Legenda: Elizabeth Arrot

Assad cai e os islâmicos tomam o poder na Síria

O regime sírio entrou em colapso. Bashar al-Assad fugiu do país. Seu exército foi desarmado e seu governo capitulou. As prisões foram invadidas e milhares foram libertados. Enquanto isso, milhares de sírios foram às ruas em comemoração.
 
O vácuo de poder está sendo preenchido por milícias locais e senhores da guerra que tomaram conta de diferentes localidades em todo o país. Milícias drusas tomaram conta de Sweida e localidades próximas no sul. Milícias apoiadas pelos EUA em Al Tanf estão avançando para o centro do país, e milícias iranianas teriam recuado de Deir Ezzor, entregando o controle aos combatentes curdos das SDF. Enquanto isso, as forças russas recuaram para as áreas costeiras ocidentais junto com os remanescentes das forças de Assad.
 
No entanto, apesar de toda a conversa sobre um governo de transição inclusivo, é o islâmico Hayat Tahrir al-Sham (HTS) que inegavelmente emergiu como a força dominante na Síria hoje. O que começou ostensivamente como uma operação militar limitada no interior de Aleppo pelo grupo rapidamente se desenvolveu até o desmantelamento do exército e do estado sírios por completo. Para sua própria surpresa, assim como para seus apoiadores em Ancara, a investida islâmica atravessou a Síria com facilidade.
 
Por enquanto, as emoções estão à flor da pele no Oriente Médio. Muitos estão exultantes com a queda de Assad, enquanto outros se desesperam com o retorno dos reacionários islâmicos e com a perspectiva de mais instabilidade. Nossa tarefa como revolucionários comunistas, no entanto, repetindo as palavras de Spinoza, não é rir, chorar ou desesperar, mas compreender.
 
Os islâmicos que invadiram o país estiveram lutando contra o regime há quatorze anos sem êxito. Agora tiveram sucesso em dez dias. Ninguém esperava isso. Isso requer uma explicação. Quais forças estão por trás do desmoronamento da Síria?

É difícil não tapar o nariz ao se ler a imprensa ocidental sobre a Síria. A mesma mídia que regularmente denuncia a “barbárie” de grupos como Hamas e Hezbollah, e que orgulhosamente elogia o regime encharcado de sangue de Israel como a “única democracia no Oriente Médio”, continua retratando o HTS e seus aliados nos termos mais respeitáveis ​​e até inspiradores como “rebeldes”.
 
Esses “rebeldes” já foram apelidados de “rebeldes moderados” pelo Ocidente. Muitas vezes nos perguntamos: “moderados em relação a quê?” Essa pergunta nunca foi respondida. O que se queria dizer é que se tratava de grupos jihadistas islâmicos que se supunham “mais moderados” do que os loucos do Estado Islâmico que devastaram o Iraque e a Síria entre 2014 e 2019.
 
Na realidade, o HTS remonta suas raízes ao mesmo Estado Islâmico (EI) e à rede islâmica internacional Al Qaeda. Suas diferenças com o EI são de mero caráter tático, enquanto, em todas as questões de princípios, eles compartilham a mesma ideologia reacionária. Ele surgiu no submundo de grupos islâmicos que foram armados e financiados pelos EUA, Turquia, Arábia Saudita e outros estados do Golfo durante a guerra civil de oito anos que começou em 2012.
 
Esmagando toda a oposição real dentro do campo islâmico, o grupo e seu líder, Abu Mohammad al-Jolani, ascenderam ao poder na província noroeste de Idlib, onde o movimento foi isolado pelas forças de Assad e seus aliados. Ali, ele sobreviveu graças à proteção militar e ao apoio econômico da Turquia.
 
Mas, com a guerra de Israel em Gaza e no Líbano consumindo uma grande parte dos recursos iranianos e do Hezbollah, e a guerra na Ucrânia desviando a atenção russa, está claro que os islâmicos viram sua chance de pressionar por mais território. O presidente turco Erdogan viu isso como uma chance adicional de expandir sua influência na Síria, para a qual ele há muito tinha grandes projetos.
 
Erdogan sempre teve ambições de dominar a Síria e o norte do Iraque na forma de um renascimento neo-otomano. Ele também é hostil às forças curdas ligadas ao PKK que controlam o nordeste da Síria, com o apoio dos EUA e com a colaboração do regime de Assad. Ao mesmo tempo, ele enfrenta uma crise econômica em casa e está procurando devolver milhões de refugiados sírios que o regime de Assad não concordaria em aceitar. Assim, vendo os russos e iranianos distraídos em outros locais, ele deu sinal verde para o HTS.
 
No entanto, não há dúvidas de que a CIA e o Mossad também teriam conhecimento dos preparativos para a ofensiva e a apoiaram tácita ou ativamente. “Ninguém sabe se o Irã e o regime teriam ficado enfraquecidos sem os recentes ataques israelenses na Síria, que nos permitiram retornar e libertar as terras e o país”, disse uma fonte do HTS à mídia israelense. Sem a implacável guerra militar e econômica contra o Irã e seus aliados na região, nenhum dos eventos das últimas duas semanas seria possível.

Os islâmicos sequestraram a incipiente revolução síria de 2011, um fato que inicialmente salvou o regime. Diante do terror do fundamentalismo islâmico, os sírios se uniram em torno de Assad, que foi apoiado por milícias alinhadas ao Irã e pela força aérea russa. Agora, as mesmas forças jihadistas produzem passividade ou até são bem-vindas entre grandes camadas da população. Como isso pôde acontecer?
 
Como explicamos antes, a Síria estava, até recentemente, entre as sociedades mais avançadas do Oriente Médio. Tendo erradicado o capitalismo na década de 1970 por meio de um curso peculiar de eventos, alcançou altos níveis de industrialização e modernização, bem como altos níveis de cultura e bem-estar que a diferenciaram da maioria de seus vizinhos.
 
Foi a introdução de uma economia de mercado na década de 1990 que fez com que a pobreza e o desemprego se infiltrassem mais uma vez no tecido da sociedade. Junto ao impulso externo da revolução árabe geral, isto foi, em última análise, a base socioeconômica para a revolução síria de 2011.
 
A insurgência jihadista alimentada pelo Ocidente e pela guerra civil que se seguiu pioraram dramaticamente a situação. Mais de meio milhão de pessoas foram mortas, e mais da metade dos 21 milhões de habitantes do país antes da guerra tiveram que fugir de suas casas, seja para outras regiões ou para países vizinhos. Uma geração inteira ficou destroçada e à deriva.
 
Enquanto isso, a indústria foi dizimada, a infraestrutura vital também, e a Síria foi dividida em partes controladas por diferentes potências imperialistas, deixando o regime isolado das antigas terras agrícolas e dos campos de petróleo. O PIB da Síria encolheu em mais da metade entre 2010 e 2020. O deslocamento da economia foi devastador.

O imperialismo ocidental, em geral, perdeu a guerra civil. Os jihadistas ficaram isolados no canto noroeste do país, sobrevivendo apenas sob a proteção do imperialismo turco. A América manteve uma base militar fraca em Al Tanf, no sul, e estabeleceu patrocínio sobre as forças curdas no nordeste. Mas todas as principais cidades e áreas industriais permaneceram nas mãos de Assad.
 
O Ocidente, no entanto, vendo a Síria como uma nação hostil apoiada pelo Irã, impôs uma série de sanções implacáveis ​​ao país com o objetivo de impedir sua reconstrução. Além de armas, as sanções visavam importações de energia, desenvolvimento de infraestrutura e transações financeiras — pilares fundamentais da economia. Em março de 2022, o país era o terceiro regime mais sancionado do mundo.
 
Enquanto isso, os desastres se acumulavam na Síria, primeiro na forma da crise bancária libanesa — parcialmente devido às sanções dos EUA —, depois com a pandemia da COVID-19, com as secas desastrosas e com um terremoto devastador em Aleppo em 2023.
 
Um relatório do Banco Mundial pinta um quadro sombrio da situação:

“A situação econômica da Síria continuou a piorar em 2023. A atividade econômica, representada pelas emissões de luz noturna, caiu 1,2% ano a ano, especialmente ao longo das fronteiras ocidentais da Síria, em parte devido ao enfraquecimento da atividade comercial. Os dados de queima noturna de gás também mostram uma queda de 5,5% ano a ano na produção de petróleo, em parte devido a danos à infraestrutura relacionados a terremotos e conflitos. Apesar de uma recuperação na produção agrícola devido à melhora das condições climáticas em 2023 (a partir da baixa quase histórica em 2022), o conflito afetou severamente o setor agrícola, com o deslocamento em massa de agricultores e danos extensos à infraestrutura e aos sistemas de irrigação, levando a um declínio na produtividade das colheitas. As interrupções relacionadas ao conflito também impactaram severamente o comércio exterior. Um colapso na produção industrial e agrícola doméstica aumentou a dependência da Síria de importações. A dependência de importações de alimentos, embora já fosse um problema antes de 2011, também se intensificou com o conflito. Em 2023, a libra síria depreciou substancialmente em 141% em relação ao dólar americano, enquanto a inflação dos preços ao consumidor deve ter aumentado em 93%, exacerbada pelos cortes de subsídios do governo. À medida que a economia desacelera, as receitas fiscais continuam a diminuir. Em resposta, as autoridades reduziram ainda mais os gastos, com cortes particularmente acentuados nas despesas de capital, e continuam a apertar os programas de subsídios.”

Por trás desses números, existe uma sociedade onde a base para a vida civilizada foi corroída em grande parte. O orgulhoso povo sírio foi, em grande medida, reduzido a viver uma existência lamentável e miserável. Mais da metade deles está desempregada, e mais de 90% vivem abaixo da linha da pobreza, sobrevivendo com menos de US$ 2 por dia — um nível que em 2009 era insignificante. De acordo com uma pesquisa de 2023, cerca de 11% das famílias na área de Aleppo relataram que seus filhos estavam envolvidos no trabalho, principalmente devido à renda familiar insuficiente.
 
As impressões digitais sangrentas do imperialismo estão por todo o país. Tornou a vida insuportável para milhões de pessoas na Síria, assim como em outros lugares da região.

O capitalismo sírio não conseguiu encontrar uma solução para esse beco sem saída. Corrupção e decadência desenfreadas infestaram o estado sírio, que se tornou um fantasma sustentado apenas pelo apoio militar iraniano e russo. Os soldados mal eram pagos; os oficiais governavam caprichosamente sem lealdade ao país ou ao seu exército, e os funcionários do estado saqueavam recursos sem parar. As pessoas olhavam para as conquistas após uma década de guerra civil e não encontravam nada para comemorar. Como nossos camaradas sírios me disseram hoje mais cedo: “O povo estava desesperado e ninguém estava preparado para defender Assad.”
 
A vitória dos islâmicos não tem nada a ver com a força da parte deles, mas sim com a extrema podridão e fraqueza do regime de Assad. Como uma maçã podre, ele caiu ao menor solavanco.
 
Aqui está um exemplo do que acontece quando a luta contra o imperialismo permanece confinada dentro dos limites do capitalismo. Os desígnios do imperialismo dos EUA para subjugar a Síria foram derrotados. Mas a classe capitalista síria se mostrou totalmente incapaz de resolver os problemas do país. Pelo contrário, descobriu que era mais lucrativo roubar e furtar das massas do que desenvolver a sociedade e melhorar os padrões de vida. Esse fracasso não se deve à má vontade ou incompetência do regime – é da natureza do capitalismo em sua época atual.
 
A Rússia e o Irã, há muito tempo retratados como anti-imperialistas e defensores de uma Síria secular, se retiraram sem lutar. As forças russas recuaram para a costa a fim de defender suas bases navais e instalações militares. As milícias iranianas se retiraram para o Iraque.
 
Isso revela as limitações da Rússia como potência mundial, que se encontra afastada demais para lutar em duas frentes – na Ucrânia e na Síria. O Irã também claramente levou um golpe após um ano de conflito com Israel e o Ocidente. Além disso, dado o clima hostil antigovernamental, tentar manter o controle sobre a Síria pela força armada teria produzido o risco de que ambas as nações fossem vistas como potências ocupantes. Elas teriam sido engolidas por uma nova e mais poderosa insurgência.
 
No final, o velho ditado de Lord Palmerston se comprovou verdadeiro: “As nações não têm amigos permanentes, nem inimigos permanentes, apenas interesses permanentes.” Os interesses do Irã e da Rússia na Síria eram os de suas respectivas classes capitalistas – não os das massas da Síria ou do Oriente Médio em geral.

Agora, um novo jogo cínico começou para a redivisão da Síria e da região como um todo. As guerras apoiadas pelo Ocidente de Israel em Gaza e no Líbano derrubaram o frágil equilíbrio que havia acabado de emergir no Oriente Médio. A direção das forças agora em movimento é impossível de prever.
 
A Turquia claramente emergiu mais forte, enquanto o Irã e a Rússia saíram enfraquecidos. Isso provavelmente encorajará as forças anti-iranianas no Iraque e no Líbano, ambos os quais permanecem altamente instáveis. Material inflamável também existe na Jordânia, no Golfo e no Egito, esperando por uma faísca para incendiá-lo.
 
É uma prova do extremo cinismo dos imperialistas eles preferirem arrastar a região para o caminho da barbárie a abandonar seu domínio sobre ela. Até que essa força reacionária seja erradicada, continuará a espalhar seu veneno por todo o Oriente Médio e além.
 
A lição pela qual as massas sírias pagarão caro no próximo período é que as massas não podem confiar em nenhum regime capitalista para defender seus interesses na luta contra o imperialismo. Elas só podem confiar em seu próprio poder e no de milhões de trabalhadores e pobres na região e além. Todos sofrem sob a crise do capitalismo que se mostrou um beco sem saída total para a sociedade.
 
A luta contra a pobreza e a miséria, e contra o atraso e o imperialismo só pode ter êxito como uma luta contra a classe capitalista e seu sistema como um todo. A revolução síria e a revolução do Oriente Médio triunfarão como uma revolução socialista liderada pelos próprios trabalhadores e camponeses, ou não triunfarão de forma alguma.

TRADUÇÃO DE FABIANO LEITE