificamos seja um mero pedaço de papel, incapaz de defender os não-russos do ataque daquele homem realmente russo, o Grã-Chauvinista russo, na essência um patife e um tirano, como é o típico burocrata russo. Não há dúvida de que a porcentagem infinitesimal de trabalhadores soviéticos e sovietizados se afogará nessa maré de ralé chauvinista da Grande Rússia como uma mosca no leite.” (Obras, vol. 36, p. 605, grifos nossos)

Após o caso georgiano, Lênin jogou todo o peso de sua autoridade na luta para remover Stalin do cargo de secretário-geral do partido que passou a ocupar em 1922, após a morte de Sverdlov.

No entanto, o principal medo de Lênin agora, mais do que nunca, era que uma divisão aberta na direção, sob as condições prevalecentes, pudesse levar à dissolução do partido ao longo de linhas de classe. Ele, portanto, tentou manter a luta confinada à direção, e as notas e outros materiais não foram divulgados.

Lênin escreveu secretamente aos bolcheviques-leninistas georgianos (enviando cópias a Trotsky e Kamenev) assumindo sua causa contra Stalin “de todo o coração”. Como não pôde prosseguir pessoalmente com o caso, escreveu a Trotsky solicitando-lhe que assumisse a defesa dos georgianos no Comitê Central.

Desnecessário dizer que a evidência documental da última luta de Lênin contra Stalin e a burocracia foi suprimida por décadas. Os últimos escritos de Lênin foram escondidos das bases do Partido Comunista na Rússia e internacionalmente.

A última carta de Lênin ao Congresso do Partido, apesar dos protestos de sua viúva, não foi lida no Congresso e permaneceu trancada a sete chaves até 1956, quando Khrushchev e os seus a publicaram, junto com alguns outros itens (incluindo as cartas sobre a Geórgia ), como parte de sua campanha para lançar a culpa por tudo o que aconteceu nos trinta anos anteriores sobre os ombros de Stalin.

[…]

Lênin adverte sobre o risco de uma divisão no Partido, porque “nosso partido repousa sobre duas classes, e por isso sua instabilidade é possível…” Lênin não via o desacordo entre Trotsky e Stalin como acidental, ou decorrente de “personalidades” (embora dê uma série de esboços penetrantes das características pessoais dos dirigentes do Partido).

A última carta de Lênin deve ser vista no contexto de seus outros escritos dos meses anteriores, de seus ataques à burocracia e do bloco que formou com Trotsky contra Stalin.

Lênin redigiu sua carta com muita cautela (ele originalmente pretendia estar presente no Congresso para o qual, de acordo com sua estenógrafa Fotieva, ele havia “preparado uma bomba para Stalin”).

Para cada um dos membros dirigentes, ele dá tanto as características positivas quanto as negativas de seu caráter: no caso de Trotsky, ele se refere a suas “habilidades excepcionais” (“o homem mais capaz do Comitê Central na atualidade”), mas o critica por sua “grande autoconfiança” e por “uma tendência a se deixar atrair demais pelo lado puramente administrativo dos assuntos” – defeitos que, por mais graves que possam ser em si mesmos, nada têm a ver com a Revolução Permanente, com o “Socialismo em um só país”, ou qualquer um dos outros exageros inventados pelos stalinistas.

Com relação a Stalin, Lênin escreve que “o camarada Stalin, tendo se tornado secretário-geral, concentrou um enorme poder em suas mãos, e não tenho certeza de que ele sempre saiba como usar esse poder com cautela suficiente”.

Essa já é uma questão política e está ligada à luta de Lênin contra a burocracia do partido. Em “Melhor poucos, porém bons”, escrito pouco antes, Lênin comentou: “Deixe-se dizer entre parênteses que temos burocratas em nossos escritórios do partido, assim como nos escritórios soviéticos”. No mesmo trabalho, ele lançou um ataque contundente ao RABKRIN, claramente dirigido a Stalin:

“Digamos francamente que o Comissariado do Povo da Inspeção dos Trabalhadores e Camponeses não goza atualmente da menor autoridade. Todos sabem que nenhuma outra instituição é pior organizada do que a nossa Inspeção Operária e Camponesa e que, nas condições atuais, nada se pode esperar deste Comissariado do Povo”. (Obras, vol. 33, p. 490)

Em um post scriptum de sua carta [escrita em 4 de janeiro de 1923], Lênin propôs a remoção de Stalin do cargo de Secretário-Geral, ostensivamente por motivos de “grosseria” – mas defendendo sua substituição por um homem “que em todos os aspectos difira de Stalin tendo por vantagem, nominadamente que seja mais leal, mais educado e mais atento aos camaradas, menos caprichoso etc.”. O modo de expressão diplomático não esconde a acusação indireta, muito clara à luz dos acontecimentos georgianos, da grosseria, capricho e deslealdade de Stalin.

Perto do fim de sua vida, Lênin formou um bloco com Trotsky, o único homem do Comitê Central bolchevique em quem ele podia confiar – Foto: Domínio público
Ao apresentar o Testamento de Lênin como um documento meramente preocupado com as “personalidades” dos líderes, os “teóricos” do Partido Comunista caem em uma deturpação completamente vulgar de Lênin. Mesmo se o Testamento deixasse espaço para a ambiguidade (não deixa, exceto para as mentes desleixadas), todo o corpo dos últimos escritos de Lênin fornece uma clara declaração programática de sua posição, que não pode ser distorcida.

Repetidamente, Lênin caracterizou a burocracia como um desenvolvimento parasitário e burguês do Estado operário e como uma expressão da perspectiva pequeno-burguesa – que penetrou no Estado e até no Partido.

A reação pequeno-burguesa contra Outubro era tanto mais difícil de combater devido ao esgotamento do proletariado, setores do qual também estavam se desmoralizando. No entanto, Lênin e Trotsky viam a classe trabalhadora como a única base para uma luta contra a burocracia e pela manutenção de uma democracia operária saudável como o único freio a ela. Assim, em um artigo Purgando o Partido, Lênin escreveu:

“Naturalmente, não devemos nos submeter a tudo o que as massas dizem, porque as massas também, às vezes – particularmente em tempos de cansaço e esgotamento excepcionais resultantes de excessivas dificuldades e sofrimentos – cedem a sentimentos que não são de forma alguma avançados. Mas, na avaliação das pessoas, na atitude negativa para com aqueles que se ‘ligaram’ a nós por motivos egoístas, para aqueles que se tornaram ‘comissários arrogantes’ e ‘burocratas’, as sugestões das massas proletárias sem partido e, em muitos casos, das massas camponesas sem partido, são extremamente valiosas”. (Obras, vol. 33, p. 39)

A ascensão da burocracia foi entendida por Lênin como produto do atraso econômico e cultural resultante do isolamento da revolução. Os meios de combatê-la estavam ligados, por um lado, à luta pelo progresso econômico e pela eliminação gradual do analfabetismo, que estava ligada inseparavelmente à luta por envolver as massas trabalhadoras na direção da indústria e do Estado.

Lênin e Trotsky sempre contaram com as massas na luta contra os “comissários presunçosos”. Somente pela autoatividade consciente dos próprios trabalhadores a transição para o socialismo poderia ser assegurada.

Por outro lado, Lênin explicou repetidas vezes que as terríveis tensões impostas à classe trabalhadora pelo isolamento da revolução em um país atrasado colocavam imensas dificuldades no caminho da criação de uma sociedade realmente culta, harmoniosa e sem classes. Uma e outra vez Lênin enfatizou os problemas que surgiam do isolamento da revolução.

[…]

Lênin explicou de forma resoluta que as dificuldades da revolução: os problemas do atraso, do analfabetismo, da burocracia só poderiam finalmente ser superados pela vitória da revolução socialista em um ou em vários países avançados. Essa perspectiva, sobre a qual Lênin insistiu centenas de vezes de 1904-5 em diante, foi aceita como um truísmo por todo o Partido Bolchevique até 1924. Nos últimos meses de sua vida, Lênin nunca perdeu de vista esse fato. Entre seus últimos escritos estão uma série de notas que deixaram sua posição bem clara:

“Criamos um tipo soviético de Estado”, escreveu ele, “e com isso inauguramos uma nova era na história mundial, a era do domínio político do proletariado, que substituirá a era do domínio burguês. Ninguém pode nos privar disso tampouco, embora o tipo soviético de Estado só vá receber os retoques finais com a ajuda da experiência prática da classe trabalhadora de vários países.

Mas ainda não terminamos de construir nem mesmo os alicerces da economia socialista e o poder hostil do capitalismo moribundo ainda pode nos privar disso. Devemos apreciar isso com clareza e admiti-lo francamente; pois não há nada mais perigoso do que as ilusões (e as vertigens, principalmente em grandes altitudes). E não há absolutamente nada de terrível, nada que dê motivos legítimos para o menor desânimo, em admitir esta amarga verdade; sempre exortamos e reiteramos a verdade elementar do marxismo – que os esforços conjuntos dos trabalhadores de vários países avançados são necessários para a vitória do socialismo.” (Obras, vol. 33, p. 206, grifos nossos)

Nestas linhas de Lênin não há um pingo de “pessimismo” ou de “subestimação” das capacidades criativas da classe trabalhadora soviética. Em todos os escritos de Lênin, e especialmente deste período, há ao mesmo tempo uma fé ardente na capacidade dos trabalhadores de mudar a sociedade e uma honestidade destemida ao lidar com as dificuldades.

A diferença nas atitudes do stalinismo e do leninismo em relação à classe trabalhadora reside precisamente nisso: o stalinismo procura enganar as massas com mentiras “oficiais” e ilusões presunçosas sobre a construção do “socialismo em um só país” para embalá-las na aceitação passiva da liderança da burocracia, enquanto o leninismo se esforça por desenvolver a consciência da classe trabalhadora, nunca a patrocinando com mentiras e contos de fadas, mas sempre revelando verdades desagradáveis, na plena confiança de que a classe trabalhadora entenderá e aceitará a necessidade dos maiores sacrifícios, desde que as razões para eles sejam explicadas com honestidade e verdade.

Os argumentos de Lênin foram concebidos não para entorpecer os trabalhadores soviéticos com “ópio socialista”, mas para fortalecê-los para as lutas futuras – para a luta contra o atraso e a burocracia na Rússia e para a luta contra o capitalismo e pela revolução socialista em uma escala mundial.

Foi a simpatia dos trabalhadores do mundo, explicou Lênin, que impediu os imperialistas de estrangular a Revolução Russa em 1917-20. Mas a única salvaguarda real para o futuro da República Soviética era a extensão da Revolução aos países capitalistas do Ocidente.

No 11º Congresso do Partido Comunista Russo – o último ao qual Lênin compareceu – ele enfatizou repetidamente os riscos para o Estado e para o partido decorrentes das pressões do atraso e da burocracia. Comentando sobre a direção do Estado, Lênin alertou:

“Bem, nós vivemos um ano, o Estado está em nossas mãos, mas ele operou a Nova Política Econômica da maneira que queríamos no ano passado? Não. Mas nos recusamos a admitir que não funcionou da maneira que queríamos. Como funcionou? A máquina recusou-se a obedecer à mão que a guiava. Era como um carro que não estava indo na direção que o motorista desejava, mas na direção que outra pessoa desejava; como se estivesse sendo conduzido por alguma mão misteriosa e sem lei, Deus sabe de quem, talvez de um aproveitador, ou de um capitalista privado, ou de ambos. Seja como for, o carro não está indo exatamente na direção que o homem ao volante imagina e, muitas vezes, vai em uma direção totalmente diferente.” (Obras, vol. 33, p. 179, grifos nossos)

No mesmo Congresso, Lênin explicou, em uma linguagem muito clara e inequívoca, a possibilidade de degeneração da revolução como resultado da pressão de classes estranhas.

Já os setores mais perspicazes da burguesia emigrada, o grupo Smena Vekh de Ustryalov, depositavam abertamente suas esperanças nas tendências burocráticas-burguesas que se manifestavam na sociedade soviética, como um passo na direção da restauração capitalista. O mesmo grupo mais tarde aplaudiria e encorajaria os stalinistas em sua luta contra o “trotskismo”.

O grupo Smena Vekh, ao qual Lênin deu crédito por sua visão de classe, entendeu corretamente a luta de Stalin contra Trotsky, não em termos de “personalidades”, mas como uma questão de classe, como um passo para se distanciar das tradições revolucionárias de Outubro.

“A máquina não obedecia mais ao condutor” – o Estado não estava mais sob o controle dos comunistas, dos trabalhadores, mas se elevava cada vez mais acima da sociedade. Referindo-se às opiniões de Smena Vekh, Lênin disse:

“Devemos dizer francamente que as coisas de que fala Ustryalov são possíveis, a história conhece todos os tipos de metamorfoses. Confiar na firmeza das convicções, da lealdade e de outras esplêndidas qualidades morais é tudo menos uma atitude séria na política. Algumas pessoas podem ser dotadas de esplêndidas qualidades morais, mas as questões históricas são decididas por vastas massas, que, se os poucos não lhes convém, às vezes podem tratá-los de maneira não muito polida”. (Obras, vol. 33, p. 287)

Nestas palavras de Lênin encontramos explicada de antemão a derrota da Oposição de Esquerda com um milhão de vezes mais clareza do que em toda a teorização pretensiosa dos “intelectuais” sobre os relativos atributos psicológicos, morais e pessoais de Trotsky e Stalin. O poder do Estado estava escapando das mãos dos comunistas, não por causa de seus defeitos pessoais ou de peculiaridades psicológicas, mas por causa das enormes pressões do atraso, da burocracia, das forças de classe alheias, que pesavam sobre o pequeno punhado de trabalhadores socialistas avançados e os esmagou.

Lênin comparou a relação dos trabalhadores soviéticos e sua guarda avançada com a burocracia e os elementos pequeno-burgueses e capitalistas com a de uma nação conquistadora e conquistada.

A história mostrou repetidamente que uma nação derrotar outra pela força das armas não é, por si só, uma garantia suficiente de vitória. Caso o nível cultural dos vencedores seja inferior ao dos vencidos, estes últimos imporão sua cultura aos conquistadores. Dado o baixo nível de cultura da fraca classe trabalhadora soviética, cercada por um mar de pequenos proprietários, as pressões eram enormes. Eles se refletiram não apenas no Estado, mas inevitavelmente no próprio partido, que se tornou o centro da luta de interesses de classe conflitantes.

Somente à luz de tudo isso podemos entender a posição de Lênin na luta contra a burocracia, sua atitude para com Stalin e o conteúdo de seu Testamento Suprimido. Esse documento expressa sua convicção de que a luta entre Trotsky e Stalin “não é um detalhe, ou é um detalhe que pode adquirir um significado decisivo”, à luz do fato de que “nosso partido se baseia em duas classes”.

Em uma carta escrita pouco antes do 11º Congresso do Partido, Lênin explicou o significado dos conflitos e divisões na direção com estas palavras:

“Se não fechamos os olhos para a realidade, devemos admitir que atualmente a política proletária do Partido não é determinada pelo caráter de seus membros, mas pelo enorme prestígio indiviso de que goza o pequeno grupo que poderia ser chamado de Velha Guarda do Partido. Um leve conflito dentro desse grupo será suficiente, se não para destruir esse prestígio, pelo menos para enfraquecer o grupo a ponto de privá-lo de seu poder de determinar a política”. (Obras, vol. 33, p. 257)

O que determinou a amarga luta de Lênin contra Stalin não foi o defeito deste (“grosseria”), mas o papel que ele desempenhou ao introduzir os métodos e a ideologia de classes e estratos sociais estranhos na própria direção do Partido, que deveria ter sido um baluarte contra essas coisas.

Nos últimos meses de sua vida, enfraquecido pela doença, Lênin recorreu cada vez mais a Trotsky, em busca de apoio em sua luta contra a burocracia e sua criatura, Stalin. Sobre a questão do monopólio do comércio exterior, sobre a questão da Geórgia e, finalmente, na luta para expulsar Stalin do posto de Secretário-Geral, Lênin formou um bloco com Trotsky, o único homem da direção em quem ele podia confiar.

Ao longo de todo este último período de sua vida, em numerosos artigos, discursos e, sobretudo, cartas, Lênin repetidamente expressou sua solidariedade a Trotsky. Em todas as questões importantes que mencionamos, foi a Trotsky que ele escolheu para defender seu ponto de vista nos órgãos dirigentes do partido.

A avaliação de Lênin sobre Trotsky no Testamento Suprimido só pode ser entendida à luz desses fatos. Desnecessário dizer que todas as evidências da existência desse bloco entre Lênin e Trotsky contra a camarilha de Stalin foram mantidas a sete chaves por muitos anos. Mas a verdade vai aparecer. As cartas a Trotsky publicadas no Volume 54, da última edição russa das Obras Completas de Lênin, embora ainda não completas, são a prova irrefutável do bloco que existia entre Lênin e Trotsky.

TRADUÇÃO DE FABIANO LEITE.