O declínio de Zuma
Mesmo antes da reeleição de Zuma, em 2013, graves acusações de corrupção surgiram (além das 783 anteriores). Ramaphosa, até então aliado de Zuma na repressão aos trabalhadores, abriu uma implacável campanha contra o próprio governo em que era vice-presidente, ganhando bastante notoriedade.
Enquanto Zuma avançava em acordos nucleares com a Rússia e antecipava a venda de reservas de urânio à família Gupta, o que gerou a demissão de Pravin Gordhan e Mcebisi Jonas do Ministério das Finanças por se oporem ao acordo, Zuma foi perdendo apoio do próprio partido e via o próximo congresso da ANC chegar junto às novas eleições presidenciais.
O governo se via cada vez mais indefensável por diversos motivos, mas o que incomodava a burguesia obviamente não era a corrupção e, sim, a facção da burguesia para quem Zuma governava. Nessa ocasião, na ausência de uma organização revolucionária que apontasse a corrupção como parte inerente do capitalismo, como uma característica intrínseca da burguesia, Ramaphosa virou a principal figura contra Zuma, recebendo apoio das principais organizações de esquerda (que antes apoiaram Zuma contra Mbeki).
Uma das forças mais incisivas contra o governo Zuma foi o Combatentes da Liberdade Econômica (EFF), um partido fundado por Julius Malema após sua expulsão da Liga de Juventude do ANC (ANCYL) por defender ideias “radicais demais”. Na ocasião, a oposição do EFF se limitou à esfera da corrupção e se apoiou em Ramaphosa, dando a entender que a saída para a classe trabalhadora estava numa troca de peças, indo na contramão de seu próprio manifesto de fundação.
Outra organização que abriu mão do enfrentamento revolucionário foi o Partido Comunista Sul Africano (SACP), que através de nota de repúdio pediu a renúncia de Zuma (sem qualquer mobilização dos trabalhadores pelo Fora Zuma com perspectivas revolucionárias) e a reintegração de seus aliados Pravin Gordhan e Mcebisi Jonas ao Ministério das Finanças no governo. Ramaphosa e a burguesia que o apoiava encontraram pista livre para sua corrida.
Ramaphosa vs. Zuma
A campanha moralista de Ramaphosa consistiu principalmente em acusar Zuma de estar envolvido com a família Gupta, que governava indiretamente o país. O que já não era nenhuma novidade (e inclusive tolerado pelo ANC por muitos anos), Ramaphosa usou para personificar em Zuma todos as contradições do capitalismo e do ANC, para expurgá-lo e preservar as aparências do sistema.
Em um jantar de gala, Ramaphosa disse:
“Devemos agarrar isso porque o momento chegou. Vamos agir juntos em unidade. Unir nosso movimento, unir nosso país em torno de um objetivo – o objetivo de tornar a África do Sul grande, o objetivo de tornar a África do Sul livre da corrupção, o objetivo de tornar a África do Sul uma África do Sul da qual todos possamos nos orgulhar e livrar-nos da ganância pessoas, das pessoas corruptas entre nós. ”
São reivindicações que só se alcançam com o fim do capitalismo. Caso contrário, não passam de demagogia, que era exatamente o caso. Em sua defesa, Zuma tentou ganhar simpatia de setores mais radicais quando, por exemplo, anunciou que atenderia o movimento estudantil #FeesMustFall por ensino superior público, gratuito e de qualidade. Nessa ocasião, anunciou 57 milhões de rands para a pasta da educação, em plena instabilidade econômica e política. Mas seu plano de simpatia não funcionou muito bem.
Cyril Ramaphosa – o “novo amanhecer”
Ramaphosa foi um dos fundadores da União Nacional de Mineiros e da COSATU, jogando um importante papel no fim do Apartheid. Mas sua traição aos interesses de sua classe de origem é o destino esperado de qualquer político que se proponha a melhorar o capitalismo. Já na época da Constituinte, Ramaphosa foi um dos que concordaram com a manutenção do direito à propriedade privada (leia-se dos grandes meios de produção) como cláusula constitucional do novo regime.
Pulou definitivamente para o campo da burguesia quando, como recompensa das articulações e repressões contra os trabalhadores, virou um bilionário dono de minas através do Programa Econômico de Empoderamento Negro, tornando-se rapidamente um dos homens mais ricos do país e o principal braço da grande burguesia dentro do partido.
Além do ANC, havia outros partidos liberais que tentavam servir aos interesses da burguesia, como a Aliança Democrática (DA). No entanto, o ANC apresentava duas vantagens: estando Zuma fora da corrida, o mar estava calmo para os aliados de Ramaphosa navegarem e expandirem seus lucros. O segundo fator foi a experiência em repressão a revoltas, especialmente de Ramaphosa, que provou seu desempenho no Massacre de Marikana. Garantindo austeridade com uma mão e repressão com a outra, não havia partido mais útil à burguesia no momento.
Já as direções de “oposição” do SACP, COSATU e algumas frações do ANC, que antes apoiaram Zuma, agora apoiam Ramaphosa e reforçam a ilusão nos trabalhadores de que é possível um “novo amanhecer” personificado em uma ou outra figura. Zuma terminou renunciando e Ramaphosa assumiu o cargo em 15 de fevereiro de 2018.
O governo Ramaphosa e o nascimento da SAFTU
Falar da hesitação ou traição das direções de esquerda não significa que não havia militantes radicais nessas organizações. Há tempos, as direções reacionárias expulsaram vários militantes que cobraram postura de suas direções, como a expulsão de Julius Malema que deu origem ao EFF. No mesmo sentido, foi o episódio de quando a COSATU expulsou o Sindicato Nacional de Metalúrgicos da África do Sul (NUMSA), em 2014, após lançarem um manifesto em defesa da federalização da economia sob controle operário. A expulsão foi inclusive apoiada pelas direções do SACP e do ANC.
O sindicato do setor de alimentos, o FAWU, segundo maior da COSATU, abandonou a sigla depois da expulsão do NUMSA. Esses dois sindicatos formaram a Federação Sul Africana de Sindicatos (SAFTU), em 2017, com resoluções abertamente anticapitalistas, reivindicando o marxismo-leninismo, a nacionalização dos recursos minerais, das finanças e das terras, o internacionalismo e o socialismo.
Mas a ausência de articulação em um programa claro, radical e unificado deu a oportunidade ao ANC, o partido preferido da burguesia, de resolver da sua forma. Ramaphosa agora tinha uma grande responsabilidade de estabilizar a situação, agradar a grande burguesia e evitar as grandes manifestações que poderiam estourar a qualquer momento – e muito mais radicais do que a COSATU e o SACP juntos.
Suas primeiras medidas incluíam austeridade, burocracia aos espaços democráticos de trabalhadores e até proibição de greves. A repressão não precisou ser anunciada porque já vinha estampada em sua testa com os nomes dos 34 mineiros mortos em Marikana.
Já em 2018, Ramaphosa anunciou, além do corte em serviços públicos, um reajuste fiscal que afetou o preço de consumo diário, como alimentos e combustíveis, e ainda aumentou a taxa de juros por insolvência à classe trabalhadora. Por outro lado, nenhum ataque aos investidores, agências de crédito, setor imobiliário e ao fundo fraudulento de grandes empresas, pelo contrário: controles cambiais mais flexíveis para grandes transferências ao exterior.
Parte desse orçamento encontrou uma grande pedra no sapato da burguesia devido ao Ensino Superior “gratuito” que Zuma se viu forçado a anunciar. De fato, uma conquista arrancada pelos movimentos de juventude. No entanto, estando a economia no controle direto da burguesia, além do projeto nunca ter sido plenamente efetivado, os 57 milhões de rands de orçamento previsto foram extraídos com todo requinte de crueldade, gota por gota, da própria classe trabalhadora, através do reajuste.
Essa medida foi profundamente impopular, mesmo para as organizações de direita. Mas a preocupação do responsável de finanças do ANC não foi exatamente com os trabalhadores e, sim, com as consequências que essas medidas trariam à estabilidade do governo e, consequentemente, à estabilidade do próprio regime político e econômico.
A moção de expropriação de terras do EFF
Ainda na época, uma moção do EFF sobre expropriação de terras sem restituição provocou uma tensão nas elites e no parlamento. Propostas são facilmente resolvidas nas votações parlamentares, mas a burguesia e seus representantes temiam até que ponto essa moção representava um ponto de apoio às lutas da classe trabalhadora pelo direito à terra. Surgiram grandes ondas de histeria, fake news e apelos internacionais para que Donald Trump salvasse as elites brancas de um iminente “genocídio branco” na África do Sul.
Semelhante ao Brasil, a questão de terras no país também foi imposta com genocídio aos nativos e os roubos de terra, hoje protegidos pela Constituição, também foram ratificados por leis de terras semelhantes. Isso marca a história desde a colonização até a atualidade. Isso implica dizer que o parlamento burguês não abriria uma discussão sobre um assunto tão profundo como a expropriação de terras do nada, como um raio em céu azul. A moção é fruto de mobilizações antisistêmicas das bases de trabalhadores da cidade e do campo nos últimos anos, que o EFF acertou em mobilizar, colocando a burguesia em uma situação bastante desconfortável.
O ANC foi forçado a aprovar a moção, com ressalvas bastante genéricas para dar margem às manobras futuras, mas que, por si, demonstra que a faca no pescoço da burguesia pode trazer importantes experiências à classe trabalhadora sobre sua própria força.
Mais ataques de Ramaphosa
Três projetos de reforma trabalhista voltaram a tramitar em 2018 propondo reajuste salarial, condições no direito à greve e um painel consultivo ao qual o sindicato deveria seguir as imposições das empresas contratantes. Todos esses ataques vieram num contexto em que mais de 1,4 trilhão de rands estavam concentrados na burguesia em uma insustentável crise de superprodução. Obviamente, um dinheiro que Ramaphosa jamais ousaria tocar para lidar com os problemas orçamentários. Na verdade, é exatamente essa a origem dos problemas orçamentários no capitalismo.
A AMCU, sindicato do setor da mineração, engrossou o tom contra o governo com o anúncio das medidas. Cinco dias depois, a recém-criada (e já a segunda maior federação sindical do país) SAFTU também anunciou greve, pressionando a COSATU e Fedusa para que fizessem o mesmo.
Na ocasião, as lideranças da SAFTU foram bastante claras e enérgicas no sentido de parar a economia caso Ramaphosa não cumprisse as reivindicações, o que significa, antes de mais nada, uma pressão das bases desses sindicatos. Mas se essa maré forte tem potencial para dar um golpe definitivo na burguesia, também é real a possibilidade de um sério e perigoso refluxo se não levada a cabo. Nessas ocasiões, o papel das direções deve ser o de direcionar todo esse potencial para verdadeiras insurreições revolucionárias, propondo varrer as amarras legais e institucionais de uma só vez.
No entanto, a classe trabalhadora não vive a reboque das direções. As ditas “greves selvagens”, como a de Marikana, mostram que há grande disposição de luta nas bases, ainda que suas direções assumam posturas reacionárias.
CONCLUI NO FOICE & MARTELO ESPECIAL 20.