A Nigéria nas últimas décadas (Parte 3)

Artigo publicado no jornal Foice&Martelo Especial nº 14, de 03 de setembro de 2020. CONFIRA A EDIÇÃO COMPLETA.

Situação com o coronavírus

Se em tempos normais a burguesia não tem pudor em massacrar e deixar morrer de fome a população para lucrar com as commodities, em tempos de pandemia não seria diferente. Um bom exemplo é a multinacional Pfizer, que fez recentemente crianças pobres nigerianas como cobaias para teste de seu medicamento Trovanin, resultando na morte de 11 delas, causando nas sobreviventes perda de sentidos, danos cerebrais, entre outros problemas. Um ensaio clínico perverso que não teve sequer a autorização do governo nigeriano, provocado pela mesma Pfizer de que Donald Trump comprou todas as vacinas em produção por 10 bilhões de dólares em julho deste ano.

Crianças já morrem cotidianamente na Nigéria em uma proporção assombrosa: de acordo com a ONU, em uma lista de 194 países, está atrás de apenas 13 em mortalidade infantil. De 1995 a 2010 há uma média de 108,52 crianças mortas para cada mil nascidos, o que em números reais é ainda mais assustador se considerarmos os mais de 200 milhões de habitantes atualmente. Essas crianças vivem em favelas superlotadas, sem saneamento e água potável. Essas são as condições para um verdadeiro morticínio jamais antes visto pelo povo nigeriano, e tudo patrocinado pelas multinacionais farmacêuticas, por Donald Trump, pelos acionistas do petróleo e pelo governo nigeriano capacho do imperialismo norte-americano.

Uma questão que explica isso didaticamente é que o atual epicentro de coronavírus no país é o estado de Kano, onde nasceu Aliko Dongote, empresário que já chegou a ultrapassar a fortuna de 20 bilhões de dólares, sendo hoje a pessoa mais rica do continente africano segundo a revista Forbes. Obviamente, seu patrimônio (hoje avaliado em 8,3 bilhões de dólares), assim como os quase 400 bilhões de dólares do Produto Interno Bruto (PIB) nigeriano, não se revertem em condições e infraestrutura para o isolamento social, a contenção de contágio e o tratamento aos infectados; exatamente da mesma forma como sempre viraram as costas para a alimentação no país onde crianças ainda morrem de fome e sem acesso a medicamentos.

A organização dos trabalhadores

No que pese nossas condolências e a profunda amargura dessas informações, a nós, marxistas, cabe entender esse quadro para assegurar um golpe definitivo a essas aberrações que afligem nossa classe. Primeiro, e talvez mais importante, entender que a classe trabalhadora não está derrotada. A análise científica à luz do materialismo histórico e dialético nos fornece os elementos nesse sentido.

No início dos processos de privatização durante o governo Jonathan, trabalhadores se organizaram pela base em consideráveis manifestações, mesmo sem a mobilização de suas direções sindicais. Na onda de violência ocorrida no norte da Nigéria, a juventude e os trabalhadores se organizaram na Força-Tarefa Conjunta Civil (JTF) para repelir os ataques do Boko Haram, conseguindo vitórias importantíssimas — que o governo foi completamente incapaz de fazer —, chegando a ganhar a simpatia de militares de baixa patente irritados com as péssimas condições que os desvios nos orçamentos de segurança os imprimem.

O presidente reeleito Buhari tem nas mãos uma bomba com o pavio aceso e vem perdendo credibilidade em um contexto caótico: manifestações espontâneas, seitas extremistas, violência fora de controle, pandemia do coronavírus. Além disso, a própria classe trabalhadora, que repudia o sistema e suas direções sindicais, se organiza por conta própria e sente cada vez mais o poder que tem. Diante disso tudo, Buhari tem a dura missão de salvar os interesses da burguesia e do imperialismo norte-americano e de preservar as estruturas do Estado burguês sem provocar uma catástrofe social.

Notavelmente vivemos uma crise histórica na humanidade há muito tempo. Quando Trotsky afirmou que “a crise histórica da humanidade reduz-se à crise da direção revolucionária”, colocou de maneira precisa que a insatisfação surge como um vulcão em erupção, que treme o solo sob os pés da burguesia e pode lançá-la ao ar a qualquer momento. A ciência já é capaz de aproveitar forças como a da gravidade, a força das marés, dos ventos, a combustão, e revertê-las em grandes avanços para a humanidade. Chegamos ao mais profundo oceano e até à Lua assim. A classe trabalhadora também carrega uma força mais do que suficiente para enterrar de vez o sistema que condiciona toda essa barbárie, o sistema capitalista. Esse repúdio ao sistema que se gesta na Nigéria se reflete cada vez mais nas manifestações, nas ruas e, de certa forma, nas urnas.

Em números, 43 dos 72 milhões de eleitores convocados se recusaram a votar na última eleição na Nigéria. Isso equivale a 60% do eleitorado. Esse número esvaziado — por um lado resultante da intimidação e da ameaça de grupos extremistas, por outro resultante da descrença nos mecanismos da democracia burguesa — revela que este é um campo viciado, ilegítimo e notavelmente desconexo aos interesses da classe trabalhadora.

Do jeito que está, não há nenhuma perspectiva de melhora (muito pelo contrário!). Podemos dizer que a pandemia sequer chegou efetivamente na África, e torcemos para que não chegue. Mas seremos complacentes se esperarmos de braços cruzados enquanto multinacionais fazem ensaios clínicos com crianças pobres em laboratórios, as amontoam com fome em seus conglomerados habitacionais, enquanto movimentam bilhões de dólares em títulos da Casa Branca.

Vários dos elementos apontados em relação à Nigéria nos são comuns e há paralelos a serem feitos com o Brasil. Isto reafirma o caráter internacional da classe trabalhadora e, também, da veia assassina da burguesia e de seu Estado burguês, ainda que se vistam de Estado Democrático de Direito em regimes civis.

Tanto lá quanto aqui, nenhuma solução virá pelas eleições burguesas, ONG’s, fundações ou pelas direções traidoras dos partidos e sindicatos. A solução está na própria organização da classe trabalhadora, desde o enfrentamento da criminalidade por meio de Comitês Proletários de Auto Defesa (apresentados de forma embrionária nas forças-tarefa da JTF), até a expropriação das fortunas pilhadas com trabalho alheio, dos recursos públicos e dos grandes meios de produção (como as terras agricultáveis, o sistema de energia e a extração de petróleo), em uma economia planificada e sob controle operário. Isso não cabe no Estado burguês e no capitalismo. Isso só virá através de um rompimento brusco que suprima, a nível internacional, a burguesia enquanto classe dominante. Em outras palavras, por meio de uma revolução socialista.

Para isso, é necessário um partido que consiga expressar essa perspectiva. Esse é o contexto em que os marxistas estão chamados a intervir, para superar qualquer ilusão nos programas de reforma do sistema capitalista. Devemos superar as traições das direções dos partidos e dos sindicatos e elevar as reivindicações imediatas ao que elas representam no campo político: que é a derrubada do sistema e a expropriação dos meios de produção sob controle operário, em uma economia planificada pela própria classe trabalhadora, sem qualquer transigência ao imperialismo, ao governo, à burguesia ou às forças repressivas da burguesia no combate à violência que ela mesmo provoca e alimenta.

“A emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores” (Karl Marx e Friedrich Engels, em O Manifesto do Partido Comunista)