Ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, e o secretário Especial da Cultura, Mário Frias, durante live. Crédito: Gustavo Messina/MTur

As limitações da Lei Aldir Blanc e a luta por direitos dos trabalhadores da cultura

A Lei Aldir Blanc, cuja finalidade é socorrer artistas e espaços culturais prejudicados durante o período da pandemia da Covid-19, foi aprovada pelo Congresso em junho desse ano e deverá sair do papel apenas agora no mês de setembro.

A grande demora do repasse da verba destinada ao setor da cultura demonstra o descaso por parte do governo federal em garantir as condições mínimas necessárias para a sobrevivência dos trabalhadores da área. Ao mesmo tempo, a própria lei apresenta contradições para o avanço das reivindicações do setor, que deveriam apontar para a estatização dos equipamentos culturais e por direitos trabalhistas.

A Lei 14.017/2020 foi batizada como Aldir Blanc em homenagem ao letrista e compositor brasileiro que morreu em maio desse ano vítima da Covid-19, sem dinheiro, inclusive, para custear os gastos necessários para seu tratamento médico. A morte de um grande artista como Aldir Blanc é apenas um exemplo de como a lógica capitalista atua, mostrando que até mesmo a vida de figuras importantes no país é menosprezada, assim como a condição de miséria é imposta a milhões de trabalhadores do setor cultural.

Para salvaguardar a vida dos trabalhadores do setor cultural a Lei Aldir Blanc prevê um auxílio emergencial de R$ 600 durante três meses sucessivos àqueles que comprovarem, dentre outras coisas, a atuação social ou profissional na área nos últimos 24 meses antes da aplicação da lei; não terem um emprego formal ativo, rendimento familiar per capital de até meio salário mínimo ou renda familiar mensal de até três salários mínimos; não terem recebido no ano de 2018 rendimentos tributáveis acima de 28.559,70 reais, além do não recebimento do auxílio emergencial já aplicado pela Lei nº 13.982, de 2 de abril de 2020.

Os critérios utilizados como rendimento familiar per capita, renda familiar e o teto dos rendimentos tributáveis são os mesmos aplicados pela lei de auxílio emergencial destinada a atender o conjunto dos trabalhadores brasileiros. O valor de R$ 600 também é igual ao antigo valor do auxílio emergencial, que passa agora a ser de apenas R$ 300 com a aplicação da Medida Provisória pelo governo.

Além de chegar muito tarde ao bolso dos trabalhadores da cultura, o valor de R$ 600 é insuficiente para cobrir os gastos mais básicos como alimentação, moradia, produtos de higiene, contas de água, de luz e até de internet, no caso de quem está tentando uma alternativa de trabalho por meio de atividades remotas. Vale ressaltar que o valor não chega nem perto do salário mínimo, hoje de R$ 1045, que por sua vez já está muito abaixo da estimativa apresentada pelo Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese), de R$ 4366,51.

Devem ser liberados R$ 3 bilhões aos estados, municípios e Distrito Federal a partir dos recursos repassados pela União. Tanto os estados quanto os municípios terão 120 e 60 dias, respectivamente, para a liberação dos recursos e, caso não sejam utilizados, deverão voltar ao Tesouro Nacional. Um dinheiro ínfimo se comparado os pagamentos destinados aos bancos e ao pagamento da dívida pública que, em dezembro do ano passado, somente se tratando da dívida interna do governo federal, ultrapassava o valor de R$ 5 trilhões, 971 bilhões.

O dinheiro destinado ao setor cultural, a partir da Lei Aldir Blanc, não deve servir apenas para ajudar artistas e outros trabalhadores da cultura, mas propõe um subsídio mensal de R$ 3.000 a R$ 10.000 para espaços culturais e artísticos, microempresas e pequenas empresas culturais, organizações culturais comunitárias, cooperativas e instituições culturais com atividades interrompidas a partir de comprovação por meio de sistemas de cadastro. A partir do artigo 8º da lei inclui-se companhias e escolas de dança, centros culturais, comunidades quilombolas, livrarias, editoras, sebos, ateliês de pintura, moda, design e artesanato, galerias de arte e fotografias, feiras de arte e artesanato, espaços de apresentação musical, dentre outros.

Na suposta tentativa de amenizar o impacto econômico gerado a partir da pandemia da Covid-19, a lei visa destinar investimento do setor público para o setor privado, ainda que seja de microempresas ou empresas de pequeno porte. Nesse aspecto, a lógica aplicada pela lei, em vez de se opor ao caráter mercadológico da arte e da cultura, acaba por reforçá-lo. O processo de privatização, nesse caso, também deveria ser combatido, na medida em que é o responsável por levar ao agravamento da pauperização de grande parte dos artistas e trabalhadores autônomos que vivem como prestadores de serviços.

A reivindicação da lei, portanto, deveria ir na contramão da lógica privatista da cultura e da arte para que os equipamentos culturais e pontos de cultura pudessem ser estatizados e seus antigos proprietários pudessem se tornar trabalhadores assalariados registrados, servidores públicos, e o dinheiro pudesse servir aos interesses públicos, atendo às necessidades do conjunto dos trabalhadores.

Vale ainda ressaltar que a Lei Aldir Blanc acaba por priorizar o auxílio aos espaços culturais, e não exatamente aos trabalhadores. Além disso, mesmo sendo criada como medida emergencial, a Lei Aldir Blanc está longe de ser um socorro real aos trabalhadores da cultura, e a lentidão de sua aplicação demonstra o quanto ela nada tem de verdadeiramente emergencial. Nem mesmo um valor tão abaixo do mínimo necessário para a sobrevivência dos trabalhadores, como é o valor de R$ 600, conseguiu, até agora, ser repassado.

A aplicação real da Lei Aldir Blanc explicita apenas uma pequena parte do problema sobre a condição atual dos artistas e outros trabalhadores da área cultural. No artigo 2º, conforme o inciso III, aparece a afirmação de que a aplicação do dinheiro da Lei deverá ser por meio de

editais, chamadas públicas, prêmios, aquisição de bens e serviços vinculados ao setor cultural e outros instrumentos destinados à manutenção de agentes, de espaços, de iniciativas, de cursos, de produções, de desenvolvimento de atividades de economia criativa e de economia solidária, de produções audiovisuais, de manifestações culturais, bem como à realização de atividades artísticas e culturais que possam ser transmitidas pela internet ou disponibilizadas por meio de redes sociais e outras plataformas digitais”.

Ou seja, a aplicação do dinheiro deverá ser feita por meio do investimento a editais e a outras formas em que concorrem artistas uns contra os outros, seguindo a lógica privatista de aplicação de dinheiro público a produções de parcela dos chamados “artistas proponentes”, que para concorrerem entre si devem se apresentar como empreendedores ou micro empreendedores no mercado de editais. Isso ocorre ao mesmo tempo em que a condição de vida do artista apresenta-se, na maior parte das vezes, muito próxima ou mesmo inferior ao do proletariado e os editais atuam não como conquistas, mas meios precários de sobrevivência para uns e de desemprego para tantos outros.

Sem que o artista ou qualquer profissional da área cultural se coloque a favor do conjunto da classe trabalhadora, sem que se passe a formular suas reivindicações para além do ponto de vista de suas necessidades individuais, como se pertencessem a uma “classe” diferente de todas as outras que constituem a sociedade, a lógica mercadológica deverá continuar arrastando todos os mais pobres para a miséria, constituindo-os na massa de desempregados ou trabalhadores informais, expondo-os ao risco de morrer por Covid-19, ou mesmo morrer de fome, de depressão ou de quaisquer outros males alimentados pelo próprio sistema capitalista.

O setor cultural inclui aproximadamente 5 milhões de pessoas no Brasil que hoje estão, na maior parte, condenadas a um enorme rebaixamento de sua condição de vida. Não há previsão para a volta das atividades culturais e artísticas presenciais, enquanto há ausência de renda fixa para trabalhadores da área, que não possuem sequer reservas para continuar sobrevivendo. Por isso, para além da urgência por parte dos trabalhadores no recebimento do auxílio de R$ 600, há uma urgência na garantia de empregos para que tenham uma vida minimamente digna, com direito à quarentena, ao serviço de saúde público de qualidade e aos direitos conquistados pelo conjunto da classe trabalhadora.