A relação dialética entre forma e conteúdo

Um breve ensaio do camarada Fabiano sobre a dialética nos dias de hoje.

Como marxistas, podemos contatar e dialogar com todas as realidades da vida do ser humano, em todas as suas esferas: tanto na história quanto na filosofia. E obter as respostas necessárias para nos guiar no tempo histórico em que vivemos. O materialismo dialético é a única ferramenta operacional para isto. Não há outra.

A curiosidade com relação à esfera da produção artística – um tema que sempre me interessou muito – me levou a tentar estabelecer, à luz do marxismo, aproximação a uma questão de não pouca importância teórica e prática: a questão da relação dialética entre forma e conteúdo. Outros marxistas já o fizeram antes e com muito mais mérito; primeiro, investigando o fenômeno sobre o qual se debruçavam e, depois, fazendo a exposição de suas descobertas. Mas eu necessitava enriquecer meu patrimônio cultural-intelectual reinventando a roda. Reinventar a roda é uma excelente metodologia de aprendizado; ousaria afirmar que é uma das melhores, uma das mais produtivas. Pelo menos, para mim, o tem sido.

A esse respeito, Em Cem anos de solidão, Gabriel Garcia Marquez conta-nos o pitoresco episódio de um daqueles Buendia da ancestralidade de sua Macondo que se trancou em seu quarto por quase ou mesmo um ano inteiro, a estudar velhos alfarrábios e códices imemoriais que todos os ventos que refrigeram o mundo lançaram sobre aquele povoado nos confins do mundo, até que um belo dia irrompeu eufórico e jubiloso na sala de sua casa e anunciou a todos os estupefatos presentes: “A TERRA É REDONDA!” É assim que me sinto ao reinventar a roda: agora posso afirmar que “a terra é redonda”, pois eu também descobri isso, estudando o assunto, consultando os mestres e percorrendo com eles os árduos caminhos da ciência!

Nós, que nos reivindicamos marxistas revolucionários, necessitamos aproveitar os momentos livres, que podem se tornar muito prolongados, das calmarias revolucionárias, quando tudo parece (apenas parece!) continuar como dantes no quartel de Abrantes, para estudar, para limpar as armas, deixá-las em condições de uso, contabilizar a munição, consertar as barricadas e preparar os caminhos por onde, um dia, entrar em ofensiva, e estudar os clássicos em profundidade sobre todas as esferas da vida, pois “nem só de política vive o homem”. Mas o mais essencial de tudo é que isto não pode ser feito sem estar em contacto constante com a vida circundante, não como magister dixit, nunca como o Grande Inquisidor, mas com os olhos e os ouvidos bem abertos e atentos, desejando aprender um pouco mais para não se deixar defasar dela, a própria vida.

A curiosidade despertada a partir do interesse específico pela arte logo se ampliou pelas possibilidades teóricas que o tema abrange, em especial neste rico momento histórico em que as massas proletárias árabes estão começando a romper a casca do ovo capitalista, a camisa de força da sociedade. Portanto, deixei de lado, por enquanto, a questão da arte e enveredei pela filosofia e pela política. Daí surgiu-me algumas ideias para compreender melhor e arredondar ainda mais a roda reinventada, ainda muito tosca, que julguei valioso anotar. São as ideias expostas a seguir.

Os já iniciados no materialismo histórico podem partir, e pensar já com alguma vantagem teórica, do aspecto evolutivo-revolucionário das grandes etapas do desenvolvimento histórico da humanidade: a etapa do comunismo primitivo, e toda a gradação de seu lento desenvolvimento até seu total esgarçamento e ruptura com o surgimento espontâneo e ulterior desenvolvimento da propriedade privada; e as etapas históricas que têm como essência a propriedade privada, em suas formas específicas, e a divisão da sociedade em classes antagônicas (o escravismo, o feudalismo e o capitalismo), tomadas também em seu surgimento, desenvolvimento e ruptura, cuja lógica foi descrita e explicada por Marx e Engels.

Todas essas formas de organização social guardam relação, imediata e/ou mediata, com o conteúdo que elas encerram. Não caberia, aqui, a seguinte analogia? Não seria esta uma relação semelhante a que um exoesqueleto guarda com as estruturas internas vivas que ele envolve e cujo desenvolvimento subsequente ele “protege” até certo ponto? Por que a ideia de proteção encontra-se entre aspas? Porque é aqui que entra o aspecto dialético da questão: a relação dialética entre forma e conteúdo.

Façamos, agora, uma breve digressão teórica. O que se quer demonstrar é a validade, a idoneidade e potência teórica do materialismo histórico como a única explicação eficaz do fenômeno, ou seja, do real. A teoria é como uma espécie de alavanca mental; mas essa alavanca não pode ser construída arbitrariamente, como o produto de um espírito iluminado, que se pensa a si mesmo como uma estrela com luz própria. No plano subalterno do pensamento humano (subalterno em relação à preponderância da realidade objetiva), há alavancas e alavancas. E é bom que tenhamos sempre em mente que todas elas (a eficaz e as ineficazes), independentemente do que possam pensar os seus próprios construtores – os teóricos –, nascem do próprio fenômeno, da própria realidade que pretendem ou conseguem interpretar, e que se reflete, em alguns casos inconscientemente, na cabeça de alguns filósofos. Ou seja, também são fenomênicas. Não há mentes com luz própria; o fenômeno, o real, é que as ilumina ou não e, em consequência, as faz brilhar ou empalidecer.

Continuando a digressão. Não é a mente humana individual que “formata”, que forma o exoesqueleto da realidade viva. Aquele desabrocha desta objetivamente e a mente humana nada tem a ver com isto, senão como possibilidade de registro teórico lógico. À mente humana não cabe somente registrar o fato histórico; também pode se tornar dirigente de seu fluxo, e não sua “criadora”, se as condições objetivas lhe proporcionarem a ferramenta político-social adequada para tanto. O herói legendário da raça humana, Espártaco, poderia se revoltar mil vezes sem causar o menor arranhão na armadura do Império Romano, se não tivesse ao seu lado o seu exército de escravos decididos a lutar e a morrer por sua liberdade. Seu talento nato de “criador” necessita ser substituído pelo termo “dirigente”. O que ele “dirigia” não foi “criado” por ele: os escravos romanos. Isto não diminui minimamente os seus méritos; pelo contrário, lhe dá destaque real e, por isso mesmo, o torna gigantesco.

Enfim, é o fenômeno, a realidade viva, o elemento dominante, em todas as instâncias. Como um rio caudaloso, ele apenas pode ser perturbado em seu fluxo pelos diques e escoadouros que a humanidade, em sua aventura, constrói para dominá-lo e pô-lo a seu serviço. A mente humana até Marx apenas tentou compreender o que é esta realidade – aliás, muito complicada de compreender porque nunca está estática e está sempre fugindo do foco que ela, a mente humana, tenta lançar sobre ela, a realidade. A coisa toda ainda se complica mais, porque não cabe à mente humana apenas compreender, interpretar; cabe-lhe, também, prever o deságue deste rio caudaloso, caótico, suas crescidas, suas às vezes bruscas mudanças de curso e seus impactos em toda sua área de irrigação, no caso, o mundo todo. Como se pode ver, o desafio ao espírito humano não é nada fácil!

A analogia do exoesqueleto ainda pode ser útil e poderíamos, com a ajuda dela, afirmar que o desenvolvimento ascendente e constante das estruturas vivas internas termina por tornar apertado o exoesqueleto anteriormente adquirido justamente para permitir seu desenvolvimento ulterior (é aqui que entra o conceito central de desenvolvimento das forças produtivas da sociedade). Como isto ocorre? Como algo que era vivo e potente, que era absolutamente útil e até mesmo fashion, perde todas essas qualidades e se desprende bruscamente (através da Revolução) como uma casca inservível?

Ao considerarmos o desenvolvimento ascendente e constante do fenômeno, utilizaremos uma palavra adequada do léxico dos filósofos, a palavra devir, para facilitar a explanação. Esta palavra sintetiza o fluxo contínuo, dinâmico e sempre crescente da realidade, tanto da realidade natural quando da realidade social. É por seu devir que o fenômeno, por exemplo, em sua instância social, pressiona o seu exoesqueleto, que um dia substituiu o anterior e que passou a encerrá-lo e a “protegê-lo” em seu novo desenvolvimento, e que o transforma em algo que não serve mais para isto – ao contrário, passa a constrangê-lo, a “apertá-lo”, em seu desenvolvimento ulterior. Isto porque as forças produtivas da sociedade não podem parar de se desenvolver, sob pena de a sociedade perecer definitivamente – cair na barbárie.

O exoesqueleto – como qualquer dique ou estrutura de contenção e direção – se torna insuficiente e imprestável para conter e dirigir o acúmulo crescentemente natural das águas do rio majestoso da vida. Pode desviá-lo em excesso para áreas difíceis de controlar ou incontroláveis; pode provocar inundações catastróficas. Enfim, manter o mesmo exoesqueleto, os mesmos diques, torna-se intoleravelmente custoso para seus anteriores beneficiários, tomados em conjunto, embora possa continuar sendo “terrivelmente lucrativo” para os que controlam suas comportas, no caso atual, a burguesia.

Por que isso acontece? Porque os diques, o exoesqueleto – enfim, a forma – é relativamente rígida e, por definição, sua elasticidade tem limites. Além disto, tende a se esgarçar, primeiro, e depois a se romper em pedaços, sob a pressão das contradições que acumula e às quais não pode dar curso livre, a partir de certo momento crítico. O fenômeno, a realidade – enfim, o conteúdo – tem vida própria e é o comandante supremo; é móvel, ascendente, flexível e não tem o hábito do respeito servil por nada que lhe é imposto.

De início, o conteúdo está de acordo com a forma (poderíamos utilizar também as palavras norma ou sistema social) que assume e ali se sente folgado e elegante, logo após romper a forma (a norma ou o sistema social) anterior onde antes cabia, mas que, por já estar incômodo, rompeu e jogou na lata de lixo da história (o termo “lata de lixo da história” é mesmo muito feliz). Mas a nova forma adquirida não se eterniza (não é o “fim da história”). Com sua relativa inflexibilidade de forma, comum a todas as formas, também logo começa a ficar apertada, desconfortável, incongruente, até chegar ao episódio crítico – a revolução – em que se despedaça e desnuda o conteúdo. Não serve mais para cobrir suas intimidades – e o poderoso rei estará nu!

É a nudez do conteúdo – a se explicitar cada vez mais – que exige e incita à criação de sua nova roupagem, de sua nova forma, que acolha e agasalhe o fenômeno em seu ímpeto indomável, em seu devir. Em seu processo de ascensão do mito à ciência, a humanidade não percorre caminhos lineares e cômodos, como se pode ver.

Acho que poderemos, agora, entrar no assunto que nos interessa. Tudo o que foi dito antes pode nos permitir afirmar que, na sociedade humana, a forma atualmente dominante, o capitalismo, não consegue mais conter a explosão das forças vitais radicalmente opostas que constituem o seu conteúdo: de um lado, o único beneficiário de sua manutenção, a burguesia decrépita, corrupta e canalha; do outro, o proletariado poderoso e viril, límpido e ávido de vida.

Saiamos um pouco do plano mais abstrato seguido até agora para fazer uma digressão mais concreta. No capitalismo, sua dominância histórica pode continuar prevalecendo de forma viável enquanto a lei do valor, que é o núcleo central das forças implícitas de seu devir, puder determinar a distribuição dos recursos materiais e humanos da sociedade para permitir seu desenvolvimento material, social e cultural, enquanto também produz o lucro de sua classe dominante, a burguesia.

Não é o bem da sociedade que motiva o investimento capitalista, ou seja, a burguesia absolutamente não está altruisticamente preocupada com o desenvolvimento das forças produtivas da sociedade, está preocupada fundamentalmente com a evolução ascendente de seus lucros.

É que isto acontece espontaneamente, de forma anárquica, sem nenhum programa pré-estabelecido. E esta espontaneidade, essa anarquia, continuará sendo positivamente operacional para isto enquanto também permitir um mínimo de coesão social para que a sociedade também desenvolva suas forças produtivas.

Enquanto a lei do valor possibilitar o objetivo imediato da burguesia, seus lucros, paralelamente ao desenvolvimento da sociedade como um todo, seu “exoesqueleto” será fashion, seus “diques de escoamento” funcionarão relativamente bem, e seu domínio não será questionado de forma estrutural e historicamente viável.

Mas o capitalismo já não é mais fashion há muito tempo, muito tempo! Seu elemento automotor central, a lei do valor, não mais funciona para elevar as forças produtivas da sociedade, sem produzir gigantescas calamidades. Já tem ele, em sua folha corrida, duas guerras mundiais catastróficas e uma quantidade bem maior de guerras localizadas, com o seu cortejo de milhões de mortes, de devastações e misérias sociais e morais.

Mas, como um paradoxo, sob o seu domínio atual, em particular, em que sobreviveu a todas as mortes possíveis, seus “costureiros” (os que se inclinam servilmente perante a forma, como a um fetiche) pretendem remendar suas vestes, mas, agora, como uma mortalha, para a sombra de um suposto rei (a forma que, para eles, é a verdade) que já morreu há muito tempo e que, apesar disto, continua, como um espectro, a perturbar e sufocar a vida dos vivos.

Em toda essa equação vital, nunca devemos desprezar o fato de que a forma reage às convulsões internas que ela mesma provoca com suas restrições. A relação dialética entre forma e conteúdo, aqui, depende basicamente da agudeza e da quantidade das contradições envolvidas (da luta de classes). Quanto mais fortes e dilacerantes as contradições, mais a forma tende a se tornar brutalmente reativa, a oferecer resistência obstinada.

Na sociedade humana, este momento de enrijecimento e resistência faz sobressair cada vez mais o poder coercitivo de seu último instrumento eficaz para isto, o poder coercitivo do Estado. Todas as demais trincheiras (o direito, a moral, a religião, etc.) já foram destruídas e pisoteadas, embora, no caso da “democracia” burguesa, possam continuar produzindo efeitos puramente retóricos. A burguesia é assim: cínica e hipócrita, em sua etapa de morto-vivo! Suas oficinas de alienação trabalham a pleno rendimento em sua etapa final de dominação.

Assim o foi, também, com as formas escravista e feudal. Assim o é, em escala superlativa, com a forma capitalista. A futura forma socialista, particularmente em seu período de transição do capitalismo ao socialismo também reforçará, de início, o seu poder estatal. Isto é inevitável, mas historicamente necessário – algo em que devemos pensar com profundidade. A ditadura do capital tende a se fortalecer cada vez mais, exatamente quando perde seu valor histórico; a futura ditadura do proletariado tenderá a se desvanecer cada vez mais, ao superar o período de transição e, assim, ganhar cada vez mais valor histórico. Esta é a sua dialética.

Também pode ocorrer – e talvez isto seja mais provável hoje que em qualquer outro momento de sua história – que a forma estatal burguesa se tenha transformado apenas em um “castelo de cartas” a sucumbir ao menor sopro, por mais discursos sedativos, odiosos, impudicos, caluniosos e violentos vocifere a burguesia através de seus porta-vozes, ou seja, de seus politólogos, de seus economistas, de seus feiticeiros, de seus juízes, de seus artistas mercenários, etc. Assim, o “conteúdo” cobra seus direitos de soberania sobre a sua “forma” já ultrapassada. Os “instrumentos” de coerção não são nada unívocos e podem se encontrar desgarrados entre si, como toda a sociedade no seu conjunto. Podem funcionar em determinadas conjunturas. O Estado policial que a burguesia tanto gostaria de preparar agora em seu momento de crise terminal teria os dias contados, embora pudesse produzir uma quantidade de calamidades e aterrorizar alguns pequenos espíritos. Não terá condições de se “reproduzir” mais em prazo não muito remoto.

A revolução purifica o proletariado de toda alienação que a burguesia vomita sobre ele. Que espetáculo maravilhoso nos proporciona as massas proletárias árabes neste momento histórico! Que exemplo de coragem, ao levarem à frente a tarefa que o processo ascendente da história lança para a humanidade como desafio de sobrevivência. Estamos assistindo à desmontagem do exoesqueleto capitalista, que a burguesia imaginava totalmente blindado e invencível. Faremos de seu funeral uma festa grandiosa!

Março/2011

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