Nos últimos quatro dias (18 a 22/07), Bangladesh mudou completamente. Desde quinta-feira (18/07), o governo de Sheikh Hasina lançou um véu de escuridão sobre todo o país. Sob a cobertura de um apagão das telecomunicações, cometeu o pior massacre que Bangladesh já testemunhou desde a década de 1980, se não desde a guerra de independência de 1971. Com isso, esvaiu-se a última gota de legitimidade da Liga Awami (AL) e do governo de Sheikh Hasina.
Atualmente, com a flexibilização do recolher obrigatório (embora o apagão continue), pelo menos 170 pessoas foram mortas. O número real pode ser muitas vezes maior. Milhares de pessoas estão feridas e centenas estão nas prisões do regime. Há um silêncio temporário nas ruas, mas o primeiro levantamento do apagão pode levar a novas erupções.
Tal como noticiamos na semana passada, isto começou com protestos contra as cotas para empregos no setor público, que são usadas pela AL para recompensar os seus fiéis servidores. Agora, não se trata mais disso.
Nas palavras de um cântico comum nas ruas: “Primeiro conte os corpos, depois conte a cota”. Trata-se agora de levar os carniceiros à justiça e acabar com este regime assassino.
A violência começou na semana passada, quando a polícia e bandoleiros ligados à ala estudantil da AL, a Liga Chhatra, responderam a protestos pacíficos com cassetetes e munição real. As primeiras mortes provocaram indignação em massa. O descontentamento reprimido de milhões de cidadãos comuns de Bangladesh começou a se inflamar. Esmagados por uma crise econômica que deixa ilesa a elite do país, simpatizaram com a luta dos estudantes pela justiça.
O governo imediatamente concluiu que se esta raiva saísse de controle, poderia significar rapidamente o fim do regime. Eles se propuseram a acabar com ela rápida e brutalmente.
De quinta-feira pra cá (22/07), foi instituído um bloqueio de comunicações. O objetivo é semear o terror e a confusão, sendo os jornais e canais de televisão locais controlados pelo governo a única fonte de notícias.
Com poucas exceções, os meios de comunicação capitalistas mantiveram, em termos internacionais, uma conspiração de silêncio cúmplice. Na diáspora, milhões de familiares ficaram preocupados com o destino dos membros da família com quem já não podiam entrar em contato. Coube às próprias comunidades da diáspora organizarem protestos em massa para expor os horrores que se desenrolavam.
Com uma determinação e uma raiva que refletiam o estado de ânimo dentro de Bangladesh, milhares de pessoas saíram às ruas desde Bengala Ocidental a Londres e a Nova Iorque. Centenas de trabalhadores migrantes do Bangladesh saíram às ruas no Qatar, um país com leis repressivas extremas contra protestos públicos. Nos vizinhos Emirados Árabes Unidos, tal atitude corajosa levou a mais de 50 deportações e a três penas de prisão perpétua impostas pelo regime.
Um massacre nas sombras
Apesar do apagão, as notícias sobre o que está acontecendo no interior têm se espalhado. Os números crescentes de fatalidades revelam a bravura das massas. Armados apenas com pedaços de tijolos, elas continuaram a lutar contra os paramilitares do governo que disparavam tiros reais de telhados e até de helicópteros. Circularam imagens dos mortos – alguns carregados pelos seus camaradas, outros jogados como bonecos de trapo na traseira dos veículos da polícia.
Outras histórias que vazaram sugeriam vitórias temporárias numa situação semelhante à guerra civil, à medida que as massas subjugavam as forças de segurança. Na sexta-feira, uma prisão em Narsingdi foi invadida, libertando mais de 800 prisioneiros. Em resposta à desinformação patrocinada pelo governo, a sede estatal da televisão de Bangladesh foi incendiada pelas massas, assim como várias delegacias de polícia.
Aproveitando-se do bloqueio das redes sociais, os meios de comunicação estatais em Bangladesh têm transmitido um fluxo constante de desinformação, ameaças e calúnias.
Entre as mentiras espalhadas está a acusação de que os estudantes são peões dos partidos de oposição de direita, como o Partido Nacional do Bangladesh (BNP). Há a alegação de que os fundamentalistas islâmicos do Jamaat-i-Islami, apoiados pelos serviços secretos do Paquistão, assumiram o controle dos protestos e os estão usando para desestabilizar o país. Dizem até que ONGs estrangeiras se infiltraram nos protestos para realizar uma “revolução colorida”.
As afirmações são absurdas. Não há dúvida de que o governo de Sheikh Hasina teria preferido que estes grupos desempenhassem um papel mais importante no movimento. As detenções que realizou contra as lideranças do BNP e do Jamaat pretendem, sem dúvida, dar-lhes um pouco de crédito político entre uma camada das massas. Afinal de contas, estes partidos burgueses de direita seriam a garantia de frear qualquer movimento que ganhasse apoio.
Os estudantes rejeitaram corretamente o envolvimento destes partidos e denunciaram as calúnias do governo.
Quanto à ideia de interferência do ISI, o serviço secreto do Paquistão: as massas exploradas e oprimidas no Paquistão olham com total simpatia para a luta das massas do Bangladesh. O regime paquistanês teria de ter um desejo suicidapara atiçar as chamas da agitação no Bangladesh, precisamente quando também ele se senta no topo de uma pilha semelhante de raiva inflamável entre as massas. O desemprego e a inflação são, na verdade, mais elevados no Paquistão. Ambos os países oscilam à beira do calote e da falência.
Entretanto, a ideia de que as ONGs ocidentais estão planejando os protestos deve primeiro ser conciliada com alguns fatos. Hasina está implementando lealmente as políticas do FMI que atacam a classe trabalhadora. O seu regime transformou o país em um paraíso de mão de obra barata para a indústria de vestuário do Ocidente. Por que derrubar um fantoche tão leal?
É tudo, claro, calúnia destinada a manchar os protestos. Mas o governo pode terminar terrivelmente enganado se pensar que, através da confusão causada pelas mentiras e pelo apagão dos meios de comunicação social, juntamente com a terrível repressão da semana passada, sufocou o movimento para sempre.
É verdade que uma calma temporária se abateu sobre o país. Após a sua libertação, após sequestro e tortura brutal por parte de paramilitares estatais, o líder estudantil Nahid Islam apelou a uma pausa de 48 horas nos protestos. Mas ele observou que o apagão está mantendo um controle temporário sobre as coisas, tornando impossível a coordenação do movimento. As exigências dos estudantes continuam de pé: demitir os ministros, os policiais seniores e outros assassinos, e fazer justiça aos que foram assassinados. A primeira tentativa de acabar com o apagão pode levar a novas explosões coordenadas e ainda maiores, especialmente tendo em conta que as pessoas estão agora de luto por 170 mártires.
Mas, aconteça o que acontecer a seguir, após o massacre da semana passada, os dias deste regime estão contados. Sua legitimidade desapareceu. As condições econômicas pioram. Novas explosões seguirão e, eventualmente, as massas derrubarão Hasina e a Liga Awami.
A questão colocada por todos, incluindo pela classe dominante dentro e fora de Bangladesh, é: o que vem a seguir? Isso depende da classe trabalhadora, dos estudantes e das massas oprimidas estarem equipadas com uma liderança capaz de lutar pelo poder.
A aposta de Hasina
O governo de Hasina fez uma aposta gigantesca ao realizar este massacre. Bloqueou permanentemente qualquer espaço para retirada. Com o país confinado, o Supremo Tribunal tentou reprimir o movimento, mas as suas tentativas foram inúteis.
Ao ceder na questão das cotas – reduzindo o número de empregos no setor público reservados aos descendentes de veteranos de 30% para 5% – apenas evidenciou que já não compreendia mais o que era este movimento.
Para milhões, trata-se agora de derrubar os assassinos.
Através do massacre em massa, as massas podem ser temporariamente expulsas das ruas com medo e em choque. Esse choque vai passar. Mas entre estas mesmas massas, a legitimidade do regime nunca será recuperada.
À medida que a violência avançava, representantes da classe dominante, na forma das principais confederações empresariais, sentaram-se com Hasina para expressar a sua preocupação. Enquanto o recolher obrigatório e o apagão continuarem, o crucial setor do vestuário permanecerá paralisado e incapaz de satisfazer as encomendas. O mesmo acontece com os bancos.
O vice-presidente do fabricante de vestuário BGMEA, Arshad Jamal Dipu, disse à imprensa imediatamente após a reunião: “A situação precisa ser normalizada o mais rápido possível, pois há uma questão de emprego… Uma fábrica de vestuário não pode funcionar sem a Internet”. É com isso que eles se preocupam: assegurar uma situação que garanta um clima confiável para a obtenção de lucros.
E é para este fim, para “normalizar” a situação dos capitalistas, que Hasina recorreu à força e ao terror. Na verdade, a força e o terror são tudo o que a burguesiatem para garantir o seu domínio e isso preocupa os capitalistas. Como afirmou o think tank sediado nos EUA, o Conselho de Relações Exteriores, isto contribui para uma “autocracia cada vez mais frágil”. E coisas frágeis tendem, a certa altura, a quebrar.
A classe dominante buscará um novo par de mãos, com um mínimo de legitimidade, para assumir as rédeas do poder em algum momento. Aqui reside uma importante fonte de perigo.
Refletindo as exigências das massas nas ruas, o website do Movimento Cota Bangladesh 2024 coloca a queda do regime em primeiro lugar entre as suas cinco exigências:
“Exigimos que a primeira-ministra Sheikh Hasina renuncie imediatamente e entregue o poder a uma terceira via neutra, seja os militares ou um governo provisório. Esta autoridade provisória deve organizar eleições livres e justas nas quais todos os partidos políticos possam participar, garantindo a restauração da democracia e a proteção dos direitos dos cidadãos.”
A queda de Hasina é a exigência correta. Mas pensamos que é equivocado imaginar que uma terceira via neutra seja possível na situação atual. Os protestos no Bangladesh foram iniciados por uma camada relativamente pequena da sociedade: as camadas de estudantes de classe média. Mas polarizou imediatamente a sociedade em duas: por um lado, o regime, os seus parasitas e a classe dominante; e por outro lado, os estudantes com, se não o total apoio ativo, certamente a simpatia de todos os oprimidos e explorados.
A crise do capitalismo está dividindo nitidamente a sociedade em dois campos. De um lado: os exploradores. Do outro: os explorados. Não há terceiros.
Nenhum “governo provisório” poderia agir como um “terceiro”. Muito menos os militares são capazes de desempenhar este papel.
É importante observar que, embora o exército tenha sido desdobrado por todo o país com ordens de “atirar à primeira vista” contra aqueles que desafiassem o recolher obrigatório no sábado e domingo, na maioria dos locais o exército não se envolveu em tiroteios com os manifestantes. Limitou-se em grande parte à verificação de identidades nos postos de controle. Em vez disso, foram a odiada Guarda de Fronteira do Bangladesh (BGB, um grupo paramilitar) e o Batalhão de Ação Rápida (RAB, uma unidade policial “antiterrorismo”) que cometeram a maior parte das atrocidades, aos quais se juntaram os bandoleiros da Liga Chhatra.
Esta foi sem dúvida uma atitude de contenção calculada por parte dos chefes do exército, que previam um grande grau de simpatia entre os soldados comuns pelos protestos.
Na verdade, um correspondente da Al Jazeera publicou o que alegou ser uma declaração de oficiais de baixa patente de Bangladesh, muitos deles ex-estudantes:
“[Fomos] forçados a nos posicionar contra as pessoas comuns, contra o que é certo, durante longos anos. Mas não mais, por favor. Já é hora! Nossa humilde submissão ao nosso respeitado Chefe do Estado-Maior do Exército e ao canal de comando, por favor, não nos dê nenhum comando ilegal. Todos nós estamos do lado dos estudantes comuns que iniciaram o seu movimento com uma exigência justa, estamos do lado das pessoas comuns do país.”
Muitos alegaram imediatamente que se tratava de uma invenção, mas o mesmo jornalista insistiu publicamente na veracidade da declaração e que tinha tido contato pessoal com estes oficiais de baixa patente. É totalmente plausível que esta afirmação seja real. Não há dúvida de que grupos de oficiais, mesmo em patentes superiores, encaram a situação atual com grande desconforto.
No próximo período, poderemos ver conspirações militares e um setor da classe dominante poderá de fato depositar as suas esperanças em um setor dos oficiais que agirá como um “par de mãos limpas” para tomar as rédeas do poder.
O regime de Hasina deve ser derrubado. Mas os partidos de oposição de direita e o exército estão ligados ao capitalismo e continuarão com este sistema explorador. Nenhuma confiança pode ser depositada nessa direção.
A massa de estudantes e trabalhadores deve confiar no seu próprio poder. As exigências do movimento pela queda do regime, pela punição dos criminosos responsáveis pelos assassinatos, pela proibição de grupos terroristas como a Liga Chhatra, são fundamentalmente corretas. Mas os criminosos não são apenas Hasina e a AL, mas também os órgãos armados do Estado, incluindo a polícia e o exército, e toda a classe capitalista dominante que exige “ordem” e em cujos interesses Hasina está semeando o terror.
Somente se as massas tomarem o poder com as próprias mãos é que a justiça será feita. Como isso pode ser alcançado? Através da organização: os trabalhadores e estudantes devem organizar comitês em todas as universidades, escolas e locais de trabalho, que devem estar ligados a nível municipal, distrital e nacional.
Tais comitês poderiam trazer massas cada vez mais amplas para o movimento. Poderiam proporcionar números para autodefesa, para penetrar no exército e ganhar suas bases para o lado das massas e para longe dos seus oficiais.
Consideremos isto: a classe dominante é capaz de semear o terror devido ao seu controle da produção, da indústria das telecomunicações, dos meios de comunicação social e do Estado. Com comitês de trabalhadores em todos os setores da sociedade, desde as telecomunicações à rede eléctrica e aos estúdios de comunicação social, poderíamos reunir estes esforços. E com estes mesmos comitês organizados, a classe trabalhadora poderia paralisar completamente os órgãos armados do Estado através de uma greve geral total contra o regime de Hasina.
Seria um passo para a transferência do poder diretamente para os trabalhadores e estudantes organizados em tais órgãos. Então, e só então, poderíamos garantir não só justiça, mas que a sociedade pudesse ser organizada de uma forma que garantisse a todos uma vida que valesse a pena ser vivida. Ao expropriar as principais alavancas da economia, arrancando-as das mãos dos capitalistas e colocando-as sob o controle dos trabalhadores, todos podem ter garantido um emprego digno, uma habitação digna, educação, saúde e todas as outras necessidades de uma existência digna.
TRADUÇÃO DE FABIANO LEITE.