foto: Marcio James / Semcom

As cúpulas brigam e os cemitérios enchem

Artigo publicado no jornal Foice&Martelo Especial nº 08, de 11 de junho de 2020. Confira a edição completa.
Enquanto o país caminha para a marca oficial de 40 mil mortos pela Covid-19, os capitalistas e seus políticos duelam entre si e rasgam princípios constitucionais que eles mesmos disseram ser o pilar da sociedade.

Os embates entre os poderes do Estado dividem o noticiário com a barbárie causada pela pandemia no Brasil. É reflexo de fissuras na classe dominante, incapaz de encontrar uma saída republicana frente à crise que arrasa o planeta.

Os poderes se acusam mutuamente e seus agentes recorrem ao jogo sujo, se utilizando de métodos que, formalmente, a democracia burguesa condena, como vazamento seletivo de investigações, apurações tendenciosas com objetivos políticos e interferência de um poder na ação do outro.

Durante muito tempo, desde que expropriou o poder tirânico dos reis, ao liderar revoltas populares, a burguesia estabeleceu formas organizativas de Estado, baseadas na separação dos poderes legislativos, executivo e judiciário. Ela edificou instituições que, pretensamente, seriam neutras e atuariam como freios e contrapesos para evitar o domínio autoritário de um poder e garantir a liberdade. Construiu assim, uma democracia à sua própria imagem. Na qual, os que possuem capital possam explorar os que apenas detêm a força de trabalho.

O problema é que, em momentos de instabilidade econômica e social, cada setor da elite busca salvar o seu capital e joga com peso sua influência nas instituições que controla. Todo discurso de independência dos poderes vira mera teoria e o Estado se revela como um grande balcão de negócios, no qual leva mais quem paga e corrompe mais.

Os políticos em geral, os juízes, ministros do STF e os agentes de alto escalão estatal são funcionários ou sócios menores dos grandes capitalistas. Se enfrentam como num jogo de xadrez, cada qual controlado por interesses próprios.

Com a evolução da crise, os choques ficam cada vez mais visíveis. Às vezes, até exibidos na TV. Como no caso da reunião ministerial, em que Celso de Mello (STF) autoriza a divulgação do vídeo com edições, calculadas para encurralar o governo e proteger interesses comerciais — a parte da China foi cortada. O ex-juiz e ex-ministro Sérgio Moro, prepara o espetáculo com seu conhecido método de vazamento midiático de informações. Dias antes, outro ministro do STF, Alexandre de Moraes, havia suspendido uma nomeação do presidente da república. Pouco depois, Celso de Mello encaminha para análise da Procuradoria Geral da República a notícia-crime contra Bolsonaro, incluindo apreensão do celular presidencial. O General Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), reage em defesa de Bolsonaro e ameaça romper a institucionalidade.

Na democracia capitalista, o poder legislativo representaria o povo. No entanto, o Congresso brasileiro tem, em suas maiores bancadas, composições empresariais, rurais, policiais e religiosas. Foi esse Congresso que aprovou a reforma da previdência e a lei de terceirizações. Deste parlamento, surgiu a reforma trabalhista, o teto de gastos públicos e uma série de ataques ao povo. O formato de eleição nessa democracia permite garantir um parlamento que mantenha privilégios.

Acuado pela baixa popularidade (menos de 30%), pelo judiciário e pelo legislativo que o chantageia em troca de sustentação, Bolsonaro e seus apoiadores desferem ameaças que assustam os burgueses e reformistas de esquerda que sustentam o frágil pacto social da Constituição de 1988.

Jair Messias ameaça usar as forças armadas em uma espécie de autogolpe legal, se apoiando no Art. 142 da Constituição, o qual diz que as Forças Armadas “sob a autoridade suprema do Presidente da República, destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Ligeiramente, o judiciário responde dizendo que o citado Artigo não confere às FA a função de mediadora dos conflitos entre os poderes, indicando que a outra parte da classe dominante não apoia as aspirações bolsonaristas. Juristas burgueses se pronunciam dizendo que a Constituição garante as FA, e não o contrário, como interpreta o presidente. São acontecimentos que ilustram a crise institucional do capitalismo brasileiro e a decomposição de suas instituições.

Na elite, o clima de salve-se quem puder toma conta. Setores do capitalismo abocanham o que podem, dos cofres públicos e dos trabalhadores. Banqueiros embolsaram mais de R$ 1,3 trilhão, liberados sem burocracia. Industriais, buscam preservar suas riquezas e aproveitam para demitir e reduzir salários e jornadas. Contam com a generosa ajuda do Estado, que tenta seguir a agenda de privatizações e redução do custo do trabalho. Para os trabalhadores, sobra pouco. O auxílio emergencial de apenas R$ 600 custa R$ 151,5 bilhões, liberados com toda burocracia possível.

Enquanto a ação dos governantes se restringe a abrir covas à espera de corpos e, às vezes, inaugurar um ou outro hospital de campanha, a dívida pública segue a consumir mais de R$ 4 trilhões da riqueza nacional. Segundo dados do Congresso, o governo Bolsonaro gastou apenas 25% dos recursos alocados para o combate ao coronavírus. Em grande parte, os óbitos da Covid-19 é produto direto da política do governo.

A polarização social se acentua e parte dos burgueses temem que a postura do presidente Jair Bolsonaro tensione ainda mais a luta de classes. A elite quer paz para os seus negócios, e é justamente o que ela não consegue. Por conseguinte, tenta criar uma atmosfera de unidade nacional, falsificando o contexto das Diretas Já em 1984. De modo a lançar frentes de cooptação das organizações operárias para neutralizar a luta de classes — manifestos Estamos Juntos e Basta! Assim, parte da elite busca utilizar as instituições sob o seu controle, para enquadrar Bolsonaro. Inclusive, estudando a possibilidade de retirá-lo do Palácio do Planalto. Outro setor teme justamente o contrário: que a queda de Jair Messias possa simbolizar uma vitória para os trabalhadores, impulsionando-os para lutas insurrecionais.

Entretanto, os trabalhadores sabem que o aumento da pandemia do novo coronavírus no Brasil é consequência direta da falta de investimento em saúde pública e da negligência de prefeitos e governadores, que afrouxam o isolamento social para atender interesses de comerciantes e empresários. Bem como do presidente da república, que incentiva criminosamente as pessoas a desrespeitarem as recomendações de saúde. Como também defende publicamente a contaminação massiva da população, para o retorno mais rápido à normalidade, mesmo que isso signifique uma carnificina.

Com as contradições cada vez mais explícitas, a consciência de classe dá um salto e sacode as instituições, que não conseguem resolver a tarefa que seria básica: manter a estabilidade social.

A instabilidade marca o momento em todo o mundo. Nos EUA, o presidente Donald Trump e generais do exército se desentendem sobre como lidar com as manifestações. Antes da revolta catalisada pelo assassinato de George Floyd, ramos do imperialismo americano se confrontavam sobre qual caminho tomar diante da crise. Na Europa, o cenário se repete de diversas formas.

Enquanto isso, os dados da pandemia por aqui crescem assustadoramente. O Brasil ultrapassou a Itália em número de mortes por complicações da Covid-19, sendo agora, o terceiro do planeta com mais óbitos. Segue atrás somente do Reino Unido e dos EUA. Em número de contaminados, o país já é o segundo com mais casos confirmados. Os números reais são muito maiores, considerando o grande número de subnotificações, conforme denúncias apuradas por universidades e pesquisadores.

Especialistas em infectologia, alertam que se a tendência atual de contaminação for mantida, o país poderá até ultrapassar os números americanos, o que significaria uma tragédia sem precedentes.

Não vai ter golpe, ou autogolpe, ditadura militar ou fascismo. Ao menos, não é mais o provável, como já explicaram diversas análises publicadas em artigos no sítio ‘web’ www.marxismo.org. O que presenciamos é uma radicalização dos conflitos de classe que se expressam de ambos os lados. A perda de controle da situação tende a levar a grande burguesia a apoiar-se em um governo do tipo bonapartista, ou seja, que pretende se estabelecer apresentando-se como neutro diante de uma luta tensa e disputada entre as classes — que, apesar do populismo, age para garantir o domínio do capitalutilizando-se das ferramentas judiciais e repressivas. Esse sempre foi o sonho de Bolsonaro, mas, por sua incapacidade, é o próprio judiciário que se candidata à função.

A capacidade de luta dos trabalhadores ditará o futuro. O certo, é que qualquer faísca pode explodir o barril de pólvora. Ao proletariado não interessa nem o autoritarismo bonapartista, nem a democracia da burguesia. As assembleias populares, comunas e sovietes estão no ‘DNA’ da classe e, cedo ou tarde, se apresentará como alternativa real a esse sistema em decomposição.