No dia 16 de outubro nós fomos chamados pela primeira vez para eleger diretamente os juízes do Órgão Judicial e do Tribunal Constitucional. As eleições se politizaram ao extremo a ponto de converterem-se em um plebiscito sobre o governo
O que se votava?
O governo apresentava estas eleições como uma “revolução na justiça”, onde se elegeriam, pela primeira vez na história da Bolívia, os juízes do Órgão Judicial e do Tribunal Constitucional. A eleição direta dos juízes – contemplada na Constituição Política do Estado aprovada com ampla maioria em 2009 – foi o mecanismo introduzido para limpar a corrupção de um dos sistemas judiciais mais corrompidos do mundo, perante os quais há uma grande aversão e enorme desconfiança da população.
Os juízes da Bolívia eram anteriormente eleitos diretamente pelo Parlamento e permaneciam em suas funções por 10 anos, podendo, em alguns casos, serem reeleitos. Assim os juízes designados pelos partidos políticos fechavam os olhos diante dos negócios sujos dos próprios políticos, que por sua vez encobriam a corrupção no sistema judicial. Desde 2006 ocorreram 1.140 denúncias que envolveram denúncias do órgão judicial, principalmente pelo não cumprimento de deveres, prevaricação e corrupção. Enquanto um cidadão comum deve esperar até 15 anos para uma sentença civil, a maioria das ações trabalhistas é resolvida sempre a favor dos patrões, e 70% dos presos na Bolívia estão detidos sem nenhuma condenação.
Os juízes eleitos, pela primeira vez pelo voto popular, ficam no mandato de suas funções por 6 anos e não podem ser reeleitos. Os nomes de mais de 70 candidatos que os bolivianos encontraram nas cédulas do tamanho de uma toalha de mesa, foram pré selecionados pela Assembléia Legislativa Plurinacional, onde o MAS fez uma maioria de 2/3. Um dos argumentos da campanha da direita pela anulação do voto foi justamente que mediante este mecanismo de pré seleção o MAS, na realidade buscava controlar o poder judicial para lançá-lo à repressão da oposição com a proteção da corrupção no governo.
A hipocrisia da direita
Hipocritamente, como sempre, a direita invoca a democracia, quando na verdade está em jogo a “sua democracia”, ou seja, seu poder absoluto sobre o aparelho estatal em benefício das minorias privilegiadas. Entre os candidatos havia profissionais vinculados às lutas sociais, ex assessores legais da COB ou das CODes, de organizações e sindicatos camponês e indígenas. Por exemplo, o advogado Gualberto Cusi Mamani, indígena de Jesús de Machaca, que obteve a maioria de votos validos nas eleições do Tribunal Constitucional Plurinacional, que foi defensor das vítimas de Outubro 2003 no julgamento da ação de responsabilidades contra o ex Presidente Gonzalo Sánchez de Lozada. Perfis profissionais como estes são mais intoleráveis para a direita que sua suposta ou real afinidade com o governo.
No entanto, para nenhum candidato foi permitido fazer campanha eleitoral para dar a conhecer sua experiência profissional e sua trajetória social. Somente o Órgão Eleitoral Plurinacional, podia difundir ou divulgar os méritos dos candidatos. Esta restrição tinha como objetivo evitar o que ocorre em outros países, onde há juízes eleitos mediante voto popular, como em alguns Estados dos Estados Unidos, onde as grandes empresas financiam as campanhas eleitorais dos candidatos a juízes, os quais, uma vez empossados, invertem seus papéis encobrindo as violações das leis realizadas por seus patrocinadores. Sem dúvida, em um contexto social e politicamente polarizado como o que vivemos na Bolívia, esta restrição se expressou como um bumerangue que só alimentou a falta de informação e a repulsa dos eleitores.
O que muda na justiça?
O resultado eleitoral estava amplamente anunciado. Aproximadamente 60% de votos nulos e brancos que teriam triunfado nestas eleições, refletem quase fielmente o resultado das pesquisas realizadas nos meses que antecederam a jornada eleitoral, segundo as quais, 63% dos bolivianos consideravam que nada mudaria na justiça apesar da eleição direta dos juízes. O que chamamos “processo de mudança” é o produto de uma massiva mobilização popular, que se manifestou primeiramente como insurreição e logo se refletiu nas urnas, pela ausência em um determinado momento de um partido revolucionário de massa que levasse à conquista do poder. Em semelhante ambiente político e social, tem sido a convicção de que nada mudou na justiça a causa da desinformação dos eleitores e não o inverso.
Um juiz eleito é melhor que um designado pelos partidos políticos, mas sem dúvida nem o um nem outro poderá cumprir realmente com o desejo de justiça social que é a força motriz da revolução. A experiência concreta de trabalhadores e camponeses nesses anos foi a de que, apesar da direção do MAS nos Departamentos do Trabalho e INRAs departamentais, nos conflitos por terra e trabalho tem predominado a legalidade que reconhece a propriedade privada e seus direitos, contra as necessidades sociais dos despossuídos. A lei protege o grande fazendeiro que acumula legalmente latifúndios, protege o empresário que despede, simplesmente alegando necessidades da empresa; o banco que expropria o devedor que não pode pagar sua dívida. Enquanto existir o latifúndio, os bancos privados e a propriedade privada de empresas, das minas etc., a lei será sempre o oposto da justiça social.
Uma experiência já vista
O que ocorreu nas últimas eleições é algo que já vimos na história recente, em outro processo emancipatório latinoamericano similar ao nosso. A reforma constitucional na Venezuela foi derrotada no referendo de 2007 pela abstenção de 3 milhões de votantes chavistas, principalmente concentrados nos bairros populares urbanos. As linhas abaixo, escritas por Alan Woods depois do Referendo na Venezuela, são muito apropriadas para explicar o resultado das eleições judiciais na Bolívia.
“Para as massas a questão do socialismo e da revolução não é abstrata senão uma realidade muito concreta. Os trabalhadores e camponeses da Venezuela foram extremamente leais à revolução. Têm demonstrado um alto grau de maturidade revolucionária e disposição de lutar e fazer sacrifícios. Mas se a situação prolonga-se durante demasiado tempo sem uma ruptura decisiva, as massas começam a cansar-se. Começando pelas camadas mais atrasadas e inertes iniciará a desenvolver-se um ambiente de apatia e ceticismo.
Se não há nenhum final claro à vista as massas começarão a dizer: escutamos todos estes discursos antes, porém nada de fundamental tem mudou. Para que serve manifestar-se? Para que serve votar se vivemos como antes? Este é o maior dos perigos para a revolução. Quando os reacionários virem que a maré da revolução comece a baixar, então passarão à contra-ofensiva. Os elementos avançados dos trabalhadores se encontrarão ilhados. As massas já não responderão aos seus chamados. Quando chegar esse momento a contrarevolução golpeará…”
A luta eleitoral jogou um papel importante na Venezuela para unir, organizar e mobilizar as massas. Porém tem seus limites. A luta de classes não pode ser reduzida a estatísticas abstratas ou a aritméticas eleitorais. O destino de uma revolução não está determinado por leis ou constituições. As revoluções ganham-se ou perdem-se não nos despachos de advogados ou em eleições parlamentares, senão nas ruas, nas fábricas, nos povoados e bairros pobres, nas escolas e quartéis do exército. Ignorar este fato é um perigo…
O nível de abstenção que permitiu a estreita margem de vitória para a oposição é uma advertência. As massas exigem uma ação decisiva e não palavras.
O Fracasso do “voto censura”
A direita pretende dar-se a si mesma a representação única da maioria de votos nulos e brancos que saíram das urnas. Juan del Granado, Samuel Doria Medina e os expoentes da Convergência Nacional estão agora tomando a batuta e tentam aumentar as dificuldade do governo exigindo a anulação das eleições, apelando hipocritamente ao “processo de mudança” justamente com o objetivo de enganar as camadas nas quais começam amadurecer o ceticismo e a repulsa da ideia de que as coisas podem mudar.
Os apelos ao “voto de censura” com a ideia de que o governo vencendo ou sendo derrotado pudesse abrir espaço a uma radicalização do processo, teve seu efeito contrário. Tiveram um eco não nas camadas avançadas do movimento operário e camponês, senão nas camadas mais politicamente atrasadas das massas. Os últimos pronunciamentos tanto da FSTMB como da CSUTCB, que exigem renúncia de ministros e cumprimento dos 8 pontos do acordo do mês de maio passado entre a COB e o governo, manifestam um mal-estar, o que mostra que há uma quinta coluna que está manobrando para frear a luta, contra o aprofundamento do processo.
O que necessitamos agora é de toda determinação e militância. A direita está capitalizando o resultado eleitoral buscando por meio dele a sua ressurreição, como era previsível. Na condenação “democrática” do “totalitarismo” do MAS a direita encontrará novamente nas fileiras desse movimento o apoio daqueles reformistas, segundo os quais os 2/3 não são suficientes e que tem que dialogar com a oposição, escutá-la e dar-lhe espaço. Já nas semanas que antecederam as eleições escutávamos vários deputados do MAS afirmarem que podiam repetir as eleições, que podiam mudar os candidatos com base em um maior consenso parlamentar etc. Posições como estas não fazem mais que fortalecer a direita e polarizar o debate dentro do MAS.
Girar à esquerda, reatar com o socialismo!
Os votos nulos e brancos são muito heterogêneos. Neles estão refletidos o núcleo duro da oposição de direita ao governo e dos setores privilegiados da população e também o desinteresse e a desilusão de amplas camadas da população que apoiaram o MAS, o governo e ao processo. Não tendo vínculos de militância com organizações sociais ou com partidos políticos estes setores buscaram manifestar com o voto nulo sua indignação frente a uma mudança tantas vezes proclamada, mas que não acrescentou nada de concreto em suas condições de vida. Este mal-estar está sendo mais difundido inclusive na base do MAS e das organizações sociais e sindicais.
Nosso pronunciamento de condenação da repressão à marcha indígena do TIPNIS foi assumido por organizações distritais do MAS em Santa Cruz, suscitando um interessante debate entre as bases. Por outro lado escutamos, pela primeira vez, militantes de base defendendo publicamente nossa posição sobre a necessidade de nacionalizar os bancos porque “não pode ser que com gente nossa no governo os ricos de sempre ganhem mais que nunca”. A grandiosa marcha dos mineiros, camponeses e setores indígenas de 12 de outubro não foi simplesmente uma manifestação de apoio ao governo, senão uma advertência e um sinal do mal-estar entre as bases, refletida no discurso de Evo Morales que chamava a uma conferencia social para definir uma nova Agenda para avançar com o processo.
Aquela marcha e inclusive os 40% ou mais dos votos validos nestas eleições confirmam uma vez mais “as reservas de apoio que mantém a revolução e a necessidade de imprimir um radical giro à esquerda para a satisfação das demandas populares”, como escrevemos nos dias mais negros da indignação popular contra a repressão à marcha indígena em defesa do TIPNIS. Os votos perdidos na abstenção e no repúdio podem recuperar-se, inclusive a direita sabe disso e que joga para desgastar o máximo possível o governo, sem querer ainda enfrentá-lo diretamente.
O único caminho possível é romper definitivamente com as exigências impostas pelo capitalismo, dar um profundo giro à esquerda, baseado na determinação e no poder de decisão dos trabalhadores e camponeses que em todos os momentos cruciais, inclusive neste, são a força motriz da revolução, expulsando do governo e do partido toda aquela tecnocracia e burocracia pró- capitalista responsável pelo revés eleitoral. Não é possível atender as demandas sociais oriundas no processo permanecendo no marco do capitalismo.
A ilusão de democracia com o capitalismo é o que pretende o Ministro Arce que, frente às cifras vermelhas do orçamento nacional convoca a COB a aceitar a política de contenção salarial e austeridade, enquanto banqueiros privados, latifundiários, empresários e multinacionais, obtêm espetaculares lucros com a burocracia estatal se enriquecendo com a contínua corrupção.
Toda essa valentia da direita sobre o debate em relação à “legitimidade” das eleições seria varrida de um só golpe se o governo começasse a expulsar realmente às multinacionais, da exploração do petróleo e das minas, que seguem saqueando o país e ameaçando seu meio ambiente; nacionalizando os bancos, as empresas e os latifúndios sob controle dos trabalhadores e camponeses, em benefício das maiorias. Esta é a via mestre, esta é a batalha a seguir.
Fonte: O Militante (Bolivia)