“Mas todo o drama é que o sonho americano não existe sem a sua contraface de pesadelo: uma sociedade que, a despeito de sua vitalidade e de suas virtudes, tem claros sinais de paranóia e senilidade, frutos dos valores capitalistas…”
Antes de ficar marcado pela horrível tragédia em que Wellington Menezes de Oliveira matou doze crianças e feriu outras doze e depois foi baleado por um policial na Escola Municipal Tasso de Silveira, o bairro do Realengo no Rio havia sido imortalizado na célebre canção de Gilberto Gil “Aquele abraço”:
“O Rio de Janeiro continua lindo
O Rio de Janeiro continua sendo
O Rio de Janeiro fevereiro e março
Alô, alô Realengo, aquele abraço…”
Depois da chacina é inevitável que os versos de Gil soem um tanto datados e contraditórios. Em “Aquele Abraço”, o cantor celebrava a alegria, a simpatia e o caráter amistoso do povo brasileiro, em especial do povo carioca. “Aquele abraço” é uma espécie de hino que exemplifica aquilo que o historiador Sérgio Buarque de Holanda caracterizava como o “homem cordial” brasileiro em seu livro Raízes do Brasil. Nosso “homem cordial” teria valores e atitudes opostas à da cultura anglo-saxônica protestante, marcada pela impessoalidade e distanciamento nas relações humanas. Já o brasileiro, segundo Sérgio Buarque, seria caracterizado pela “lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, que representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro (…)”
Seria um erro supor que o “homem cordial” brasileiro seria sempre alguém pacífico e pacato. Como ressalta o próprio historiador: “Seria engano supor que estas virtudes podem significar `boas maneiras`, civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante.” Ou seja, “cordialidade” implica em “agir com coração”, o que pode significar bondade mas também raiva e ódio.
Todavia, sob nenhuma hipótese, a idéia de “homem cordial” é compatível com o massacre do Realengo, brutalmente frio e totalmente impessoal. É necessário, portanto, uma reflexão adequada. A que ponto chegamos? Como o Realengo de Gil se transformou em 7 de abril de 2011 no Realengo de Wellington?
Numa primeira aproximação, poderíamos dizer que Wellington seria um produto de uma “americanização” da violência. Afinal, é dos EUA que sempre recebemos notícias de assassinos e psicopatas que invadem escolas e metralham indiscriminadamente estudantes, como nos mostra o ótimo documentário “Tiros em Columbine” do diretor Michael Moore.
Tal abordagem não deixa de ter seu apelo. Afinal, se incorporamos as mercadorias e a cultura de massa dos EUA, porque também não incorporaríamos suas neuroses e traumas? Todavia, isso ainda não é suficiente para explicar a tragédia do Realengo. Pois o que precisamos urgentemente entender é porque a sociedade brasileira, ela mesma teve de passar por tal tragédia.
Leon Trotsky enfatizou em sua vasta e rica obra o caráter desigual e combinado do capitalismo. Ao mesmo tempo em que o capitalismo reproduz um padrão técnico universal de acumulação do capital, ele convive com formas mais arcaicas de produção, como temos visto na história de países de passado colonial como o nosso. Poderíamos ainda acrescentar que o desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo no plano dos valores suscita uma universalização de certos padrões (consumismo, competição, individualismo, etc), ao mesmo tempo em que consegue até certo ponto conviver com padrões culturais específicos dos diferentes países (como caso brasileiro, a “cordialidade”).
Pode-se dizer ainda que nosso país, nas últimas décadas, incorporou profundamente tais valores negativos do capitalismo, ao mesmo tempo em que não alcançamos as condições materiais que poderiam generalizar um dado padrão de vida e de consumo tal qual existe nos países desenvolvidos. Isto, somado à difusão praticamente universal da televisão no Brasil, traz como resultado o fato de que vivemos numa sociedade que é diariamente bombardeada pela propaganda daquilo que não pode possuir e iludida com aquilo que não pode ser. Bombardeio esse que com certeza tem um eco mais forte na nossa juventude. Daí a nossa violência urbana, certamente uma das maiores do mundo, que não se explica apenas pela pobreza de grande parte da população, posto que países mais pobres que o nosso tem um índice de violência muito menor.
“Sim, ganhar dinheiro, ficar rico enfim” como diz o rap dos Racionais. Consumir, competir, ser alguém. Nossa “americanização” tem como pano de fundo um país subdesenvolvido onde muitas das mínimas condições de dignidade (educação, saúde, moradia, empregos decentes, etc…) ainda estão ausentes para enorme parcela do povo. Como se já não bastasse a exclusão que nosso próprio capitalismo produz, nossa juventude tem incorporado recentemente outro “americanismo”, o bullying. Jovens que por qualquer motivo não se enquadram no perfil do “vencedor” (são feios, gordos, homossexuais, estranhos, etc…) sofrem agressões de grupos no bairro ou na escola.
O governador do Rio, Sérgio Cabral, se apressou em dizer que a tragédia do Realengo era fruto da atitude de um “monstro”, de um “animal”. Certo, quem poderá negar a monstruosidade e animalidade da morte covarde de crianças? Entretanto, reconhecer a inegável insanidade e maldade de Wellington, não responde por si só à questão mais importante: por que é que a nossa sociedade tem criado Wellingtons? Para Cabral, trata-se apenas de isolar os “animais” e “monstros”, como se casos como o de Wellington fossem meros raios em céu azul e não produtos de algo muito mais profundo e preocupante. Pensarmos a tragédia do Realengo sem indagarmos os rumos que a sociedade vem tomando é – além de inútil – uma atitude leviana.
Quem era Wellington? Pouco sabemos, além do fato de que era filho adotivo e depois órfão dos pais, portador de HIV, desprezado na escola, depois desempregado, e que recentemente teria aderido a seitas religiosas. Se é verdade que sua extrema violência e loucura é um caso único e inusitado, por outro lado, quem pode negar que Wellington também era o retrato de uma juventude sem perspectiva, em parte apologista e em parte vítima da “americanização” e dos “bullying”, uma juventude embrutecida pela frustração pessoal do capitalismo ultra-competitivo desse século 21?
Por fim, uma última reflexão sobre o Brasil contemporâneo. É fato que durante o governo do PT houve uma melhoria nas condições de vida de boa parte do povo brasileiro. Não entraremos no mérito da questão aqui, mas é fato que a eleição de Dilma expressa o apoio do povo contra o elitismo do PSDB e a favor de um sentimento geral de que o PT representa melhor os anseios do povo mais pobre e dos trabalhadores em geral.
Ao mesmo tempo, o próprio Lula se gaba de ter promovido no Brasil “um choque de capitalismo”. Ele mesmo afirmou recentemente que, a despeito de suas origens socialistas, seu governo foi o mais capitalista da história brasileira. Ele tem razão, mas ao mesmo tempo, não tirou a nosso ver as conclusões do que realmente está em jogo.
Pois, se é verdade que hoje certos padrões de consumo, antes inacessíveis, fazem parte da vida do brasileiro médio, e se também é verdade que a pobreza diminuiu, o que sem dúvida é positivo, por outro lado, nosso “choque de capitalismo” também tende a reproduzir consigo todos os efeitos perniciosos de um sistema que estimula o consumismo, a exploração, a alienação, a ausência de valores sociais, a competição e o individualismo, ainda mais quando pensamos na fase atual de um capitalismo cada vez mais desregulado, incontrolável e voraz.
Desse ponto de vista, tem razão o historiador britânico Perry Anderson que em texto recente afirmou que os governos do PT até certo ponto têm sido responsáveis pela tentativa de se reproduzir aqui o “sonho americano”. Não é à toa, aliás, que o governo tem feito referência ao crescimento de uma classe média de massas brasileira, tal como a dos norte-americanos.
Mas todo o drama é que o sonho americano não existe sem a sua contraface de pesadelo: uma sociedade que, a despeito de sua vitalidade e de suas virtudes, tem claros sinais de paranóia e senilidade, frutos dos valores capitalistas que já mencionamos. Wellington, ironicamente até em seu nome, pode ser nosso elo trágico com tal pesadelo americano. E o resgate do melhor de nossa cordialidade, exige que pensemos num outro sistema econômico que permita o florescimento de outros valores, mais solidários, humanos e elevados: o socialismo.