A ministra Kátia Abreu e o conflito entre índios e agronegócio

A nova ministra da agricultura, Senadora Kátia Abreu (PMDB-TO), deu uma longa entrevista ao jornal Folha de São Paulo (05/01/15) na qual comentou sobre produção agropecuária, questão fundiária, reforma agrária, conflitos no campo e crise financeira. No artigo que segue analisamos o significado de suas posições e o aprofundamento à direita do governo Dilma.

A nova ministra da agricultura, Senadora Kátia Abreu (PMDB-TO), deu uma longa entrevista ao jornal Folha de São Paulo (05/01/15) na qual comentou sobre produção agropecuária, questão fundiária, reforma agrária, conflitos no campo e crise financeira.

Para analisar sua entrevista e a conjuntura no campo nesse segundo mandato de Dilma, nós produzimos uma série de 3 artigos. Este é o primeiro e tem como tema central a questão indígena. Em breve, publicaremos outros dois sobre a atualidade da reforma agrária e sobre os impactos da crise no agronegócio.

Legenda da imagem: Indígenas Xerentes, Canelas, Javaés e Carajás apontam flechas contra uma foto da presidente Dilma Rousseff ao lado da senadora Kátia Abreu, em frente ao Palácio do Planalto, em Brasília, em protesto dia 04/12/2014 contra a indicação de Kátia Abreu para o ministério de Dilma. Créditos: Dida Sampaio/ Estadão Conteúdo

A questão indígena

A questão indígena hoje está marcada por muitos conflitos como os Guaranis-Kaiowás em Mato Grosso do Sul, os Mundurukus no Vale do Tapajós, as tribos que resistem contra a instalação da usina de Belo Monte no Pará, entre tantos outros.

Na entrevista à Folha de São Paulo, Kátia Abreu defendeu os produtores rurais dizendo que os mesmos são vítimas das poucas ações da Fundação Nacional do índio – FUNAI e que os processos de demarcação de terras indígenas ameaçam o direito desses proprietários de exportar suas commodities para mercados muito lucrativos no comércio exterior.

As declarações de Kátia Abreu hoje como ministra foram exatamente as mesmas desde o período em que era presidente da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA), a CUT dos ruralistas. Parece que mesmo sendo ministra da Dilma o tom reacionário do seu discurso não mudou. Foram declarações que deslegitimaram o direito dos povos indígenas sobre suas terras, fazendo propaganda de projetos de lei em tramitação no Congresso que representam interesses ruralistas.

(…) Enquanto os índios reivindicavam áreas na Amazônia, a gente nunca deu fé do decreto de demarcação. É um decreto inconstitucional, unilateral, ditatorial, louco, maluco. [E por que vocês só foram ver isso depois?] Porque os índios saíram da floresta e passaram a descer nas áreas de produção. (…) [As terras dos índios também foram tomadas] Então vamos tomar o Rio de Janeiro, a Bahia. Por que [o raciocínio] só vale em Mato Grosso do Sul? O Brasil inteiro era deles. Quer dizer que nós não iríamos existir. (…) (2)

Essa afirmação de que a razão do conflito atual entre populações indígenas e empresários é porque “os índios saíram da floresta e passaram a descer nas áreas de produção” é uma afirmação absurdamente falsa. Quem conhece um pouco de história do Brasil sabe que a realidade é o inverso. São os agentes do latifúndio e do agronegócio que invadem, derrubam as florestas, expulsam e assassinam as populações tradicionais como índios, quilombolas e outras.

Kátia Abreu admite que as terras dos índios foram todas invadidas e tomadas. O Rio de Janeiro, ao qual a ministra se refere, nesse ano de 2015 “comemora” 450 anos de fundação da cidade. O marco é a conquista das terras pela coroa portuguesa contra franceses e o massacre aos índios que habitavam todo o litoral e o entorno da Baia de Guanabara.

Kátia Abreu admite que “o Brasil inteiro era deles” e seu cinismo sugere um espantalho, uma ideia caricata, de que os movimentos sociais e povos indígenas estão reivindicando “o Brasil inteiro”. Ora, mas quem está fazendo isso hoje são os ruralistas. E se os ruralistas invadem as terras dos índios por que os índios não poderiam invadi-las de volta? E por que Dilma não poderia invadir as terras dos ruralistas e devolver aos índios?

A política de Estado com relação aos índios nem é atribuição do Ministério da Agricultura. Mas este ministério se envolve bastante sobre o tema porque a causa deste conflito hoje é que as reivindicações dos índios por demarcação de terras se chocam diretamente com os interesses da classe social a qual Kátia Abreu representa, uma burguesia rural cada dia mais dominada pelo capital internacional.

A reação dos índios às declarações de Kátia Abreu tem sido na linha de se valer da Constituição Federal de 1988, que garante o direito dos povos indígenas às terras tradicionalmente habitadas por eles, como garantia para a sua sobrevivência física e cultural. E são anunciados protestos para o próximo período, principalmente contra a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215 (3), que transfere, do Executivo para o Legislativo, a competência e a palavra final sobre demarcação de terras indígenas.

Kátia Abreu é mais uma reacionária dominada pelo asqueroso preconceito contra o modo de vida comunitário de muitas populações indígenas. E por isso acredita que a cultura indígena é uma cultura primitiva, concebendo-os como povos estacionados no tempo. E que, portanto, tem até o direito de seguir existindo, mas somente na condição de isolamento. Isto é, vivendo em ocas de palha nos confins da Amazônia idealizada, mas nunca em cidades ou em locais que ela chama de “áreas de produção”, que são os territórios corporativos do agronegócio que avança cada vez mais sobre as florestas na fronteira norte e oeste do país.

Lembramos que a Amazônia desabitada ou concebida como área exclusiva de comunidades de índios e ribeirinhos também não passa de um grande mito. A Amazônia hoje é uma região habitada por 20 milhões de pessoas com redes de cidades e indústrias, com grande atividade de mineração, frigoríficos, diversas atividades econômicas de extrativismo e outras. A Amazônia hoje é palco de disputas e conflitos por apropriações de terras por diferentes frações do agronegócio, que projetam seus interesses e empreendimentos sobre as áreas denominadas “desmatadas e degradadas” dos biomas amazônicos, cerrado e campos gerais. Um exemplo é o Projeto de Lei do Senado 626/2011 (4) que visa derrubar os vetos para empreendimentos de monocultura e usinas de cana na região. Por trás desses planos encontramos diversas empresas ligadas ao capital internacional e suas políticas implementadas pelos ruralistas como, por exemplo, a reforma do Código Florestal (2012), que Dilma apenas vetou parcialmente, mas que significou um sinal verde para o desmatamento e um sinal vermelho para a reforma agrária.

Voltemos ao debate da ideologia burguesa dos ruralistas sobre os índios. Este pensamento continua inteiramente fascista, por acreditarem que os índios não deveriam ter nem mesmo o direito à terra por considerar que índio não produz mercadorias. É o que faz Kátia Abreu ao dizer: “Se [Dilma] quiser ajudar os índios a produzirem, sou a parceira número um. Faço isso no meu estado.” (2) No fundo, os ruralistas querem dizer que índios não produzem nada para o mercado e acumulação capitalista. E isso basta para os índios não serem compreendidos pela burguesia, cuja racionalidade segue sendo colonialista em sua essência e só consegue compreender aquelas sociedades que possuem necessidades governadas pelo capitalismo, isto é, relações sociais estruturadas no capital e no trabalho assalariado.

Com Kátia Abreu se tornando ministra, a bancada ruralista ganha mais força para realizar impedimentos de toda ordem que visam à demarcação e homologação de terras indígenas e quilombolas. Ressaltando que essas são ações tão abomináveis que até mesmo no interior do STF, instituição da alta instância do Estado que rotineiramente toma decisões contrárias às populações indígenas, algumas das suas frações denunciam estas políticas, como demonstram essas palavras do ministro Ricardo Lewandowski (STF): “(…) o agronegócio quer isso mesmo: expulsa os índios e depois os contrata como boias-frias. É assim que está acontecendo no Brasil todo.” (5)

Correm diariamente na imprensa denúncias de apropriações ilegais de terras indígenas. Vimos em ampla divulgação na mídia, em 2012, quando a grande empresa canavieira Raízen, (fusão entre Cosan e Shell, maior empresa canavieira do mundo), firmou acordo com a FUNAI, comprometendo-se a não mais comprar cana-de-açúcar cultivada em áreas pertencentes a comunidades indígenas. (6)

Uma decisão de recuo do capital ocorreu em meio à polêmica envolvendo a reserva indígena Guyraroká, pertencente à tribo Guarani, no município de Caarapó, no Mato Grosso do Sul, uma terra declarada pela FUNAI, mas ainda não demarcada. Essa comunidade recebeu uma expedição organizada pela Associação de Geógrafos Brasileiros – AGB voltada a investigar os elementos da luta pelo território Kaiowá-Guarani.  Foi produzido um relatório detalhado sobre os combates de resistência e superação ao agronegócio, da cadeia da cana-de-açúcar e outros cultivos, em terras indígenas. (7)

Muitos movimentos sociais compreenderam que a escolha que Dilma fez ao escolher Kátia Abreu para a equipe ministerial significou uma submissão aos interesses da burguesia por ela ser líder destacada da bancada ruralista no Congresso, ex-presidente da CNA e inimiga declarada dos povos indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais e camponeses. Lembrando que nessa mesma vinculação também foram escalados Joaquim Levy, o alto diretor do Bradesco, na Fazenda, Nelson Barbosa, defensor da austeridade, no Planejamento, Armando Monteiro, ex-presidente da CNI, para o Desenvolvimento e outros.

Ao indicar Kátia Abreu, Dilma está destroçando o programa original do PT no qual a defesa dos índios frente ao capital equivale nada menos que defender a humanidade. Nossa solidariedade e combate na defesa destes povos tradicionais contra a sua destruição é a defesa do direito a terra das populações tradicionais e defesa da heterogeneidade étnica e cultural da nação brasileira e da humanidade.

Os movimentos sociais que hoje se indignam com a indicação de Katia Abreu e cobram coerência de Dilma são aqueles que não se renderam ao capital e continuam o combate e a solidariedade com os oprimidos, aqueles que seguem na luta por um mundo sem capitalismo. Uma luta que certamente será mais dura nesse segundo Governo Dilma, para que se realize a reforma agrária e um dia cada povo tenha o direito de forjar seu próprio destino a partir de seus valores e de sua significação de mundo, incluindo a satisfação de suas necessidades materiais e simbólicas sem a exploração do homem pelo homem.

Continuaremos a análise da entrevista da ministra Kátia Abreu em mais outros 2 artigos que serão publicados em breve: sobre a atualidade da questão fundiária e a luta pela reforma agrária, e sobre os impactos da crise financeira internacional no agronegócio.

 

REFERÊNCIAS

(1) – Mestre em Geografia pela UFF. Contato: reis.geografia@gmail.com

(2) – Entrevista de Katia Abreu. Site da Folha de São Paulo. 05/01/15. Último acesso: 14/01/15. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/01/1570557-nao-existe-mais-latifundio-no-brasil-diz-nova-ministra-da-agricultura.shtml

(3) – Proposta de Emenda a Constituição PEC 215/2000. Site da Câmara dos Deputados. Último acesso: 14/01/15. Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=14562

(4) – PLS. Texto final do Projeto de Lei do Senado Nº 626, de 2011, aprovado pela coomissão de meio ambiente, defesa do consumidor e fiscalização e controle na reunião do dia 14 de maio de 2013. Site do Senado Federal. Último acesso: 14/01/15. Disponível em: http://www.senado.gov.br/atividade/Materia/getPDF.asp?t=127683&tp=1

(5) – FPA. STF derrota tese da FUNAI. Site da Bancada Ruralista. Último acesso: 14/01/15. Disponível em: http://fpagropecuaria.org.br/noticias/stf-derrota-tese-da-funai#.VIFDyfldVFt

(6) – UNISINOS. Parceria Shell-Cosan desiste de comprar cana de açúcar de terras indígenas. 15 de junho de 2012. Último acesso: 14/01/15. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/510418-parceria-shell-cosan-desiste-de-comprar-cana-de-acucar-de-terrasindigenas

(7) – MACHADO, S. M. M. ; CARLINI, E. L. D. G.. Expedição Marco Veron e a luta do povo Kaiowá-Guarani em Mato Grosso do Sul. Revista Terra Livre. Ano 28, Vol. 1, n.38, Jan-Jun/2012. Também disponível no site da Associação dos Geógrafos Brasileiros – AGB em (último acesso: 14/01/15): http://www.agb.org.br/documentos/2012/GuaraniKaiowa.pdf