O mais recente artigo de Alan Woods sobre a revolução em curso no Egito traz uma rica análise das últimas manifestações de milhões de pessoas no Cairo, Alexandria e outras cidades, além de explicar a fase em que se encontra o movimento revolucionário.
As massas voltaram a tomar as ruas com as maiores manifestações já vistas no Egito. Os egípcios chamaram esse dia de “O dia da despedida”. Já nesta manhã, a rede de TV Al Jazeera mostrou uma multidão gigantesca entrando em correria pela Praça Tahrir. O estado de animo não era nem tenso nem de medo, mas sim de extremo contentamento. Tão logo terminaram as orações na sexta feira (dia 04), as massas irromperam com um grito ensurdecedor: “Fora Mubarak!” Os poucos partidários de Mubarak foram se esgueirando pelas ruas ao redor da praça, como chacais impotentes.
Em Alexandria ocorreu uma manifestação massiva de mais de um milhão de pessoas contra Mubarak. Não se via nas ruas nem gente pró-Mubarak, nem a policia, nem forças de segurança. Ocorreram também manifestações na quinta-feira em Suez e Ismailia, cidades industriais onde a inflação e o desemprego estão muito elevados. Embora ainda não tenhamos notícia, sem dúvida, ocorrerão manifestações muito grandes também hoje em todo o Egito (dia 04). O povo egípcio deu seu recado e sua mensagem é inconfundível.
A dinâmica de classe da Revolução
Marx assinalou que a Revolução necessita do chicote da contra-revolução. Esse é o caso aqui. Ontem, a investida brutal dos contra-revolucionários criou as condições para um novo avanço da revolução hoje. Uma revolução se caracteriza por mudanças violentas na opinião pública. Temos visto isso nas últimas 24 horas. Ontem, o clima estava sombrio. Hoje, as massas revolucionárias sentem o cheiro da vitória no ar.
Isso representa um giro completo em poucas horas. Porém, como explicar essa transformação? Para entender o que ocorreu é necessário compreender a dinâmica de classe da Revolução. As diferentes classes se movem em velocidades diferentes. As camadas mais avançadas – especialmente a juventude – são as primeiras a entrar em ação. Tiram as conclusões mais avançadas. Porém, são minoria. As massas populares vão a reboque. Sua consciência foi moldada pelas derrotas passadas. Levam nas costas décadas de rotina, hábitos e tradições.
O pai da física moderna, Isaac Newton, explicou que os objetos em repouso tendem a permanecer em repouso. O fenômeno da inércia se aplica não somente ao mundo físico, mas também à sociedade. Para superar a resistência da inércia é necessária uma poderosa força externa. A situação atual está preparando choques que tirarão as massas de sua inércia. Porém isso tudo não acontece de uma só vez. Mubarak tentou jogar com o conservadorismo inerente da população, o medo de uma mudança repentina e o perigo do caos.
Mubarak mobilizou as forças da contra-revolução na tentativa de esmagar a revolução pela força. Ao mesmo tempo, ele fez um discurso tranqüilizador oferecendo reformas pacíficas. Esse discurso teve um efeito nas mentes inertes da população, especialmente a classe média que têm medo de desordem. “Se vocês me retiram haverá o caos, como no Iraque”, disse ele. Tais argumentos podem ter um efeito sobre os estratos mais atrasados das massas. Estes, contudo, ainda não começaram a se mover. Eles não estão nas ruas. Eles estão observando os acontecimentos pela televisão e estão preocupados. Com a promessa de reformas e um retorno à normalidade, o presidente estava dizendo a essas pessoas o que elas queriam ouvir.
Depois do discurso muita gente que inicialmente havia sido favorável aos manifestantes, agora dizia: “Isso é suficiente! Conseguiram o que queriam. O velho vai se demitir em setembro. Por que não podem esperar uns poucos meses? Estamos cansados de tudo isso. Queremos uma vida tranquila, com as lojas e bancos abertos e com tudo funcionando como de costume”. Esse foi um momento perigoso para a Revolução. O estado de ânimo das classes médias foi girando em favor do presidente. Os contra-revolucionários foram ganhando terreno nas ruas. O Exército estava passivo. Nesse ponto, todo processo poderia ter começado a retroceder.
Nesse ponto crítico, o destino da Revolução foi decidido pela coragem e determinação da vanguarda. É certo que as forças ativas da Revolução eram uma minoria. Porém é igualmente certo que as tropas de choque da contra-revolução eram uma minoria. Com o objetivo de derrotar a Revolução, Mubarak reuniu até o último grama de apoio. Transportou de ônibus pessoas das províncias e concentrou todas as suas forças num cerco à Praça Tahrir.
Esse foi o momento decisivo. Se tivessem conseguido tirar os manifestantes da praça, todo o processo poderia ter sido revertido. Porém fracassaram. Mas não só isso: foram obrigados a retroceder pela heróica resistência dos revolucionários. Depois de sete horas lutando por cada centímetro, os revolucionários finalmente obrigaram os pistoleiros de Mubarak a fugir. Isso produziu uma mudança na psicologia dos elementos vacilantes. A violência feroz dos contra-revolucionários produziu um novo giro na opinião pública que pode vir a ser fatal para a causa de Mubarak.
A batalha foi transmitida ao vivo pelo canal Al Jazeera, e milhões de pessoas puderam ver o que estava acontecendo. As cenas de um furgão da polícia zunindo pela rua em alta velocidade, derrubando os manifestantes, dizia tudo. As mesmas pessoas que tinham ilusões nas promessas de reforma de Mubarak podiam ver agora que eles haviam sido enganados. A máscara sorridente do “Pai do Povo” caiu para revelar a fisionomia feia de um faraó cruel e despótico.
No final das contas era tudo mentira! O alerta de Mubarak de que caso ele saísse se instalaria o caos foi desmentido por essas imagens. O caos já existe, e o presidente é o responsável. Abaixo o presidente! O canal Al Jazeera relatou um caso que explica o processo pelo qual a consciência das massas se transforma em uma Revolução. Um homem chegou na Praça Tahrir e disse: “Eu acreditava que os manifestantes tivessem sido pagos por potências estrangeiras, mas agora eu vim aqui, e vi por mim mesmo e compreendi que não é verdade.” E este homem, que ainda ontem estava a apoiar a contra-revolução, se uniu à manifestação.
Crise do regime
A derrota na Praça Tahrir provocou uma crise no regime. Em uma clara expressão de fraqueza, o governo está pedindo desculpas publicamente pelo derramamento de sangue ocorrido na quarta-feira. Há sinais de divisões na cúpula. Ahmed Shafiq, o novo Primeiro-Ministro, disse que não sabia quem era o responsável pelo derramamento de sangue. Isso é muitíssimo estranho, porque todo o resto do mundo sabe que foi obra da polícia à paisana. Ele também disse que o Ministro do Interior não deveria obstruir a marcha pacífica da sexta-feira. Por sua parte, o Ministro do Interior negou que seus homens tenham ordenado aos seus agentes policiais para que atacassem os manifestantes, embora nem sua própria mãe acredite nele.
Há indícios de que o presidente de 82 anos de idade, que permanece escondido dentro de seu palácio fortemente guardado, está cansado e parcialmente desmoralizado. Ontem, ele disse à rede de TV americana ABC News: “Estou farto. Depois de 62 anos no serviço público, eu tive o suficiente. Eu quero ir”. Mas imediatamente ele acrescentou: “Se eu me demitir hoje, haverá o caos”.
Falando no palácio presidencial, com seu filho Gamal ao seu lado, Mubarak disse: “Nunca tive a intenção de me candidatar [a presidente] de novo. Eu nunca tive a intenção de que Gamal fosse presidente depois de mim.” Como todo mundo no Egito sabe que estas eram exatamente as suas intenções, isso mostra pelo menos que ao velho não falta senso de humor. Em seguida, ele repetiu a velha história de que a Irmandade Muçulmana poderia preencher o vazio de poder deixado por sua ausência.
O governo dá a impressão de estar lutando para recuperar o controle de eventos que estão escapando de suas mãos. E também parece não saber o que está fazendo. Enquanto Mubarak emite advertências obscuras sobre a Irmandade Muçulmana, o seu Primeiro-Ministro está convidando a Irmandade Muçulmana para negociações – uma oferta muito generosa à qual esta última recusou educadamente. Não são tão estúpidos para oferecer uma mão a um homem que está se afogando e cujo único desejo dele é que se lancem sobre ele para que lhe façam companhia enquanto ele se afunda.
Os americanos repetem constantemente o argumento de que este é um movimento islâmico liderado pela Irmandade Muçulmana e que se Mubarak sair os jihadistas irão assumir seu cargo. Isso é uma mentira, apesar de que os diplomatas e políticos americanos sejam suficientemente estúpidos para acreditar nisso. Este movimento não tem nada a ver com o fundamentalismo da Jihad ou com a política islâmica. O New York Times corretamente assinalou: “Para muitos, a Irmandade Muçulmana é um vestígio de uma velha ordem que cumpre pouco do que promete.”
Este grande movimento revolucionário não foi organizado pela Irmandade Muçulmana ou por qualquer um dos partidos políticos burgueses. A Irmandade Muçulmana é bem organizada e tem um forte aparato e dinheiro. Seus líderes estão manobrando nos bastidores. Mas o movimento da juventude é o componente maior e mais determinado da Revolução. É ele que tem jogado o papel de direção, do início ao fim.
Quando esses corajosos homens e mulheres jovens saíram às ruas em 25 de janeiro, todos os partidos políticos, incluindo a Irmandade Muçulmana foram pegos de surpresa. A Irmandade Muçulmana não os apoiou. A juventude do Movimento 6 de Abril são os que estão chamando para a ação. Foram eles que chamaram a manifestação de hoje. E hoje, quando o povo revolucionário marchou aos milhões, todos os partidos políticos, incluindo a Irmandade Muçulmana, foram insignificantes.
O povo revolucionário não está lutando pelo Islã ou qualquer outra religião. Eles estão lutando por seus direitos democráticos e pela libertação nacional e social. Sob o regime de Mubarak, extremistas islâmicos assassinaram cristãos. Mas, nas manifestações, cristãos e muçulmanos marcham juntos. Na Praça Tahrir existem muçulmanos e cristãos, crentes e não crentes – todos unidos na mesma luta contra os mesmos opressores. A Revolução eliminou todas as divisões sectárias. Isso constitui sua grande força.
Uma “transição significativa” para onde?
A ameaça imediata da contra-revolução foi derrotada pela coragem e determinação do povo revolucionário. Mas não podemos cantar vitória ainda. A classe dominante tem muitas maneiras de derrotar o povo. Quando a violência do Estado falha, pode recorrer aos truques e à enganação. A situação é muito clara. Mubarak não pode controlar o Egito. Ou ele vai sair, ou a Revolução irá varrer tudo à sua frente. Essa perspectiva é o que deixa os norte-americanos apavorados.
Washington perdeu o controle da situação. Pegos de surpresa em cada fase, eles não têm nenhuma idéia do que fazer. A CIA, Arábia Saudita e os israelenses querem que Mubarak se mantenha firme, não por qualquer lealdade pessoal, mas sim para evitar que a Revolução se espalhe para outros países árabes. Mas os americanos estão fazendo um jogo duplo. Obama e o Departamento de Estado podem ver que os dias de Mubarak estão contados e estão manobrando nos bastidores para manter o antigo regime sob a direção de um outro fantoche.
Veio a publico que a Casa Branca tem conversado com o governo do Cairo sobre como o Egito pode começar a fazer uma “transição significativa”. O Vice-presidente dos EUA, Joe Biden, falou com o vice- presidente egípcio na quinta-feira, um dia depois que Suleiman teve conversas semelhantes com a Secretária de Estado, Hillary Clinton. Segundo o New York Times, entre as propostas havia um plano para que Mubarak renunciasse imediatamente e entregasse o poder a um governo interino respaldado pelos militares sob as ordens de Suleiman.
Nem a Casa Branca, nem o Departamento de Estado negaram diretamente essa informação. Mas um porta-voz do Conselho de Segurança Nacional de Segurança do Presidente Barack Obama disse que era “hora de começar uma transição pacífica, ordenada e significativa, com credibilidade e, inclusive, negociações”. No entanto, o correspondente da BBC em Washington, Mark Mardell, disse que outras fontes sugerem que o plano dos EUA já teria sido rejeitado no Egito, e que a administração ficou “surpresa” com a atitude dos militares e Suleiman.
Os americanos sabem muito bem que Suleiman esteve envolvido nos ataques organizados pela oposição, e ainda assim eles o consideram como o homem certo para liderar um governo interino. Todo mundo sabe que Omar Suleiman é o homem da CIA e de Israel. Este é apenas um meio de manter o sistema, dando a impressão de uma mudança. Seria a negação de todas as aspirações democráticas do povo: uma mentira e um cínico engano.
O que o povo quer
Hoje na Praça Tahrir há um cartaz que diz: “O POVO QUER A QUEDA DO SISTEMA”. Observem bem as palavras: não apenas a queda de Mubarak, mas a queda de todo o sistema sobre o qual ele repousa. As pessoas liam em voz alta uma lista dos atuais dirigentes políticos e depois de cada nome gritavam: “ilegítimo!”. Isso é uma advertência aos políticos de que o povo não vai aceitar nenhum acordo que inclua qualquer figura do antigo regime. Isso mostra um instinto político das massas absolutamente correto.
O problema é de direção. Não se pode confiar nos liberais burgueses. Os indivíduos que estão tratando de usurpar o controle são como comerciantes em uma feira e usarão a Revolução como uma peça para pechinchar com o regime com o intuito de ganhar posições e fazer carreira. Trairão o povo em proveito de seus interesses próprios. O partido de Wafd e outros liberais aceitaram imediatamente as “concessões” de Mubarak” e encerraram sua participação na revolução. El-Baradei é um fantoche dos americanos a quem Washington pretende colocar no poder como substituto de Mubarak. Como podemos ter confiança em gente como essa?
Os revolucionários devem ficar atentos! O povo do Egito não está lutando e morrendo para permitir que a mesma velha oligarquia e seus patrocinadores imperialistas permaneçam no poder. O movimento não deve ser desmobilizado. Deve ser intensificado. A Revolução deve ser levada até o fim! Nenhum acordo com Suleiman ou com qualquer outra figura do antigo regime! Nem um único deles deve permanecer!
O povo revolucionário deve agarrar uma grande vassoura em suas mãos e varrer toda velha cúpula. Por uma limpeza massiva e pela demissão de todos os velhos oficiais! Os culpados de corrupção devem ser levados a julgamento e suas propriedades devem ser confiscadas e usadas em benefício dos pobres.
Enquanto o velho aparato de repressão do Estado permanecer existindo a Revolução jamais estará segura. O povo não pode aceitar outra coisa que não seja o total desmantelamento do velho aparato estatal. Pelo desmantelamento imediato do aparelho repressivo! Pela criação de tribunais populares para julgar e punir todos os culpados de atos de repressão contra o povo!
A Revolução necessita de organização. Necessita de organizações estruturadas, democráticas, populares e uma máquina de combate capas de defender-se de qualquer agressão. Por comitês populares para a defesa da Revolução! Por uma milícia popular! Se o povo estiver armado, nenhuma força na Terra poderá oprimi-lo.
O povo armado é a única força que pode garantir as conquistas da Revolução, defender os direitos democráticos e convocar eleições verdadeiramente livres para uma Assembléia Constituinte.
Um povo orgulhoso desperta
Ontem, o New York Times publicou entrevistas que revelam a verdadeira essência da Revolução:
“ ‘Eu digo ao mundo árabe para ficar conosco até que conquistemos nossa liberdade’, dizia Khaled Yusuf, um clérigo de Al Azhar, uma instituição de ensino religioso muito conceituada no passado que agora serve ao governo. ‘Quando o fizermos, vamos libertar o mundo árabe’.
Por décadas, o mundo árabe esperou por um salvador – fosse Gamal Abdel-Nasser, o carismático presidente egípcio, ou inclusive, durante um tempo, Saddam Hussein. Mas, na Quarta-Feira, ninguém esperou por um salvador. Depois de quase três décadas de autoridade acumulada – o poder de um Estado capaz de colocar milhares de pessoas para atender os seus caprichos – agora o povo tinha o destino em suas próprias mãos.
‘Estou lutando pela minha liberdade’, dizia Noha al-Ustaz enquanto arrancava pedras de uma calçada. ‘Para o meu direito de me expressar. Pelo fim da opressão. Pelo fim da injustiça’.”
Mubarak é justamente considerado como um traidor e um títere, fantoche dos EUA e de Israel. O mesmo sentimento é compartilhado em muitas partes do mundo árabe. As mesmas condições que provocaram a Revolução na Tunísia e Egito causarão um efeito dominó em outros Estados árabes. É por isso que as reivindicações do povo egípcio têm encontrado eco nas ruas da Argélia e Marrocos, dos acampamentos de refugiados palestinos na Jordânia até as favelas de Sadr em Bagdá.
Cínicos observadores ocidentais têm muitas vezes descrito o povo egípcio como apático e passivo. Agora esse estereótipo, produto do pensamento superficial e de sentimentos de superioridade racial, foi colocado de cabeça para baixo. Onde está a apatia agora? Este é um povo antigo, orgulhoso e altivo, que foi explorado, oprimido, insultado e humilhado por gerações de senhores estrangeiros e seus corruptos agentes locais. Eles estão agora em processo de ruptura com o passado para construir um futuro novo e melhor.
A Revolução deu voz àqueles que não tinham voz, dando vazão à sensação de desesperança, frustração, e a indignação dos jovens que são humilhados pela polícia e não têm suficiente dinheiro para constituir uma família. As massas não estão apenas lutando pelo pão e direitos humanos elementares. Eles estão lutando pela dignidade humana. Graças à Revolução, o povo do Egito se levantou e se colocou de acordo com sua verdadeira estatura.
“Seguindo minuto a minuto a cobertura dos canais árabes, todo o Oriente Médio, do Iraque até Marrocos, assistiu sem respirar a uma situação irresistível, daquelas que só ocorrem uma vez em toda a vida. Pela primeira vez em uma geração, os árabes parecem olhar para o Egito novamente buscando uma direção e esta sensação expressou-se durante todo o dia”.
Essas palavras do New York Times mostram a real situação. Tudo isso está provocando um tremendo impacto que se estende muito além do Oriente Médio e do Norte da África. O Egito revolucionário pode agora começar a ocupar seu verdadeiro lugar na história mundial.
Londres, 04 de fevereiro de 2011.