O Google divulgou em todo o mundo, no mês de agosto, que entrou definitivamente em um dos setores públicos mais tradicionais e promissores, segundo especialistas, do próximo período, a educação. Essa iniciativa é o aceleramento do que chamamos de fim do diploma, e por consequência, fim da universidade pública, gratuita e para todos.
A ideia, chamada de Certificado de Carreira do Google ou Google Career Certificate – numa tradução livre para o português, Universidade do Google, oferecerá cursos que terão em média seis meses. Segundo a empresa, os valores dos cursos serão mais econômicos que das universidades nos EUA. Vale lembrar que a maioria absoluta das universidades americanas são pagas, mesmo as com título de públicas.
Inicialmente, a gigante anunciou que os cursos são ofertados somente nos EUA e em áreas de tecnologia. A empresa propagandeia as vantagens: carreira promissora, ajuda para que os formados na nova “universidade” entrem no mercado de trabalho e um certificado do Google que terá o mesmo peso de um diploma universitário, tanto no próprio Google quanto em uma rede associados da gigante.
Por certo, esse é só o começo, há alguns anos a empresa já se prepara para entrar no mercado educacional. Durante o período de quarentena, isso está muito explícito, por exemplo, com a plataforma Google Classroom sendo comprada e utilizada por escolas e universidades do setor público e privado em diversos países do globo.
De forma alguma, os marxistas são os anunciadores do fim do mundo. Assim, este texto está longe de simplesmente anunciar a catástrofe. Ele tem o objetivo de afirmar a necessidade urgente de os trabalhadores se organizarem e construírem as perspectivas da defesa e ampliação da educação pública, gratuita e de qualidade, portanto, da necessidade de transformação da sociedade. O intuito aqui é apontar alguns pontos determinantes nessa discussão:
- A universidade como patrimônio público da humanidade;
- O fim do diploma e a ampliação de um exército de reserva;
- O tamanho do mercado educacional.
1. A universidade como patrimônio público da humanidade
A universidade é uma conquista histórica da humanidade. No editorial do jornal Foice e Martelo, de agosto de 2019, escrevemos:
“As universidades reúnem de tudo, desde renegados do sistema que lá buscam abrigo, jovens em busca de desenvolvimento, aventureiros, filósofos, doutores, pesquisadores. Vão assim produzir um conhecimento resultado do debate de diferentes posições filosóficas e teológicas, que servirá aos embates futuros da burguesia contra os senhores feudais.”
Hoje, a universidade tem os vínculos consolidados com todas as áreas das ciências, papel que foi evidenciado no último período. Mas, para além da pesquisa e extensão (vínculo da universidade com a sociedade de modo geral), esta instituição está intimamente ligada à formação dos milhões de trabalhadores em todo o mundo, do médico ao engenheiro, do professor ao designer. É somente o acesso público, gratuito e para todos que permite que o que foi acumulado seja socializado e que as novas descobertas se desenvolvam.
A universidade e a educação como um todo são patrimônios que herdamos e que temos a obrigação de deixar como herança, sob pena de condenarmos as futuras gerações à barbárie e a um retrocesso de pelo menos mil anos. Por isso, de maneira alguma, a educação, a formação e as próprias dependências físicas destas instituições podem estar nas mãos da iniciativa privada.
2. Sobre o fim do diploma e o exército de reserva
É preciso ter em mente o significado da formação, ou seja, da educação formal, seja ela universitária, secundária ou infantil.
Na educação secundária, por exemplo, os jovens recebem um diploma de que estão aptos a irem para universidade, que dominam uma quantidade mensurável de conhecimento que os habilita a dar o próximo passo e buscar uma qualificação, seja no ensino técnico ou na universidade.
Na universidade, por consequência, deve dar o próximo passo, tomar posse do conhecimento acumulado em determinada área do conhecimento.
Buscando outro momento da educação, poderíamos falar da educação infantil que luta inclusive por esse título, educação infantil. A criança entre zero a seis anos está em uma fase, cientificamente comprovada, de um desenvolvimento explosivo. Tem condições de aprender duas, três línguas, de aprender a somar, dividir e ler de forma agradável e simples se os estímulos corretos forem aplicados.
Para isso, é preciso que a criança tenha acesso à educação infantil com profissionais capacitados, que precisam educá-la inclusive para as coisas mais básicas, como uma alimentação balanceada que permita seu crescimento de forma correta.
O direito à educação infantil não é algo simples, é algo fundamental numa sociedade. Do outro lado, a formação qualificada do professor e dos demais profissionais da educação infantil, que darão suporte a estas crianças, é obtido na universidade. Portanto, quando falamos em universidade estamos abarcando um conjunto enorme de ramificações, que fundamentalmente precisam estar a serviço do conjunto da população, ou seja, precisam ser públicas, gratuitas e para todos.
No mínimo durante os últimos 40 anos, se consideramos somente o Brasil, a “Educação para Vida” tem sido o discurso predominante na academia e mesmo nos sindicatos ligados à educação. Aliás, esse é um discurso que confunde inclusive os militantes mais combativos. Ele inclui o debate sobre a flexibilização das grades curriculares, sobre novas formas de financiamento (privatizações disfarçadas de “amigos da escola”, de “pequenas taxas voluntárias”, das ONGs de formação etc.), sobre a necessidade de novos tipos de avaliação e, fundamentalmente, sobre a educação continuada.
Vale ressaltar o tamanho desse embrulho. Os marxistas têm certeza de que a formação da humanidade é algo gigante, que está muito além das paredes da escola e da universidade. Compreendemos que a aprendizagem é algo dialético e em desenvolvimento enquanto houver vida, seja com avanços, seja com retrocesso. No entanto, isso nada tem a ver com a “educação continuada” formal.
A falácia da “educação continuada” visa substituir os diplomas, os certificados de escolas e de universidades, que atestam domínio sobre determinado conhecimento, por brasões efêmeros de grandes corporações como o Google ou mesmo pelo notório saber, como os Olavos de Carvalhos pelo mundo afora.
Isso significa entrar em um mercado que atende milhões de pessoas: a educação. Para se ter uma ideia do que estamos falando, em Santa Catarina, segundo o IBGE, quase um terço da população do estado põe os pés dentro de uma escola diariamente. Escolas que em sua maioria absoluta, no caso do Brasil, são públicas e gratuitas. Portanto, a privatização, a concessão deste serviço é uma fatia muito grande da economia mundial.
Todavia, a privatização da educação não se dá somente da forma tradicional, ou seja, não é, na maioria dos casos, a entrega direta de uma escola à iniciativa privada. Na educação, isso se dá de forma disfarçada, através de Parcerias Público-Privadas (PPP), sejam elas direta ou indiretas, os Institutos Privados dentro das escolas, ou mesmo o voluntariado.
Por aqui, a forma mais eficiente tem sido a entrega do dinheiro público à iniciativa privada, por meio de programas como o Prouni, por exemplo. Outra forma muito eficiente nesta parte do globo tem sido a autorização da livre concorrência, ou seja, a liberação de centenas, milhares de “escolinhas” ou “faculdades” por todo o país.
Outra forma que vale menção é a autorização para empresas privadas financiarem pesquisa dentro das universidades públicas. Tais empresas utilizam-se dos estudantes formados pela universidade pública, portanto, com dinheiro público; utilizam-se da estrutura das universidades, inclusive o patrimônio científico, e desenvolvem pesquisas privadas, patenteadas, onde a comunidade, se quiser ter acesso, terá que pagar, mais uma vez.
Isso não é muito diferente no restante do mundo. Os Estados, na maioria dos países, não têm o monopólio da educação, pelo contrário, cada dia mais eles abrem a educação para que a iniciativa privada detenha o controle sobre ela.
O Google deveria ser proibido de abrir a universidade, pelo Estado Americano. Diferente do que muitos pensam, isso seria um ato democrático na sua essência. Explicamos: o Google, dentro desse sistema, não deve ser proibido de promover formação aos trabalhadores da própria empresa, pelo contrário, essa deve ser uma reivindicação dos seus trabalhadores. Outra coisa, porém, é a empresa abrir uma “universidade”, que vai colocar no mercado um tipo de formação direcionada para si e constituir um monopólio privado daquele conhecimento, muito provavelmente tentando patentear as técnicas que disponibilizar e desenvolver.
Portanto, o Estado americano não será o responsável por garantir a formação tecnológica desse ramo. Além do que, o Google não tem nenhuma responsabilidade com o patrimônio público educacional e, se em um ano resolver considerar determinado curso da universidade obsoleto, colocará outro no mercado e avisará seus estudantes que aquela formação adquirida já foi superada.
A partir daí, o Google poderá impor que os formados façam um segundo curso, mais desenvolvido. Ou seja, esse é um poço sem fundo, onde não existe mais um diploma, uma formação, mas a educação continuada e privada.
Assim, o Google de uma vez só consegue abarcar uma fatia gigante do mercado educacional, constituir um monopólio do conhecimento tecnológico e garantir um exército de reserva exclusivo, qualificado e lucrativo. Uma jogada de mestre. Por certo, isso é só o começo, o Google irá expandir a iniciativa para mercados aptos a garantirem muito lucro, como é o caso do Brasil.
Aqui, o Novo Ensino Médio, reforma realizada no governo Temer, diz:
11. Para efeito de cumprimento das exigências curriculares do ensino médio, os sistemas de ensino poderão reconhecer competências e firmar convênios com instituições de educação a distância com notório reconhecimento, mediante as seguintes formas de comprovação:
I – demonstração prática;
II – experiência de trabalho supervisionado ou outra experiência adquirida fora do ambiente escolar;
III – atividades de educação técnica oferecidas em outras instituições de ensino credenciadas;
IV – cursos oferecidos por centros ou programas ocupacionais;
V – estudos realizados em instituições de ensino nacionais ou estrangeiras;
VI – cursos realizados por meio de educação a distância ou educação presencial mediada por tecnologias.
E continua:
IV – profissionais com notório saber reconhecido pelos respectivos sistemas de ensino, para ministrar conteúdos de áreas afins à sua formação ou experiência profissional, atestados por titulação específica ou prática de ensino em unidades educacionais da rede pública ou privada ou das corporações privadas em que tenham atuado, exclusivamente para atender ao inciso V do caput do art. 36;
Além disso, a Reforma Universitária de Lula e a regulamentação das Parcerias Público-Privadas (PPP), em 2004, garantem que se possa realizar toda e qualquer promiscuidade entre o público e o privado dentro das universidades. Tudo isso faz do Brasil um prato cheio para a expansão de ações como as do Google.
3. O mercado educacional
A educação pública e gratuita é um mercado que para a atual situação de putrefação do Estado burguês é uma fatia muito preservada do sistema. Por isso, o chamamos no início deste texto de tradicional e promissor:
- Tradicional porque os trabalhadores mantêm essa conquista de forma integral, parcial ou pelo menos um resquício dela em praticamente todos os países do globo, quiçá em todos.
- Promissor porque esse é um mercado que, como em Santa Catarina, deve atingir em média um terço da população mundial. Portanto, a retirada da educação pública como um dever do Estado é algo que pode gerar muito, mas muito lucro no próximo período.
Além disso, a Universidade em si tem suas ramificações em todas as ciências, o que é outro mercado disputado, da geração de uma vacina, à produção de tecnologia para as grandes empresas de toda a cadeia produtiva. Então, quando falamos de educação pública, gratuita e para todos em todos os níveis, estamos falando de uma das maiores conquistas dos trabalhadores na passagem do regime feudal para o capitalismo e o seu ápice nas conquistas da Revolução Russa.
Para finalizar, reafirmamos que a educação como um patrimônio da humanidade, longe de ser um debate para professores, é um debate de todos os trabalhadores, jovens e idosos. É um debate sobre a necessidade urgente de tomarmos nosso destino em nossas próprias mãos.