Foto: Ricardo Moraes, Reuters

A pandemia, o racismo e a exploração de classe

Artigo publicado no jornal Foice&Martelo Especial nº 05, de 30 de abril de 2020. Confira a edição completa

Em 28 de abril o Brasil registrou 474 mortes por Covid-19, sendo que o número de mortes chegou a 5.083 pessoas e o de infectados a 73.166 de acordo com o Ministério da Saúde.

O estado de São Paulo concentra o maior número de infectados, com 20.715 caos confirmados e 1.700 mortes. No Rio de Janeiro são 7.111 infectados e 645 mortes. Nos estados do Nordeste, o Ceará lidera o ranking com 5.833 infectados e 327 mortes, enquanto em Pernambuco foram registrados 415 mortes. No estado do Amazonas, onde já temos uma situação de barbárie, ocorreram 404 mortes, sendo a maioria delas em Manaus, que registrou no dia 27/04 140 enterros em 24 horas, batendo o recorde de registros desde início de pandemia. 

No atual estágio da pandemia de Covid-19, em todos os países temos visto a falência dos sistemas de saúde, como por exemplo na maior potência econômica do mundo, os EUA, hoje o novo epicentro do coronavírus que atinge em cheio os negros e latinos, parcela da população onde se concentra o maior número de mortos. 

No dia 28/04 o número de contaminados nos EUA chegou a 1 milhão. Ao todo, 56 mil pessoas morreram no país desde o início da pandemia, segundo o monitoramento em tempo real da universidade norte-americana Johns Hopkins. Por dia, cerca de 2 mil norte-americanos morrem em decorrência da Covid-19. Este é o país capitalista mais poderoso do mundo.

No Brasil temos 42 milhões de invisíveis (segundo o Presidente da Caixa Econômica Federal) que trabalham como informais, o que representa em torno de 43% da população. Há também 12,6 milhões de desocupados, cerca de 7 milhões de pessoas subocupadas por insuficiência de horas trabalhadas e 4,8 milhões de desalentados, os que não procuram mais trabalho. A intensificação dessa situação altamente precária é resultado das medidas implantadas pela reforma trabalhista, segundo o Dieese.

A maioria da população brasileira é negra (pretos e pardos) segundo a classificação do IBGE, que analisa a composição da população brasileira através do censo realizado a cada 10 anos, incluindo na pesquisa a autodeclaração. O percentual de pessoas que se declaram negras no Brasil, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do IBGE, é de 56,10%. Dos 209,2 milhões de habitantes do país, 19,2 milhões se assumem pretos, enquanto 89,7 milhões se declaram pardos. 

A situação criada pela pandemia desnudou as profundas desigualdades econômicas, raciais e sociais existentes entre os países do mundo capitalista e no interior de cada um destes países, como por exemplo o Brasil. 

Desde o início da crise de Covid-19 era perceptível que a classe trabalhadora, e dentro dela os negros e os mais pobres, seriam os mais afetados direta e indiretamente, pois as péssimas condições de vida em que vive a maioria da população a faz se expor com maior frequência ao contágio, o que tem influência decisiva sobre suas chances de sobrevivência. 

Todas as medidas adotadas pelo Estado visando estancar a proliferação do coronavirus não alcançaram a maioria da população em razão do fator classe e raça, mostrando a que serve o racismo estrutural como pilar de sustentação dentro de um país cujo modelo de produção é o capitalismo e a estrutura organizacional da sociedade e de seu Estado é a democracia burguesia. 

O isolamento acaba sendo um privilégio da burguesia

A principal medida recomendada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), o isolamento social, é impraticável para a grande maioria da população. Segundo a médica Margareth Dalcolmo, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e uma das pneumologistas mais experientes do Brasil, “O isolamento social severo e o SUS são as grandes armas do Brasil contra a pandemia”.

A burguesia, como classe dominante, pode de forma deliberada ficar em isolamento. Entretanto, a classe trabalhadora não tem esse “privilégio”. Como 40 milhões de informais, entre eles motorista de aplicativos, empregadas domésticas, diaristas e entregadores poderão se isolar? Se não trabalharem, não comem.  

Como os trabalhadores da iniciativa privada que estão dentro das fábricas, nos sistemas de transporte e nas grandes corporações privadas podem se isolar se são obrigadas a trabalhar pelo patronato se expondo a contágio todos os dias, e seus sindicatos e as direções ficam dando milho ao pombos em vez de estar construindo e organizando medidas de proteção às suas categorias?

Para a burguesia e o patronato é muito fácil se isolar e mandar seus empregados trabalharem para si. Já fizeram isso na guerra do Paraguai, quando mandavam para o fronte negros escravizados com a promessa de alforria caso voltassem vivos para livrarem a si e a seus filhos da morte certa na guerra.

E isso se repete agora com os patrões e suas carreatas da morte para pressionar a abertura do comércio em todo país, inclusive submetendo esses trabalhadores e trabalhadoras a assédio moral, como o ocorrido na cidade de Campina Grande (PB), onde funcionários foram obrigados a se ajoelhar em frente a várias lojas pedindo a reabertura do comércio. 

No Brasil os negros e os pobres são a maioria que não pode se isolar voluntariamente. A ocupação espacial das cidades, que privilegia a especulação, concentrou essas populações em aglomerados urbanos, com a maioria dos bairros sem nenhuma estrutura de serviços básicos como água potável, esgoto, saneamento e unidades de saúde e com moradias habitadas por até 10 pessoas. 

Essa é a fotografia das desigualdades de uma sociedade racista e dividia em classes sociais, e que também pode ser visualizada pelo que ocorre na cidade de São Paulo, onde a distribuição de leitos de UTI do Sistema Único de Saúde (SUS) privilegia os bairros mais ricos e próximos ao centro, enquanto as periferias sofrem com a ausência de equipamentos fundamentais para o tratamento de quadros graves de doenças respiratórias como a Covid-19.

Os distritos da Brasilândia, com 54 mortes, e Sapopemba, com 51, são os mais atingidos. Na sequência vêm São Mateus, com 41 mortes, e Cidade Tiradentes, com 37. Já no Rio de Janeiro o maior número de óbitos é na Zona Oeste. Segundo a prefeitura, Campo Grande lidera em contingente de aglomerações. O resultado é que uma em cada três mortes no Rio de Janeiro é registrada em Campo Grande, Bangu e Realengo, bairros onde a população negra é majoritária.

O trabalho realizado pela Rede Nossa São Paulo, divulgado em abril deste ano, revela que 60% dos leitos de UTI do SUS estão concentrados nas regiões das subprefeituras da Sé, Pinheiros e Vila Mariana, localizadas nas regiões mais ricas e centrais da cidade, onde vive 9,3% da população.

Na outra ponta, nas regiões periféricas das subprefeituras de Aricanduva, Jaçanã, Lapa, Parelheiros, Perus, Campo Limpo e Cidade Ademar, não se tem nenhum leito de UTI. 20% da população da cidade está concentrada nestas regiões, o que equivale a 2,3 milhões de pessoas. Em cinco delas há 32% de pessoas negras a mais que a média do município. O levantamento também mostra que a região da subprefeitura de Pinheiros, bairro de classe média alta da Zona Oeste, dispõe de 365 leitos de UTI públicos para uma população de 294 mil pessoas.

O que temos visto em todo país é que, frente à enorme demanda por atendimento, o sistema público de saúde entra em colapso. Estes são os efeitos perversos de anos de privatizações e de sucateamento do SUS e das políticas de austeridade fiscal praticadas pelos governos de Temer e Bolsonaro.

Os dados apresentados e a realidade que estamos vivendo e que estão todos os dias nos noticiários ao vivo jogam por terra o que defendeu nas duas últimas décadas a maioria do movimento negro no Brasil: a luta para integrar negro dentro da ordem deste sistema como política de igualdade racial. São os críticos das políticas universalistas, afirmando que elas foram incapazes de “incluir o negro”, negando-lhes o acesso aos serviços públicos essenciais. Isso como regra acontece com a maioria da população brasileira e da classe trabalhadora, que também tem parcelas de não negros.

Esquecem-se esses senhores e senhoras que a luta organizada da classe trabalhadora para garantir a aplicação desses direitos e outros adquire neste momento de pandemia um caráter revolucionário, pois vão se chocar com as políticas implementadas pelo governo Bolsonaro, que para atender aos interesses do capital financeiro nacional e internacional e das grandes corporações transnacionais aprofunda as políticas de ajuste fiscal retirando bilhões de dólares que poderiam ser aplicados para de fato garantir condições de sobrevivência dignas para a população, como por exemplo pagar o valor do salário mínimo calculado pelo Dieese, que é de R$ 4.347,61 e não os míseros R$ 600,00. 

Bolsonaro disse em 27/04 quando o Brasil superou a China em números de mortos em razão da Covid-19: “E daí? Lamento. Quer que faça o quê? Sou Messias, mas não faço milagre”, desdenhando da dor de milhares de brasileiros. Mostra a face de um verdadeiro canalha.

O “alma sebosa” poderia investir os mais de R$ 700 bilhões que paga a título de juros da dívida pública a banqueiros para salvar vidas e empregos. Faz o contrário, continua a rolagem de R$ 1,6 trilhão da dívida ao custo do aumento da miserabilidade, pobreza e mortes no seio da classe trabalhadora onde está a quase totalidade da população negra.

Nesta crise do sistema que a Covid-19 revelou fica muito claro que a burguesia e seu Estado não têm nenhum escrúpulo em se utilizar de todos os meios necessários para fazer valer seus interesses, e um destes meios é a manutenção estratégica do racismo estrutural e do sistema de exploração de classe.

Não há como a maioria da população negra se livrar desta situação de miserabilidade se ela se apartar das lutas travadas pela classe trabalhadora, tangenciando o combate de classe contra todos os tipos de exploração. Dizer o contrário é levar a população negra enquanto classe e raça para o matadouro de forma definitiva. 

O Movimento Negro Socialista está engajado desde março de 2019 na luta pelo Fora Bolsonaro e por uma saída revolucionária para esta crise, o que se materializa na luta por um governo dos trabalhadores sem patrões nem generais. Convocamos todos os negros e negras, principalmente a juventude negra, a se integrarem nos Comitês de Ação Pelo Fora Bolsonaro que estão se construindo em todo país, e neles contribuir para que as pessoas compreendam a importância da luta antirracista, que também deve ser anticapitalista e anti-imperialista.