Um compasso de angústia atravessa o país enquanto vai-se efetivando a troca de gestões do Governo Federal. Em fins de outubro as massas trabalhadoras impuseram uma derrota eleitoral ao bolsonarismo, mas esse tem se expressado nas ruas e tomado a iniciativa em vários lugares. Nesse meio tempo, Lula se dedica a preparar um governo e uma política capaz de conciliar capital e trabalho dentro dos marcos do Estado. Estamos diante de um transe, no qual ocorre um rearranjo de forças sociais e políticas que comporão o cenário da luta de classes brasileira no próximo período.
Atentados bolsonaristas
A mais recente ofensiva bolsonarista foi a tentativa de um pequeno grupo tomar a sede da Polícia Federal em Brasília, nesta segunda-feira (12/12), seguida de ataques a carros e ônibus pela cidade. Essa escalada de atividades foi preparada com os atos criminosos e violentos desenvolvidos há semanas em regiões de Mato Grosso, com bloqueio de vias e rodovias, queima de caminhões e intimidações e ameaças.
Pelo país, os partidários do presidente derrotado têm ainda mantido acampamentos e realizado manifestações, como em cidades de Santa Catarina, pedindo intervenção das Forças Armadas e um golpe de Estado. Essas articulações ocorrem enquanto Bolsonaro mudou de tática, adotando o silêncio, com poucas aparições públicas. Quando as faz, busca desvincular-se das manifestações, com discursos ambíguos e repletos de indiretas, como o feito a apoiadores na sexta-feira (09/12), em frente ao Palácio do Planalto.
Tais ataques e mobilizações de turbas bolsonaristas evidenciam o real estado das coisas. Querem demonstrar que continuam sendo um componente relevante no cenário político. Porém, ao invés de expressar força e resiliência, suas táticas demonstraram sua fraqueza e desintegração. Diferente de quando conseguiam mobilizar milhões nas ruas, agora estão reduzidos a um minoritário núcleo duro, militante e desesperado.
Novo governo do capital
A maioria das frações burguesas do Brasil estão buscando se desvencilhar ou em franca oposição às articulações bolsonaristas. A vitória de Lula foi recebida positivamente pelos chefes de estado imperialistas. O Governo de Transição liderado por Geraldo Alckmin conseguiu arquitetar, por meio da equipe escalada, o primeiro deslocamento de setores da classe dominante após o segundo turno para um alinhamento com o novo governo. A aprovação da PEC da Transição foi a segunda batalha levada pelo governo eleito para estabelecer a correlação de forças com que contará a partir de 1º de janeiro.
O que se prepara é a formação de um governo de união nacional que expresse muito mais do que a aliança de 12 partidos formada na eleição. Nas palavras de Lula desta terça-feira, na cerimônia de diplomação no TSE, a vitória eleitoral foi de “Uma verdadeira frente ampla contra o autoritarismo, que hoje, na transição de governo, se amplia para outras legendas, e fortalece o protagonismo de trabalhadores, empresários, artistas, intelectuais, cientistas e lideranças dos mais diversos e combativos movimentos populares deste país.”
Os primeiros cinco ministros anunciados por Lula deixam claro qual o conteúdo político dessa “frente ampla contra o autoritarismo”. Fernando Haddad já declarou na sexta que sua gestão à frente do Ministério da Fazenda será marcada pelo compromisso com o controle das contas públicas e com a construção de um ambiente propício para os investimentos no país. A Federação Brasileira de Bancos (Febraban) divulgou nota favorável a Haddad, destacando ser ele um político com compromisso com os rentistas e seus interesses.
Riqueza e pobreza
Uma diferença importante do cenário em relação a 2002 tende a dificultar os planos de Lula. Seu primeiro mandato começou e transcorreu em um momento particular de crescimento econômico internacional. No transcurso dos governos petistas, usou-se largamente o mecanismo do crédito e do endividamento do Estado para estimular a economia. Essa era a base fundamental da governabilidade que experimentou durante seus mandatos, a chamada colaboração de classes. No período de 2003 a 2010, apesar da crise de 2008-2009, foi para a burguesia um momento de satisfatória exploração dos trabalhadores.
Ao invés da globalização em expansão dos anos 2000, o modo capitalista de produção está hoje experimentando uma reversão dos capitais internacionais. Cada burguesia dominante está tentando resolver suas próprias contradições com a exportação de seus problemas econômicos e sociais para países dominados como o Brasil. A economia mundial está desacelerando cada vez mais, há uma guerra em curso dentro da Europa e até a China enfrenta índices econômicos alarmantes e enfrenta revoltas políticas dentro de casa.
A burguesia brasileira está sendo deslocada na reestruturação das cadeias globais de produção. Esse efeito não se deve apenas ao governo Bolsonaro, embora este tenha dado sua contribuição. O motor do processo é a dificuldade da burguesia em manter suas taxas de acumulação de riqueza globalmente. A burguesia brasileira, por sua submissão aos imperialistas e covardia política, tem dificuldade de aumentar a exploração sobre os trabalhadores pela via do desenvolvimento tecnológico. O que prevalece como recurso fundamental para sua manutenção é o aumento significativo da boa e velha exploração nua e crua, com redução de salários, corte de direitos e precarização dos serviços públicos.
(In)Governabilidade
Frente a uma nova situação e a um aprofundamento das contradições do regime capitalista de produção, Lula é capaz apenas de repetir suas desgastadas fórmulas políticas. Esse foi o significado da tramitação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) da Transição. Lula, sua equipe de transição e os deputados petistas empenharam-se em sua aprovação com amplo apoio para comprovar sua capacidade de governabilidade como no passado.
O custo dessa PEC, porém, vai muito além dos gastos de R$ 205 bilhões. A fatura inclui o compromisso com o pagamento da dívida, a manutenção do “teto de gastos”, a manutenção do orçamento secreto, as pendências deixadas por Bolsonaro e a reeleição dos atuais líderes do Congresso Nacional. O sentido da articulação foi demonstrar a capacidade de barganha do novo governo. O que se conseguiu, contudo, foi deixar claro que Lula e o novo governo estarão dispostos a capitular e ceder o necessário para obter o apoio dos parlamentares.
A governabilidade dos primeiros mandatos petistas entrou em crise com Dilma, em primeiro lugar devido ao declínio da economia. Já não era a colaboração de classes uma política que atendia aos interesses da burguesia e que contentava o apetite dos representantes políticos do regime. Esse problema fundamental continua sendo o problema da classe dominante brasileira. Setores políticos e econômicos que agora apoiam o novo governo também estavam com Temer e Bolsonaro quando esses aplicaram suas agendas. A significativa votação da PEC no Senado demonstra que essa será a linha dos políticos fisiológicos da burguesia, que continuarão pressionando o novo governo que os recebe de braços abertos.
Radicalismos necessários
É impossível conciliar os milhões de trabalhadores e jovens que elegeram Lula com o Congresso Nacional, os empresários, os banqueiros, os agentes do mercado financeiro e as forças de repressão. Essa política formulada por Lula para seu novo governo, de união nacional em defesa das instituições e do capital, apenas pode ter como resultado um choque do governo Lula com sua base eleitoral. E rápido. A política de paz social não cabe na agenda da sociedade capitalista em períodos de crise econômica.
A seu modo, Bolsonaro e o bolsonarismo propõem uma resposta radical para a necessidade econômica da burguesia de submeter o proletariado a condições mais degradantes de exploração. Também os trabalhadores têm, por sua vez, a necessidade urgente de resistir à exploração burguesa, seja ela apresentada pelas vias democráticas do novo governo ou pelas vias autoritárias do bolsonarismo.
As direções dos trabalhadores, contudo, propõem paz social, defesa das instituições e conciliação com a burguesia para lidar com a situação vivida pelas massas. Deixam assim o caminho livre para o bolsonarismo absorver o descontentamento que logo se formará em relação ao governo de união nacional liderado por Lula. Todo o transe da situação política nacional reside na ausência momentânea de uma representação política por onde o proletariado possa expressar uma resposta radical contra a burguesia e seus agentes.