A Rumo informou à Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) sua proposta de devolução da Malha Oeste para União. A Malha Oeste, antiga Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, foi a primeira a ser concedida à iniciativa privada em março de 1996. Essa ferrovia tem 1.625 km, cuja linha tronco vai de Bauru (SP) a Corumbá (MS) e o ramal vai de Campo Grande a Ponta Porã e está abandonado desde 1999 no Mato Grosso (MS). Em 2003 foi anexado à Malha Oeste o trecho entre Bauru e Mairinque (SP).
Essa medida já era previsível em razão do que determina a Lei Federal 13.448/17, regulamentada pelo Decreto Presidencial 9.957, promulgado em agosto de 2019. A lei alterou o marco regulatório original e permite a chamada devolução amigável e relicitação de concessões de infraestrutura.
O pedido de devolução da Malha Oeste ocorre em um momento estratégico, quando o Congresso Nacional se prepara para votar o Projeto de Lei n° 261, de 2018, de autoria do senador José Serra (PSDB). De forma diferente do regime atual de concessões, ele autoriza os “investidores” a construírem e operarem sua própria ferrovia onde julgar oportuno.
Inicialmente previsto para novas ferrovias, o projeto passou por alterações da relatoria do Senado que incluiu as atuais concessões. A intenção do relator da matéria na Comissão de Infraestrutura (CI), senador Jean Paul Prates (PT-RN), é aproveitar o debate para flexibilizar ainda o marco regulatório para as ferrovias e facilitar a vida às operadoras privadas e a seus investidores.
Mais um crime contra o povo brasileiro
Esse novo marco regulatório é mais um crime a ser praticado para atender aos interesses das grandes corporações financeiras que controlam as ferrovias. Com a inclusão das atuais concessões no PL, as concessionárias poderão devolver para a União trechos como a Malha Oeste sem nenhum investimento para recuperar o que destruíram. O retrato desse crime está espalhado por todo o país.
A Rede Ferroviária Federal S/A (RFFSA) foi incluída no Plano Nacional de Desestatização através do Decreto nº 473, de março de 1992, e o BNDES ficou responsável pela gestão do plano. O BNDES, através de licitação pública, contratou a elaboração dos estudos e avaliações preliminares, com o objetivo de estabelecer o preço mínimo e definir o modelo de concessão mais adequado.
O modelo aprovado consistiu, basicamente, na divisão da RFFSA em seis malhas, propôs a concessão da operação à iniciativa privada por um prazo de 30 anos, com arrendamento dos ativos operacionais. A concessão também estabeleceu metas para a redução de acidentes e o aumento da produção ferroviária, o que nunca foi cumprido pelas concessionárias, tão pouco cobrado pelos sucessivos governos, que transformaram a ANTT em uma agência de negócios do setor privado.
O Sindicato dos Ferroviários de Bauru e Mato Grosso – CUT denunciou a intenção da Rumo de devolver a Malha Oeste de Bauru em 08/11/2019, quando se realizou audiência pública na Câmara Municipal para discussão da renovação antecipada do contrato de concessão da Malha Paulista. Não há inocentes nesta história.
Todos os governos, de Collor até Bolsonaro, mantiveram o sistema ferroviário privatizado dentro de um modelo que destruiu qualquer possibilidade do país ter um Plano Nacional de Transporte e Mobilidade Urbana que equilibre a matriz de transporte, hoje hegemonizada pelo precário modal rodoviário, que detém o monopólio do transporte de cargas internas, o que eleva em muito o custo, principalmente dos alimentos.
A Rumo, que integra o grupo Raízen/Cosan, é a maior operadora de ferrovias do Brasil, detendo cerca de 14 mil quilômetros de ferrovias nos estados de Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, São Paulo, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Minas Gerais, Goiás e Tocantins. Dentro destes 14 mil quilômetros existem em torno de 7 mil quilômetros em operação. A metade está literalmente abandonada em vários estados do país.
O que era ruim pode piorar no sistema de transportes do país
A Rumo, que já havia sido beneficiada com a licitação de trecho da ferrovia Norte-Sul, da qual foi excluído o direito de passagem, ganha outro presente do governo: a renovação antecipada da Malha Paulista que venceria em 2029, podendo explorar o trecho até 2050. A autorização foi concedida pelo ministro Augusto Nardes, do Tribunal de Contas da União (TCU), em despacho interno proferido na noite de quarta-feira (20) para a renovação antecipada do contrato de concessão da Malha Paulista com a Rumo. É a entrega pura e simples do controle do sistema de transporte ferroviário de cargas nas mãos dos interesses privados.
Na prática, essas decisões pioram o que já era ruim, pois destroem qualquer possibilidade de termos um sistema de transporte ferroviário de cargas e passageiros, de médios e longos percursos, que atenda aos interesses estratégicos do país. O atual modelo beneficia apenas algumas poucas megaempresas concessionárias que operam trechos lucrativos, que atendem seus negócios e em lugares em que possuem carga própria.
A renovação antecipada da Malha Paulista, antiga FEPASA, é um exemplo desse processo. Os R$ 6 bilhões que a Rumo diz que investirá, se ocorrerem, serão concentrados no trecho de bitola larga da Malha Paulista e também da Ferronorte, que é o maior corredor por onde se escoa carga de grãos dos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul para o porto de Santos. A Ferronorte se conecta com a antiga Estrada de Ferro Araraquarense em Santa Fé do Sul, no estado de São Paulo.
Todos os outros dois terços dos 2 mil quilômetros da malha existentes no estado de São Paulo, que estão completamente abandonados, não estão incluídos em nenhum projeto de recuperação, como por exemplo, o trecho entre Bauru a Panorama. Esses trechos poderão ser devolvidos à União completamente sucateados.
Como as ações para o setor são muito bem articuladas para preservar os interesses privados em detrimento do interesse público, também o é o Projeto de Lei do senador José Serra (PSDB) – PLS 261/2018, que altera o marco regulatório. O resultado é o aprofundamento do desmonte do setor e a criação das condições para as operadoras privadas aplicarem um grande calote nos cofres públicos. O projeto possibilita que as operadoras simplesmente devolvam para União os mais de 11 mil quilômetros de ferrovias que elas abandonaram e sucatearam.
José Serra justifica a iniciativa afirmando que a “rodoviarização do Brasil, a partir dos anos 1960, quando se abandonou o sistema ferroviário para implantar o sistema rodoviário, levou o país ao retrocesso”. Só se esqueceu de dizer que foi no governo de Fernando Henrique Cardoso, também do PSDB, que o desmonte das ferrovias foi executado com as privatizações/concessões iniciadas em 1996 e concluídas em 1998.
As ferrovias são responsáveis por 15% das cargas transportadas no país, atendendo os corredores de exportação de grãos e minério de ferro. Se retirar o minério de ferro, esse percentual cai para 7%. Em termos de extensão de trilhos ativos, com as privatizações houve um retrocesso aos níveis de 1911. As ferrovias não transportam cargas gerais para atender o mercado interno, monopolizado pelo setor rodoviário, o que provoca deseconomias gravíssimas para o país, influindo de forma central na matriz energética baseada no petróleo e derivados, e quem paga a conta é a população.
Todas essas ações voltadas para os interesses privados das grandes corporações dos donos do capital impedem a implantação de uma Rede Ferroviária Nacional, que deveria ser o carro chefe de um novo Plano Nacional de Viação, Transportes e Mobilidade que contemplasse a intermodalidade de transportes, seja no setor de cargas ou no de transporte de passageiros e passageiros urbanos.
Ao invés de se estarem ampliando os prazos de concessões, o que deveria estar sendo feito pelo Estado é a retomada das malhas ferroviárias. Porém isso não será feito por governos submissos aos interesses do capital nem por governos da dita “esquerda reformista” que pratica a conciliação de classes. Os exemplos dos governos Lula e Dilma mostram isso com clareza.
O processo de retomada das ferrovias só poderá ser efetivado em um governo que, de fato, represente os interesses dos trabalhadores, colocando-as sob administração especial com o controle e participação dos trabalhadores. Cabe ao Estado assumir suas responsabilidades de controle, planejamento, financiamento, gestão e operação, além de proceder uma rigorosa auditoria no sistema para que a União seja ressarcida pelos prejuízos provocados por operadores privados.
Vivemos um período histórico singular para a humanidade em razão da pandemia da Covid-19, que acelera as políticas de ataques da burguesia aos trabalhadores. No Brasil, a situação é de extrema gravidade, com um governo comandado por um déspota e lacaio dos interesses da classe dominante que não hesita em se utilizar de todos os meios a seu dispor para destruir ainda mais direitos da classe trabalhadora e continuar o processo de entrega do país às grandes potências econômicas.
A luta contra essa destruição e entreguismo passa pela luta pelo Fora Bolsonaro e pela construção de um governo dos trabalhadores, sem patrões nem generais, que são as ferramentas a serem utilizadas neste momento para que a classe trabalhadora derrube muros e vá abrindo caminho para a tomada do poder, para a revolução socialista.