As gangues do Haiti e o fracasso da burguesia

A situação econômica e política no Haiti continua se deteriorando, aparentemente sem fim à vista para o sofrimento das massas. O problema que vem crescendo há algum tempo, está agora atingindo níveis de crise com gangues bloqueando portos e impedindo o fornecimento de combustível em todo o país para forçar a renúncia do primeiro-ministro Ariel Henry. Após o assassinato do presidente Jovenel Moïse no início de julho, que ainda está envolto em mistério, o pouco que resta do Estado em desintegração do Haiti foi incapaz de lidar com a situação.

As gangues são uma realidade há muito tempo no Haiti, mas agora a situação está fugindo de todo controle, com consequências econômicas e políticas significativas. O Haiti está em seu terceiro ano de recessão. A taxa de crescimento econômico do país foi de -1,7% em 2018-2019 e -3,3% em 2019-2020. De acordo com o Banco da República do Haiti (BRH), o crescimento econômico permanecerá negativo em -2,3% para o ano fiscal de 2020-2021.

Alguns economistas estimam que, entre 2016 e 2020, a violência das gangues custou ao Haiti mais de US$ 4 bilhões por ano, ou aproximadamente 30% de seu produto interno bruto. Isso nos mostra claramente a extensão do problema, mas deve-se notar que elas não são a causa da crise econômica, mas um grave sintoma da enfermidade do capitalismo haitiano.

Um sintoma da enfermidade capitalista

Deve-se lembrar que, no Haiti, quase 60% da população vive na pobreza, quase metade da população (4,4 milhões) precisa de assistência alimentar imediata e 1,2 milhão sofre de fome extrema. Nesse contexto de profunda recessão econômica, alto desemprego e extrema pobreza, as gangues são alguns dos maiores empregadores do país. Sem empregos e sem oportunidades, não é de admirar que as pessoas, especialmente os jovens, migrem para as gangues em busca de proteção e de uma chance de participar do saque. Elas oferecem às pessoas acesso a certa quantia de dinheiro e riqueza que nunca teriam em um trabalho normal. Os empregos disponíveis não oferecem nenhum caminho para sair do ciclo de pobreza e violência, com a maioria oferecendo salários baixíssimos, incluindo nas zonas de livre comércio, onde produtos baratos são exportados principalmente para os EUA.

Os sequestros realizados pelas gangues triplicaram no ano passado, com o The Washington Post relatando que o Haiti agora tem a maior taxa de sequestro per capita do mundo. A violência deslocou cerca de 19 mil pessoas, principalmente de Cité-Soleil, Croix-des-Bouquets, Delmas e do bairro de Martissant em Port-au-Prince. Áreas inteiras do país estão efetivamente confinadas, já que as pessoas estão com medo de deixar suas casas por medo de serem sequestradas. Em um caso de destaque, 17 missionários dos Estados Unidos e do Canadá, incluindo crianças, foram sequestrados, com a gangue responsável exigindo um resgate de US$ 17 milhões.

Quase 60% da população do Haiti vive na pobreza, 4,4 milhões precisam de assistência alimentar imediata e 1,2 milhão sofre de fome extrema / Imagem: Foto das Nações Unidas, Flickr
O poder das gangues foi claramente demonstrado após o terremoto e a tempestade tropical que atingiu o Haiti em agosto. O transporte de suprimentos de emergência para as áreas afetadas era impossível por causa da violência em Martissant, o bairro de Porto Príncipe por onde passava a única estrada importante para a zona do terremoto. Caminhões de transporte foram bloqueados e atacados em postos de controle de gangues, caminhões foram saqueados e motoristas sequestrados. As Nações Unidas acabaram pedindo uma trégua entre as gangues para permitir o embarque de mercadorias. As principais gangues que lutam pelo controle de Martissant acabaram declarando uma breve trégua que permitiu o envio de alguns suprimentos de socorro, mas já acabou e a rodovia ao sul é novamente uma zona proibida.

O Estado haitiano é extraordinariamente fraco. Alguns falaram que o Haiti é um “Estado falido”, enquanto outros comentaram que existe um “Estado inexistente”. O fato é que os serviços de eletricidade e os sistemas de esgoto são praticamente inexistentes, enquanto saúde, educação e outros serviços básicos são prestados principalmente por organizações não governamentais e de caridade.

O Estado haitiano não tem legitimidade. Com um presidente assassinado que permaneceu além de seu mandato, com uma legislatura e um senado dissolvidos com apenas 10 membros titulares, o atual primeiro-ministro não poderia ser juridicamente empossado. Na realidade, Ariel Henry não é tanto o primeiro-ministro, mas atua como presidente: não eleito e não juramentado legitimamente. O processo político no Haiti está se desenrolando inteiramente fora da constituição.

Ariel Henry foi acusado pelo ministro da justiça e procurador-chefe de estar envolvido no assassinato de Jovenel Moïse. Eles exigiram que ele fosse interrogado e que seus privilégios de viagem fossem revogados. Em resposta, Henry simplesmente os despediu, sem consequências. A realidade é que não existe uma estrutura para o funcionamento da constituição no Haiti. Não existe uma estrutura para o funcionamento da democracia burguesa no Haiti.

O poder das gangues revela o fracasso do governo da burguesia no Haiti. Porto Príncipe é amplamente controlada pelas gangues, assim como áreas inteiras do país, incluindo as principais rodovias e rotas de trânsito. Nas áreas controladas pelas gangues, são elas efetivamente o Estado. As gangues são mais numerosas e mais armadas do que a polícia e o exército. Nas áreas sob seu controle, elas são os únicos corpos especiais de homens armados. O dinheiro extorquido e arrecadado pelas gangues de empresas e residências agora é até chamado de “impostos” em algumas áreas.

As gangues vêm consolidando seu poder em todo o país, preenchendo rapidamente o vácuo político. Mas  não se tornaram simplesmente poderosas por conta própria. Elas foram financiadas e promovidas pela elite burguesa e pelos políticos do país, que as utilizavam para serviços de proteção, para aterrorizar rivais e para várias empresas criminosas. Dada a crise econômica e a desintegração política, era apenas uma questão de tempo até que as gangues se tornassem uma força política em nível nacional. Isso representa um perigo real para as massas.

Em 17 de outubro, Ariel Henry foi forçado a fugir de uma cerimônia oficial em celebração ao assassinato de Jean-Jacques Dessalines. Henry foi expulso por membros da gangue G9 de Jimmy “Barbecue” Cherizier, que superou em número e em armas as forças de segurança de Henry. Não muito depois, Cherizier, vestido com um terno branco e camisa com gola, que é o código de vestimenta dos oficiais em feriados nacionais, oficiou ele mesmo a cerimônia. Cherizier estava enviando uma mensagem às elites políticas de que estava no comando e liderando o país. Ele estava demonstrando seu verdadeiro poder e mostrando a todos que estava desempenhando o papel de chefe de Estado.

Gangues substituindo o Estado

Com o bloqueio dos combustíveis, Cherizier quer criar caos e instabilidade na esperança de que o governo entre em colapso. Ele pode então se apresentar como o homem forte que pode salvar o país da crise. Esta é a verdadeira razão pela qual ele se apresenta como um Robin Hood moderno que pode salvar os pobres das elites burguesas que o apoiaram. Na realidade, Cherizier não é um salvador do povo haitiano. Ele é o líder da gangue G9 an fanmi e alye (Família G9 e Aliados), considerada a mais poderosa aliança de gangues do país. Esta gangue esteve envolvida em vários massacres, incluindo o massacre La Saline 2018 e ataques em maio de 2020 em vários bairros de Porto Príncipe, outra série de massacres na capital em agosto e setembro de 2020 e um ataque em abril de 2021 em Bel Air.

Uma importante organização de direitos humanos no Haiti, a Rede Nacional de Defesa dos Direitos Humanos (RNDDH), investigou os massacres perpetrados pelo G9 e constatou que a polícia não interveio, não apresentou relatórios de testemunhas e que foram usados ​​equipamentos policiais no ataque. Isso aponta para um certo nível de conluio entre o G9 e a polícia.

Acredita-se amplamente que Cherizier era um aliado próximo do então presidente Jovenel Moïse, que estava usando a gangue do G9 para eliminar dissidentes e rivais. Após o assassinato do presidente, Cherizier apoiou publicamente Ariel Henry como seu sucessor. Mas agora que Henry foi implicado no assassinato, Cherizier se voltou contra ele e está usando bloqueios de combustível para forçar sua renúncia.

Desde então, a situação piorou ainda mais. No final de outubro, o G9 e outras gangues começaram a bloquear os principais portos do Haiti, impedindo o transporte de combustível. O Haiti não tem uma rede elétrica funcionando, então a maioria das pessoas e instituições dependem dos geradores diesel como combustível. Com os bloqueios, existe agora uma grande escassez de combustível em todo o país. Os postos de gasolina estão sem combustível há semanas. Como resultado, nada no país funciona adequadamente. O transporte está parado. Crianças e professores não podem ir à escola e os trabalhadores não podem trabalhar. Hospitais foram forçados a fechar enfermarias e alguns estão prestes a fechar totalmente, ameaçando todo o sistema de saúde em si. Escolas, empresas, vendedores ambulantes e até torres de telefones celulares estão racionando o pouco combustível que lhes resta, com o país quase totalmente paralisado.

Com o bloqueio de combustível imposto pelas gangues, Cherizier quer criar caos e instabilidade na esperança de que o governo entre em colapso / Imagem: peopledispatch
Em 25 de outubro, Cherizier anunciou que o bloqueio de combustível seria levantado quando Henry renunciasse. Em resposta, Henry garantiu o estabelecimento de corredores de segurança para garantir o transporte do combustível. Enquanto Henry alegava que esses corredores haviam sido estabelecidos, os motoristas de transporte relataram que esses corredores de segurança são praticamente inexistentes e que continuam a ser atacados e sequestrados ao longo das principais rotas dos portos.

Há muito pouco que o Estado haitiano possa fazer nesta situação. Alguns levantaram a possibilidade de um golpe liderado pelas gangues. No momento, essa perspectiva não pode ser descartada, já que Cherizier e o G9 efetivamente têm mais poder do que o Estado e controlam a situação. O Estado está paralisado e nem consegue cumprir suas funções básicas. Não tem meios para lidar com as gangues, pois são maiores que a polícia e as forças armadas e estão mais bem armadas. Existem elementos corruptos na polícia que têm ligações estreitas com as gangues, o que complica qualquer operação policial séria. Alguns dos líderes de gangue mais poderosos, como Cherizier, são ex-policiais. A situação se tornou tão terrível que, no início de outubro, o ministro das Relações Exteriores, Claude Joseph, solicitou que o Conselho de Segurança da ONU ajudasse a lidar com as gangues.

A única maneira de a ONU ajudar seria enviando tropas (“mantenedores da paz”) para lidar militarmente com as gangues. Para o povo do Haiti, isso não seria solução, pois significaria uma guerra aberta nas ruas. Pode-se argumentar que a guerra aberta já existe, no entanto, o grande número de tropas da ONU, necessárias para desenraizar e derrotar as gangues, levaria o conflito a um outro patamar.

Em resposta, a ONU disse que “o Haiti deve implementar uma abordagem mais holística para lidar com a violência das gangues”. É claro que lidar com as causas profundas que deram origem às gangues seria a melhor maneira de lidar com o problema. Bons empregos e pleno emprego com salários decentes e um grande investimento em moradia decente, educação e saúde seria uma forma de erradicar as gangues. Tirando os problemas da pobreza e os incentivos que levam as pessoas a ingressar nas gangues, eles podem ser derrotados.

Derrotar as gangues exige uma alternativa ao capitalismo

Mas como isso será alcançado no Haiti? A classe dominante e os imperialistas nunca concordaram e nunca concordarão com as políticas econômicas e sociais que poderiam lidar com as gangues. Uma abordagem holística das gangues não será possível sob o capitalismo. É precisamente por causa da ganância e da corrupção da classe dominante haitiana e dos imperialistas que o Haiti se encontra em seu estado atual. Além disso, a enfermidade geral do capitalismo no Haiti permitiu que as gangues crescessem como um câncer. Elas agora são parte integrante do próprio capitalismo no Haiti. Os políticos e a burguesia financiaram e as empregaram para promover seus próprios interesses. A corrupção é tão profunda que todo o sistema capitalista, incluindo a estrutura política, foi criminalizada e “gangsterizada”.

Pode parecer que não há esperança para as massas haitianas. Mesmo assim, a classe trabalhadora haitiana já indicou o caminho a seguir. Várias greves gerais foram convocadas para protestar contra a situação de segurança e os bloqueios de combustível, lideradas pelos trabalhadores dos transportes. A classe trabalhadora está começando a buscar suas próprias soluções, e esta será a única saída para as massas haitianas.

A classe dominante e o Estado haitiano criaram esta situação e são incapazes de fazer qualquer coisa para resolver a crise atual / Imagem: Foto da ONU, Flickr
A classe dominante criou esta situação e, o que é mais importante ainda, é incapaz e sem vontade de fazer qualquer coisa para resolver a crise. O Estado haitiano e os imperialistas também não podem e não querem fazer nada. Há pouco apetite por uma intervenção imperialista e qualquer intervenção só pioraria a situação. A ocupação anterior das Nações Unidas deixou em seu rastro uma epidemia de cólera e um escândalo de abuso sexual. Uma nova ocupação significaria guerra aberta. Resolver essa crise caberá às próprias massas haitianas.

O primeiro passo prático que precisa ser dado é que as massas devem formar comitês de ação revolucionária nos bairros e locais de trabalho. É necessária a defesa armada dos bairros e a proteção contra sequestros. Para tanto, organizações armadas de autodefesa devem ser formadas nos bairros e locais de trabalho para proteção contra ataques e sequestros. A classe trabalhadora, os sindicatos, os da esquerda e os revolucionários interessados ​​em uma mudança social real e em derrotar as gangues devem começar a considerar como isso pode ser feito e encontrar maneiras de alcançá-lo.

Toda a estrutura do capitalismo haitiano está podre. A única maneira de limpar essa podridão é a expropriação da burguesia e dos imperialistas. Este será um passo fundamental para superar o poder e as conexões das gangues. Os comitês revolucionários precisarão desenvolver um programa econômico, político e social que possa erradicar a pobreza que leva as pessoas a ingressar em gangues. Eles precisarão administrar a coleta e a distribuição de bens básicos como alimentos, água e combustível; a organização do transporte, da educação, da saúde e da habitação. Expropriando a burguesia e libertando o país da ganância e da corrupção dos capitalistas e imperialistas, os comitês revolucionários poderiam começar a desenvolver um plano econômico que proporcionasse empregos e salários decentes. Essa será a única maneira possível de desenvolver uma abordagem holística do problema das gangues.

Deixar a solução para os capitalistas e imperialistas não será solução de forma alguma. Isso só vai resultar no agravamento da crise e no aumento do poder das gangues. Em suma, o único resultado será a barbárie. A classe trabalhadora está começando a lutar por seus próprios interesses. Este será o único caminho a seguir: derrubar a burguesia e todo o edifício podre do capitalismo haitiano.

TRADUÇÃO DE FABIANO LEITE.
PUBLICADO EM MARXIST.COM