Graças à política assassina do governo Bolsonaro, que gerou o colapso dos sistemas de saúde e um elevado número de mortes, o movimento Fora Bolsonaro transbordou os panelaços e as redes sociais diretamente para as ruas. Nem com Lula contra o Fora Bolsonaro e a sua prioridade na defesa da lei, da ordem, e da responsabilidade na economia foram suficientes para evitar a agitação. Milhares, mesmo desassistidos pelas direções de esquerda, estão agora nas avenidas, mesmo sob o risco de contaminação, expressando a rejeição não só ao presidente, mas também a todo o seu governo. A reivindicação das massas é retirar Bolsonaro do planalto imediatamente.
A ida para as ruas representa uma nova fase na luta do movimento Fora Bolsonaro. Entretanto, sabemos que a pauta negativa pela derrubada do presidente precisa ser parte de uma luta também positiva. O que fazer a partir da derrubada do governo? E de que forma ele precisa ser derrubado? O que será posto em seu lugar? Este texto tem como objetivo explicar a palavra de ordem levada à frente pela Esquerda Marxista junto ao “Fora Bolsonaro, Já” e “Abaixo o Governo Bolsonaro”, que é “Por um Governo dos Trabalhadores”. Uma análise de conjuntura completa pode ser encontrada nas Resoluções Políticas do 7º Congresso da Esquerda Marxista.
Ora, se todo comunista reivindica que a classe trabalhadora esteja no poder, não seria óbvio lutar por um governo dos trabalhadores como um princípio aplicável a qualquer país capitalista e em qualquer época? Nesse sentido, a palavra de ordem “por um governo dos trabalhadores” parece idealista, algo como “por uma república soviética no Brasil!”. Mas, por que não concentrar forças na retirada legal de Bolsonaro pelo impeachment ou pela campanha antecipada para levar Lula novamente a presidência? Unir todas as forças anti-Bolsonaro para gerir uma retirada ordenada e pacífica do atual governo não seria menos danoso para a sociedade?
Questionamentos como esses não surgem apenas espontaneamente por companheiros de classe bem intencionados. O problema central é que estes questionamentos são fomentados pelas maiores direções sindicais e partidos de esquerda com o objetivo de bloquear qualquer luta que possa superar as forças dos seus aparelhos.
Primeiro, em 2019, as direções de partidos como PT, PCdoB, PSOL, PSTU e PCB se colocaram contra a palavra de ordem Fora Bolsonaro, defendida de maneira pioneira pela Esquerda Marxista. Dentro de um campo visual estreito, que só vê a disputa institucional, estas organizações puseram-se a lutar contra o Fora Bolsonaro porque só conseguiam ver uma consequência nessa palavra de ordem: Mourão à presidência. Depois, após a massas imporem a luta na marra, deram um novo significado à insígnia. Em um giro oportunista, transformaram o Fora Bolsonaro em “Lula presidente em 2022”, e, agora, em luta por um “impeachment” apoiado na CPI da Covid-19. Essa última, é a bandeira que unifica a esquerda com a burguesia. Para o PT e o PCdoB, a meta agora é fazer com que a fúria contra o governo se transforme em instrumento de pressão parlamentar na mão da oposição.
O único “empecilho” é que qualquer avanço para um impeachment depende da anuência do presidente da câmara dos deputados, Arthur Lira, aliado de Bolsonaro. No campo institucional, burguesia e esquerda estão unidos para fazer sangrar o governo até 2022. A única diferença são os candidatos e o ponto de partida de onde lutam: a burguesia ainda não tem candidato, mas parte da sua montanha de dinheiro, fruto da propriedade privada, e da sua imprensa; as direções reformistas de esquerda, por sua vez, já tem um candidato, Lula, e partem da sua hegemonia no campo sindical e dos movimentos populares.
A preocupação destas direções com movimentos de rua ilimitados é que, caso eles avancem contra o governo e as instituições caducas da república, assim como está acontecendo em diversos países da América Latina, elas correm o risco de perder o controle eleitoral, sindical e estudantil que construíram ao longo das últimas décadas. O controle burocrático da CUT, CTB, UNE e das suas máquinas próprias de campanha eleitoral é fundamental para sua perpetuação à testa dos trabalhadores. Mas, ao final, o elemento decisivo para decidir quem continua ou não no comando será sempre a luta de classes. É por isso que a fúria contra o governo transbordou toda tentativa de mantê-la dentro de casa, pois nem a mais poderosa burocracia pode barrar a insatisfação decorrente de uma crise econômica.
Vamos à luta de classes. Em um dos polos dela temos os capitalistas. Como vemos nos noticiários burgueses, a unificação das suas diversas frações está se dando em torno da luta pelas “reformas”, pela incorporação nas empresas das tecnologias oriundas da chamada “Revolução 4.0”, e dos pacotes de “incentivo à economia” vindos do governo. As reformas retiram direitos historicamente conquistados, as novas tecnologias eliminam postos de trabalho, e os pacotes de incentivo alimentam a especulação nas bolsas de valores. A bolsa tem sido prioridade dos capitalistas pois em todo o mundo há grande capacidade industrial ociosa, o que não é bom sinal para o capital industrial. E tudo pode ficar pior: como consequência da especulação, estão surgindo gigantescas bolhas financeiras que podem estourar a qualquer momento.
Ligado a isso, está o problema da dependência da burguesia nativa brasileira do imperialismo. Ela é tão nanica e dependente de capital externo, que não consegue levar adiante qualquer projeto de desenvolvimento nacional junto às outras classes, como defendem os reformistas e pequeno-burgueses de plantão. A burguesia brasileira, como uma típica burguesia semicolonial, precisa ser antinacional, para disputar as migalhas da mais-valia que caem da mesa das multinacionais e países imperialistas, ou explorar setores atrasados da produção, que proporcionam menores taxas de lucro.
Precisamos levar em conta também que a infraestrutura brasileira é tão atrasada, que se torna a cada dia mais incapaz de atender em seu território o interesse das multinacionais. Não há conjuntura para vivermos aqui algo como o que ocorreu na China, nos anos 2000, com a chegada de diversas fábricas estrangeiras em nosso território. Os níveis elevados de dívida pública e a encruzilhada que leva os capitais para a especulação financeira também impedem qualquer iniciativa de uma jornada keynesiana de investimentos do Estado para aquecer a produção. Não há base econômica para tal, pois um aumento da dívida, resultado destes investimentos, poderia assustar investidores por medo de um calote. Com um governo de banqueiros e capitalistas, continuaremos indo em direção ao abismo. Nada indica que as fábricas estrangeiras possam vir ao Brasil ou que os futuros governos se tornarão menos dependentes das commodities. A cada dia há novos anúncios de fechamento de fábricas, basta buscar em qualquer noticiário.
E mesmo que por alguma obra mágica as fábricas multinacionais viessem para o Brasil, os robôs substituíram tão massivamente a força de trabalho que não chegaríamos a qualquer coisa próxima do pleno emprego ou de um novo “milagre econômico”. O único setor produtivo que no Brasil está fervendo é o da agroindústria, que emprega muito pouco e depende da utilização predatória dos recursos naturais. Essa fração agropecuarista da burguesia brasileira apoia firmemente Bolsonaro, e ele mesmo se apoia nela, buscando “passar a boiada”, desmontar a proteção aos indígenas e reprimir os movimentos sociais dos sem-terra.
Não sobrou alternativa para os capitalistas brasileiros: para proteger os lucros e sobreviver à crise, a nanica burguesia brasileira só consegue se unir solidamente para se apropriar de mais partes da riqueza social destinada aos trabalhadores, reduzindo direitos, salários, empregos, saqueando os cofres públicos pelo orçamento de guerra e pela dívida pública. Mas não faz isso tudo pelo simples prazer pela guerra, afinal, uma guerra econômica contra os trabalhadores solidifica os laços nos locais de trabalho, fomentando movimentos de oposição. A real motivação para o combate é que caso a burguesia unida não faça guerra contra os trabalhadores, precisará fazer internamente, entre irmãos de classe, aquecendo mais ainda a disputa concorrencial pela repartição da massa de mais-valor existente.
Mas há uma medida de precaução a ser tomada caso a austeridade provoque insatisfação. Para evitar que os ataques se transformem em greves, em movimentos de massa e no aumento da influência dos marxistas, os capitalistas podem contar com os seus velhos aliados reformistas. É uma mistura de medo da revolução com a velha estratégia da burguesia como classe dominante, que é a de comprar todos aqueles que poderiam a ela se opor, deixando a via militar apenas como último recurso.
Em número de trabalhadores sindicalizados, a CUT (ligada ao PT) tinha, em 2016, quase 4 milhões de filiados – por volta de um terço de todos os trabalhadores sindicalizados –, e a CTB (ligada ao PCdoB), 1,3 milhões. É uma força e tanto, portanto a burguesia precisa contar com as lideranças destas estruturas para manter essa força sob certos limites. Só há um problema nessa relação entre lideranças dos trabalhadores e burguesia nativa. No Brasil, sua união é bem precária, se comparada com a realizada nos países imperialistas. Nos EUA, por exemplo, as lideranças da Federação Americana do Trabalho e Congresso de Organizações Industriais, a AFL-CIO, uma espécie de “CUT”, têm relações próximas com o Partido Democrata, ou seja, um partido da burguesia. Durante a guerra fria, apoiou golpes militares contrarrevolucionários em diversos países. Ora, mesmo o dirigente mais pelego e conciliador da CUT não pode ir tão longe contra os trabalhadores ou outros povos sem causar uma intensa agitação das bases.
Por isso os capitalistas não apoiam Lula, mesmo sabendo que ele é um ótimo “gestor” dos interesses da sua classe e que está disposto a defendê-los até o fim. O problema é que Lula não pode ir tão longe quanto eles precisam nesse momento de crise. O fato de atrás de Lula existir um partido que controla grandes aparelhos dos trabalhadores, os assusta. Já do ponto de vista de Lula, como é que ele conseguiria governar, após eleito e em uma situação institucional estável, sem o apoio das reacionárias bancadas parlamentares da bala, do boi, e da soja? E se não governar com elas, como fomentar setores industriais com capacidade industrial ociosa na busca de um rápido crescimento do PIB? De uma forma ou de outra, o que sabemos com certa segurança, é que o próximo governo dos capitalistas no Brasil irá governar com os banqueiros e dependerá do apoio das forças armadas para reprimir o povo em caso de revolta. E se Lula for eleito presidente, não buscará construir um governo dos trabalhadores.
Entretanto, um governo independente dos patrões e do alto escalão das forças armadas, apoiado em assembleias populares, na base das forças armadas e em ocupações de fábrica, tem muitos elementos materiais para se realizar no Brasil. Não se trata de utopia ou fraseologia de lunáticos. Soma-se aos elementos materiais uma conjuntura internacional explosiva que está colocando as massas enfurecida nas ruas.
A questão essencial do movimento Fora Bolsonaro é que ele está unificando a classe trabalhadora em frente única, e que isso abre um novo momento de impulsão para a construção de uma direção revolucionária para a classe trabalhadora no país. É nisso que se empenha a Esquerda Marxista. Como preparar a tomada do poder, tomá-lo em um momento favorável, e construir um Estado operário para atender às principais reivindicações dos trabalhadores e camponeses pobres? PT e PCdoB têm condições para iniciar a realização destes objetivos agora. Contudo, por mais que seus militantes, na base, possam concordar com eles, sua direção não irá realizá-los, muito menos propô-los. Precisamos, nesse momento, mostrar à vanguarda dos trabalhadores, principalmente a seus elementos mais jovens, todo o potencial presente na luta de classes. A reivindicação “Por um governo dos trabalhadores, sem patrões nem generais!” cumpre esse papel.
Diante da situação explosiva que vivemos internacionalmente e das possibilidades de desenvolvimento dela no Brasil, a fantasia do clã Bolsonaro sobre o “comunismo no Brasil” não está totalmente descolada da realidade, tampouco o medo da burguesia em ter Lula na presidência constitui apenas uma ingratidão a sua posição servil. A luta de classes continua em marcha, e cabe aos comunistas intervir nela para construir uma direção revolucionária que seja capaz de levar as reivindicações imediatas e históricas do proletariado às últimas consequências.