Argélia: Bouteflika caiu, agora o sistema tem que cair!

Os argelinos saíram às ruas para celebrar ontem à noite, depois que o presidente Abdelaziz Bouteflika anunciou sua renúncia. Isso aconteceu depois de um mês e meio de protestos massivos contra o seu governo. Mas isso, por si só, não resolverá nada e as massas estão pedindo agora a queda de todo o regime.

Na tarde da noite da terça-feira, Bouteflika foi visto na TV entregando sua renúncia, ao lado de Abdelkader Bensalah, o presidente do conselho constituinte, que está formalmente designado a assumir a presidência até que novas eleições sejam organizadas dentro de um período de 90 dias. Desafiadora até o final, a declaração escrita pela camarilha de pessoas por trás de Bouteflika foi um golpe parcial no exército, que pressionou Bouteflika a renunciar na noite passada:

“Esta decisão, que tomo de minha alma e consciência, está destinada a contribuir para o apaziguamento dos corações e mentes de meus compatriotas, para permitir-lhes levar a Argélia a um futuro melhor ao qual legitimamente aspiram(…)”.

Euforia e desafio nas ruas

Na sequência do anúncio, dezenas de milhares de pessoas tomaram as ruas da capital Argel para celebrar a queda do ditador inválido. O clima era de euforia, mas também desafiador, com palavras de ordem como: “Congratulações, isso é só o começo”; “Todos os dias uma manifestação, não vamos parar”; “O povo decide”; “Eles serão todos julgados” e “O povo quer chutá-los todos para fora!” Muitas pessoas estão dizendo que, em vez de invocar o artigo 102 (que coloca o poder nas mãos do conselho constitucional), eles querem o artigo 7, que estabelece que “o povo é a fonte do poder”.

Em France24, uma repórter desde Argel fez uma avaliação adequada do clima, quando disse o seguinte:

“Ficamos definitivamente surpresos com a emoção pura. Foi isso que pedimos durante as últimas seis semanas. Foi por isto que o povo protestou nas últimas seis semanas. Agora, a principal demanda dos manifestantes foi alcançada (…)

“A resposta inicial foi de euforia, de extrema alegria. É uma sensação de triunfo, uma sensação de vitória. Mas as pessoas também estão cientes de que este é só o início… Este é o início da verdadeira luta, que é a de se livrar do regime em torno do presidente e não só dele como pessoa. Porque todos sabemos que ele não foi o único a fazer os disparos, porque, de todos os modos, ele está muito doente para fazer isso”.

Nas últimas semanas, tornou-se cada vez mais claro que o regime é incapaz de resistir ao movimento revolucionário, que estava ganhando ímpeto a cada dia. Só no último mês, houve quatro enormes dias de ação, com milhões de pessoas nas ruas, e dois movimentos de greve generalizados, o último dos quais fechou grandes setores do setor público e empresas estatais na semana passada. Os protestos foram mais fortes em locais como Bejaia e Tizi Ouzou, onde as seções locais da UGTA organizaram greves gerais e tomaram de fato o poder. Essas são áreas de Kabila, que tem uma história recente de movimentos revolucionários. No entanto, a pressão por uma greve geral estava presente em toda a classe trabalhadora, que fez de “Abaixo Sidi Said!” (o secretário-geral da UGTA), uma das principais palavras de ordem dos protestos nas últimas semanas. Sem dúvida, essas greves espalharam o terror na classe dominante, que não queria ver um movimento independente da classe trabalhadora se desenvolver.

Ao mesmo tempo, os objetivos do movimento mudaram ao longo deste período. Começando com a demanda de Bouteflika não participar das eleições, a demanda hoje é, inequivocamente, a queda de todo o regime.

Há celebração nas ruas, mas também uma determinação de ir além.

Divisões no topo

A crescente força e confiança do movimento revolucionário provocou toda uma série de divisões e deserções dentro do regime. Temendo por suas próprias posições, camada após camada do interior da elite dominante começaram a se distanciar de Bouteflika e do círculo imediato em torno dele. Os principais empresários, funcionários do estado, bem como a principal federação dos patrões, o líder da federação sindical UGTA e uma coalizão de partidos da Frente de Libertação Nacional (FLN) e do Rally Nacional Democrático (RND) foram vistos pedindo a renúncia de Bouteflika.

Na semana passada, o chefe do Estado-Maior do Exército, que até então estava inflexível ao lado de Bouteflika, fez um apelo para se declarar o presidente incapaz de governar e entregar o poder ao conselho constituinte. Este apelo foi reiterado ontem quando o general Ahmed Gaed Salah exigiu a “imediata” renúncia do presidente. Em um sinal mais claro de uma divisão direta dentro do topo mais alto do regime, como uma demonstração ameaçadora de força, o comandante em chefe também convocou uma reunião do alto comando do exército ao mesmo tempo.

Temendo por suas próprias posições, camada após camada de dentro da elite governante começou a se distanciar de Bouteflika. Foto: Wikimedia Commons

A entrada em cena do exército dessa forma reflete as divisões dentro da classe dominante. Um dos campos, por trás de Bouteflika, opõe-se veementemente a fazer quaisquer concessões às massas revolucionárias. Esta facção se sente confortável no topo do regime e está prestes a perder a maioria de todas as facções da classe dominante. Teme que fazer concessões às massas somente vá fortalecer o movimento e radicalizá-lo ainda mais.

O exército, inversamente, representa outra ala, que também tem o imperialismo francês de seu lado, e que pode ver que este movimento permanecerá. Em vez de arrastar o processo e se arriscar a um colapso completo do sistema, está tentando levar o movimento a caminhos seguros. Falam de “o povo e o exército”, esquecendo convenientemente que o exército foi o pilar fundamental da ditadura até agora. E Salah, que esteve ameaçando o movimento desde que este começou em 22 de fevereiro, é de repente um servo do povo?

Em outro gesto simbólico, o magnata dos negócios, Ali Haddad, que também era o líder da principal associação dos patrões, foi preso tentando deixar o país com grandes somas de dinheiro. A prisão de pessoas tentando movimentar capital para fora do país foi a maior demanda de algumas camadas do movimento, em particular dos elementos de classe média. E é claro que o exército está tentando aparecer ao realizar a vontade da revolução com este ato.

Nenhuma confiança no exército

Mas sejamos claros, o exército, ao forçar Bouteflika a renunciar e ao prender pessoas como Haddad, nessa etapa, tem como único objetivo salvar o sistema como um todo. Sim, muito provavelmente os generais permitirão que as eleições ocorram em futuro próximo. Mas essas eleições serão organizadas de forma a não interferir com nenhum dos interesses vitais da classe dominante. Ao fazer concessões cosméticas a partir de cima, estão tentando manter todos os principais pilares do capitalismo argelino, enquanto desmobilizam as massas revolucionárias. Ao mesmo tempo, os generais estão manobrando para concentrar mais poder em suas próprias mãos no futuro.

Naturalmente, se o exército tivesse tentado suprimir abertamente este movimento no último mês e meio, quase certamente veria os seus escalões mais baixos (que em sua maioria são compostos de soldados da classe trabalhadora e camponeses) escapando de seu controle, deixando o Estado-Maior suspenso no ar. O colapso do exército seria o precursor do colapso de todo o regime. Assim, os generais estão tentando pateticamente montar no movimento de massa em vez de se opor frontalmente a ele.

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No entanto, tendo visto a instabilidade no Egito depois que o exército abandonou Mubarak em 2011, os generais não estão necessariamente interessados no governo direto neste momento. Em vez disso, estão tentando desenvolver o mito do constitucionalismo e do legalismo burguês (que alguns liberais e elementos de classe média dentro do movimento também enfatizaram) pedindo a implementação do artigo 102 da constituição. Dessa forma, “seguindo a lei” e com a intervenção do exército como força organizada, também estão tentando minar a confiança das massas em seu próprio poder.

Mas a renúncia de Bouteflika não muda nada de fundamental. A forma amistosa como o poder foi entregue a Abdelkader Bensalah na noite passada mostrou o que realmente está acontecendo: uma manobra do regime para criar a ilusão de uma mudança, enquanto tudo se mantém intacto. Abdelkader Bensalah, o novo presidente em exercício, foi um aliado incondicional de Bouteflika até o fim. Com exceção de Bouteflika, todas as pessoas-chave no poder permanecem no lugar. Como muitos manifestantes apontaram, os que estão no poder agora são as mesmas pessoas que governaram em nome do vegetativo Bouteflika durante anos.

As ruas imediatamente viram este engodo. Se for para se alcançar alguma mudança real, toda essa gente deve ser removida. Isto é, todo o regime deve ser removido. Mas o que o substituiria? Já há muitos informes de comitês sendo estabelecidos para coordenar as lutas nos bairros, escolas e locais de trabalho. Alguns desses comitês organizaram os protestos, coordenaram as ações para assegurar a disciplina nas marchas e até mesmo levaram equipes de limpeza depois – em um nível muito mais alto do que se poderia esperar do estado, devemos agregar.

Em locais como Tizi Ouzou e Bejaia também, os comitês de greve de fato detinham o poder em suas mãos, assegurando que a greve não prejudicasse as pessoas comuns (por exemplo, disponibilizando o gás de cozinha). Esses comitês devem ser generalizados e conectados em escala regional e nacional. Dessa forma, a revolução pode erigir os elementos embrionários de um novo tipo de poder, baseado na classe trabalhadora, na juventude e nos pobres. Desnecessário dizer que eles são muito mais competentes para administrar a sociedade do que os atuais parasitas no topo.

Todos devem ir embora!

Durante anos, essas pessoas viveram do sangue dos argelinos comuns. No papel, os argelinos se beneficiam de um enorme setor público, com enormes somas gastas em cuidados de saúde, educação etc. Mas esses serviços estão se deteriorando a cada dia. Para onde está indo o dinheiro? Enquanto os ricos vivem em condições obscenas de luxo, dezenas de milhares de jovens são forçados a deixar o país todos os anos. Os que ficam são, na maior parte, forçados a viver em condições precárias, saltando de um emprego precário a outro – se têm sorte. A juventude, que constitui a maioria da população, enfrenta um nível de desemprego de 30%. Pelo menos 24% da população estão vivendo na pobreza e o poder aquisitivo médio caiu em até 60%, desde 2014.

A única forma de se resolver esses problemas é não só mudar os cumes do aparato do estado, como também expropriar a classe dominante como um todo. Todas as propriedades dos oligarcas devem ser expropriadas e, junto às principais empresas estatais, como Sonatrach, operar sob o controle e gestão da classe trabalhadora. Em vez de transferir os lucros dessas entidades aos bolsos das pessoas corruptas do regime, devem ser utilizados para elevar o nível de vida e desenvolver a sociedade argelina. Hoje, essa sociedade está desmoronando, mas, com base em uma economia democraticamente planificada, ela poderia florescer em um nível nunca visto antes.

As massas argelinas mostraram enorme força e determinação. Sem qualquer organização ou plano prévio, fizeram com que a classe dominante, o Estado e o exército se curvassem diante delas. Agora, devem terminar o trabalho e remover essa gente de todas as posições de autoridade e tomar o poder em suas próprias mãos.

  • Nenhuma confiança no exército!
  • Não ao artigo 102!
  • Abaixo todo o sistema!
  • Comitês em todos os lugares – e por uma convenção nacional de delegados!
  • Expropriar a classe capitalista!
  • Nacionalizar todas as principais empresas domésticas e multinacionais!
  • Por uma Assembleia Constituinte soberana para atender as demandas econômicas e sociais das massas trabalhadoras!

Artigo publicado em 3 de abril de 2019, no site da Corrente Marxista Internacional (CMI), sob o título “Algeria: Bouteflika downed, now the system must go!“.

Tradução de Fabiano Leite.