Continuação das reflexões para ajudar a entender o que está por trás do caso do projeto da Usina de Belo Monte.
Na primeira parte, Flávio Almeida Reis levanta os problemas que põem em dúvida a legalidade e a viabilidade técnica da usina. Até sobre a capacidade de Belo Monte gerar energia com este projeto, os profissionais do Instituto de Engenharia de São Paulo disseram: “esta usina é uma vergonha para nós, engenheiros”. Diante disso, o Ministério Público suspendeu o licenciamento em fevereiro. Liminar de suspensão que foi cassada imediatamente, em 03/03, pelo Tribunal Regional Federal.
Leia a 1ª parte na íntegra aqui.
A surdez do Governo Dilma a tantas interrogações pertinentes sobre o projeto é explicada pela enorme pressão dos partidos burgueses no interior do governo e dos empresários que tanto sonham em expandir seus negócios para a Amazônia. Sem Belo Monte, fica ameaçada a modernização da infra-estrutura necessária aos corredores de exportação de minérios e produtos agropecuários. No fundo, trata-se de uma política que nos aprisiona ainda mais na condição de país agroexportador.
Publicamos na íntegra a entrevista concedida ao Instituto Humanitas Hunisinos por Ubiratan Cazetta, procurador da República no Estado do Pará e vice-presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República. Cazetta nos esclarece sobre as preocupações que levaram o MPF a suspender o licenciamento da Usina.
IHU: Como o Ministério Público Federal no Pará tem atuado diante de Belo Monte e quais as maiores dificuldades?
Ubiratan Cazetta: A atuação do MPF no caso de Belo Monte começou há mais de dez anos, sempre questionando falhas no procedimento de licenciamento e a falta de clareza nas informações sobre a obra. Vários problemas já foram atacados, mas, infelizmente, muitos deles ainda não foram respondidos, o que faz com que o projeto tenha um passivo de questões abertas, mal explicadas ou, simplesmente, desprezadas, especialmente quanto aos impactos socioambientais, atingindo as populações tradicionais (indígenas e ribeirinhos) e o custo efetivo da obra, que coloca em dúvida sua viabilidade econômica e sua adequação.
Hoje, atuamos em várias frentes distintas e concomitantes: de um lado, buscamos resolver este passivo, tentando agilizar o julgamento das várias ações, o que, em tese, pode levar a paralisar o andamento do projeto; em outra frente, mesmo entendendo que o projeto não pode ser instalado, temos acompanhado o cumprimento das obrigações impostas ao consórcio Norte Energia, para garantir que, ao menos, o pouco que se exigiu venha a ser efetivamente implementado. Considerando o alto custo da obra, cujo valor ainda não foi totalmente definido, e o volume de recursos públicos que serão injetados e as dúvidas quanto ao retorno de tal investimento, temos tentado evitar o desperdício de dinheiro público.
A grande dificuldade nesta atuação decorre da escassa estrutura técnica para análise de todos os aspectos envolvidos em uma obra da complexidade de Belo Monte (questões sociais, ambientais e financeiras, dentre outras) e da pressa com que se pretende tornar irreversível o empreendimento. Ao lado disso, discutir estes temas em um processo judicial é algo bastante difícil, porque envolve assuntos complexos e realidades dinâmicas, além da natural pressão exercida pelos diversos grupos de interesse envolvidos.
IHU: Qual a atual situação legal de Belo Monte? Já foi emitida a licença prévia para o início das obras?
Ubiratan Cazetta: O processo de licenciamento no Brasil envolve três fases. A primeira, na visão do Ibama, já foi cumprida, com a obtenção da Licença Prévia, que, em uma simplificação grosseira, significa dizer que a ideia do empreendimento já foi aprovada, mas sua execução depende do atendimento de uma série de exigências (as chamadas condicionantes). A segunda fase é a da Licença de Instalação, que permite o início das obras de construção e que somente pode ser concedida depois que todas as condicionantes tenham sido cumpridas. A terceira fase é a da chamada Licença de Operação, que envolve o momento em que, terminadas todas as obras, verifica-se se as condicionantes foram cumpridas e permite-se o início do funcionamento da hidrelétrica.
Belo Monte já tem Licença Prévia (cuja validade é objeto de discussão judicial) e, agora, conta com uma Licença de Instalação Parcial, que permite apenas as obras para a implantação do canteiro da obra. Esta licença de instalação parcial não é prevista em nenhuma lei, o que, na visão do MPF, torna ilegal que se permita o início das obras, ainda parcialmente, sem que as condicionantes tenham sido cumpridas.
IHU: Como as condicionantes de Belo Monte foram elaboradas?
Ubiratan Cazetta: As condicionantes foram estabelecidas pelo Ibama no momento da concessão da Licença Prévia e, em tese, seriam capazes de dar resposta aos diversos questionamentos que eram feitos quanto à viabilidade socioambiental da obra. No momento em que divulgadas, o Ibama e o Ministério do Meio Ambiente garantiram à sociedade brasileira que a obra seria precedida de medidas fortes, capazes de evitar os danos que, espera-se, venham a ocorrer com a construção de Belo Monte. Infelizmente, esta promessa inicial vem se mostrando muito mais teórica do que eficaz.
IHU: O senhor declarou recentemente que não houve nenhuma preparação estrutural para receber operários, máquinas e para a população que será atraída pelo empreendimento. O que deveria ter sido feito e qual o impacto da falta de infraestrutura?
Ubiratan Cazetta: Os estudos de impacto ambiental apontam que Belo Monteatrairá uma migração de, pelo menos, 100 mil pessoas para a região de Altamira e municípios vizinhos, dobrando, em pouco tempo, a população que hoje habita esta região.
De outro lado, no momento de maior criação de empregos diretos (no terceiro ou quarto ano da obra), serão oferecidos 19 mil empregos. Esta migração vai se destinar a municípios que hoje já enfrentam sérios problemas com educação, saúde, segurança pública e qualificação de mão de obra. Assim, o próprio Ibama reconhece que uma série de medidas precisa ser tomada: criar estruturas de saúde, educação e segurança pública para atender a população das cidades atingidas; capacitar mão de obra regional a fim de garantir emprego para as pessoas da região, diminuindo a pressão pela migração de trabalhadores de outras regiões; preparar a estrutura de saneamento das cidades e planejar o crescimento diante do inchaço populacional que ocorrerá em pouco tempo.
Todas estas medidas demandam investimentos altos, de que os municípios não dispõem e que a Norte Energia (dona da obra de Belo Monte) não diz como serão feitos, quem irá pagar, qual o cronograma.
Na falta destas medidas, as cidades incharão, os problemas que já existem irão piorar e o impacto social será cada dia mais difícil de ser resolvido.
IHU: O que mudou física e socialmente em Altamira a partir do anúncio da instalação do canteiro de obras de Belo Monte? Que diagnóstico o senhor faz da cidade hoje em relação ao passado?
Ubiratan Cazetta: O canteiro ainda não foi implantado, embora se anuncie o início das obras em pouco tempo. Entretanto, o simples anúncio da autorização da obra já fez com que aumentasse significativamente o fluxo de migrantes, o que teria provocado, segundo levantamentos iniciais, a chegada de oito a dez mil pessoas desde abril de 2010. Este fluxo migratório tem impacto imediato na segurança pública, na saúde, na educação, na falta de estrutura do município, criando áreas de periferia cada vez mais carentes de infraestrutura.
IHU: Há casos de prostituição em Altamira? Com as obras e o número de operários instalados na região, a prostituição se torna preocupação relevante?
Ubiratan Cazetta: O fluxo migratório que Belo Monte irá provocar terá, sim, um impacto importante (e preocupante) no aumento de diversos problemas sociais. O aumento da prostituição e das doenças sexualmente transmissíveis é um dos componentes importantes deste quadro.
IHU: Considerando que não há entendimento interno entre órgãos como Ibama, Conama, por exemplo, que órgão é o responsável legal pelo licenciamento de Belo Monte?
Ubiratan Cazetta: O licenciamento de Belo Monte é atribuição do Ibama, que deve ouvir outros órgãos em temas específicos, tais como a Funai, na questão indígena, e o Iphan na questão cultural e de patrimônio histórico.
IHU: Quando, de fato, Belo Monte poderia sair do papel?
Ubiratan Cazetta: Esta é uma das perguntas mais difíceis de serem respondidas, já que envolve diversos juízos de valor, alguns dos quais de natureza política, de políticas públicas que merecem ser decididas democraticamente, com a participação da sociedade brasileira.
Podemos, entretanto, fazer uma escala de perguntas a serem respondidas, antes de se chegar a uma conclusão.
A primeira coisa a saber é se, diante dos impactos socioambientais de Belo Monte, a obra é, de fato, a melhor opção para responder à necessidade de energia do Brasil para os próximos anos. E, para dar esta resposta, é necessário saber o que é mais eficiente: construir Belo Monte ou diminuir as perdas na transmissão de energia? Alguns estudos apontam que a redução das perdas daria um ganho equivalente a 1,5 vezes o máximo de energia que Belo Monte será capaz de produzir nos seus melhores dias, com um custo menor e sem criar novos danos. Outras opções não estudadas seriam fontes alternativas (energia eólica, por exemplo) ou a chamada repotenciação, que seria melhorar a capacidade de produzir energia das usinas já em funcionamento. A questão, então, é saber se, efetivamente, Belo Monte é a melhor opção.
Se concluirmos que Belo Monte é a melhor opção, é necessário identificar todos os impactos da obra (ambientais, sociais etc.) e definir as medidas para que estes danos não ocorram ou, se forem inevitáveis, como diminuir sua dimensão e compensar os prejuízos.
É necessário, também, fixar o custo da obra (que iniciou cotada em 9 bilhões de reais, passou para 19 bilhões, já está em mais de 25 bilhões e que, segundo alguns cálculos, pode chegar a 44 bilhões. Toda esta indefinição impede que seja feita uma decisão racional, que considere a relação custo/benefício e impeça o desperdício de dinheiro.
A própria viabilidade da obra precisa ser avaliada, pois, apesar da propaganda oficial,Belo Monte não irá produzir 11mil Mw, como se costuma anunciar. Esta capacidade máxima somente será atingida em três ou quatro meses de alguns anos, quando a vazão do rio Xingu atingir seu ponto máximo. Na média, Belo Monte deve gerar quatro mil Mw, o que é bem menos do que o discurso oficial anuncia. Este cálculo de produção efetiva ainda pode ser atingido pelas projeções de mudança climática, que apontam uma diminuição na vazão do rio Xingu.
Em resumo, é necessário ter alguma certeza sobre a viabilidade da obra, seu custos e seus impactos, antes de se iniciar a construção.
IHU: Quais os motivos que favorecem a flexibilização na legislação, nos estudos e nos relatórios de impacto ambiental no Brasil?
Ubiratan Cazetta: Há uma constante discussão entre a demora no licenciamento e a qualidade das licenças concedidas. A pressão para que as regras ambientais sejam diminuídas estão normalmente ligadas a uma falsa concepção de que o licenciamento ambiental é uma mera burocracia, que atrasa o desenvolvimento econômico do país.
O fato é que os órgãos ambientais não são fortalecidos, não tem capacidade de interferir nas políticas públicas e acabam sofrendo pressões, lícitas ou não, para liberar licenças mesmo que os estudos sejam incompletos ou as condicionantes não tenham sido cumpridas.
IHU: Qual sua avaliação das audiências públicas realizadas no Brasil, em especial as que dizem respeito a obras do porte de Belo Monte?
Ubiratan Cazetta: As audiências públicas deveriam se destinar a fornecer informações sobre a obra a todos aqueles que serão atingidos positiva ou negativamente pela obra.
Deveriam ser, em resumo, um momento democrático em que a população deveria ter direito de conhecer de que forma uma determinada obra vai atingir sua vida.
No caso de Belo Monte, entretanto, ao invés de um momento de debate público, as audiências foram vistas como mera formalidade, como um ato que deveria ser realizado apenas para dizer que ocorreram. Algumas audiências foram marcadas pela exclusão da população atingida, que, na prática, teria que se deslocar até 200 km para ir a um auditório, onde, no máximo, teriam direito a três minutos de fala. Isto pode ser tudo, menos audiência pública destinada a permitir a participação da população atingida pela obra.
IHU: Qual o espaço de reivindicação dos indígenas que vivem na região? Como eles são tratados?
Ubiratan Cazetta: A questão indígena, infelizmente, vem sendo tratada como um problema e não como uma obrigação do Estado brasileiro de respeitar a cultura e a dignidade das comunidades indígenas. Tem-se desde o desprezo à necessidade de ouvir as comunidades até o risco de cooptação de lideranças. Em resumo, as comunidades não foram ouvidas e, embora afetadas diretamente, há um discurso oficial que nega que Belo Monte seja um caso concreto de aproveitamento de recursos hídricos de áreas indígenas e, com isto, retira das comunidades boa parte do seu protagonismo.