No ano de 2019, antes mesmo da crise deslanchada pela pandemia da COVID-19, insurreições com características revolucionárias ocorreram em diversos países[1][2]. Os atingidos pela crise, cansados de esperar soluções, confrontaram-se contra o sistema de maneira espontânea em greves e manifestações massivas. Em 2020, a pandemia precipitou uma depressão econômica gestada desde a lenta recuperação da crise de 2008, causando em poucos dias o fechamento de postos de trabalho e a falência de pequenas e médias empresas. Consequentemente, os combates nas ruas ressurgiram, assim como a necessidade de uma nova liderança.
Ninguém se pergunta mais se insurreições massivas ocorrerão novamente, mas sim quando elas irão acontecer, pois não há uma recuperação econômica importantete à vista. Sem uma saída definitiva para o sofrimento das massas e para a queda nas taxas de lucro das empresas, a burguesia impõe pouco a pouco uma guerra civil contra a classe trabalhadora, aproveitando que ela foi desarmada pelas suas direções conciliadoras.
A principal batalha economica da burguesia, batizada de “Revolução Industrial 4.0”, visa unificar os diversos Estados nacionais e burguesias locais sob o comando do imperialismo para arrancar direitos, comprimir salários, cortar empregos e sangrar os cofres públicos em proveito das grandes corporações. Tudo com apoio velado das direções sindicais traidoras, que negociam direitos em uma mesa onde se sentam do lado oposto ao trabalhador, ao lado do patrão.
Mesmo com as massas se levantando em insurreições e arrancarem conquistas importantes, parecem retroceder ao ponto que estavam, impotentes diante do poderio inimigo. Conforme o otimismo forjado nas ruas é desmontado pelo cansaço da pandemia, pela ação contrarrevolucionária das direções caducas de sindicatos e partidos reformistas – agora empenhados em aumentar sua bancada parlamentar –, e pela montanha de mortos vítimas da COVID-19, o que foi tomado pela força fica desprotegido.
As justificativas morais para a piora nas condições de vida das massas, como os cortes em direitos, salários e serviços sociais, são velhas conhecidas: é preciso diminuir o déficit fiscal, pagar a dívida “pública”, defender a competitividade das empresas nacionais no mercado mundial, e, se tudo der certo, gerar empregos e aumento de salários em um futuro de prosperidade capitalista para todos – o que convenhamos, nunca ocorreu mesmo em tempos de prosperidade, e nem mesmo nos países mais ricos do planeta.
Ora, por que mesmo com diversos levantes populares e mentiras deslavadas contadas uma atrás da outra por políticos burgueses e direções traidoras, a luta da classe trabalhadora parece se chocar contra uma muralha? Por que grandes batalhas e vitórias antecedem recuos e derrotas igualmente grandiosas?
A raiz da ausência de uma mudança definitiva na ordem das coisas está no fato de que, até agora, a parte mais decidida da classe trabalhadora, sua vanguarda, em nenhum país, conseguiu construir um partido bolchevista com influência de massas. Com cada vez menos influência, mas ainda assim dirigindo o movimento dos trabalhadores e com papel decisivo, a camada de burocratas profissionais que dirige os movimentos sindicais e sociais segue cumprindo um papel histórico nefasto.
Falar que precisamos de bolchevismo não se trata de messianismo, de dizer que há os “escolhidos”, nem defender a existência de um método ideal de organização partidária. O bolchevismo como método do centralismo democrático expandiu-se mundialmente a partir de uma experiência histórica bem-sucedida, a revolução russa. Até que se prove o contrário, ou que se apresentem alternativas vitoriosas, o método cientificamente mais avançado para organizar uma liderança capaz de levar a classe trabalhadora ao poder para transformar a sociedade de maneira radical é o bolchevismo.
Até hoje nada de novo se apresentou. As novas esquerdas seguem de traição em traição quando assumem posições importantes nos governos, como na Espanha com o Podemos e na Grécia com o Siryza. Os antigos partidos stalinistas abandonam um a um o comunismo e passam para o lado da burguesia “nacional”, resgatando pro século XXI o que de pior existiu no século IX e XX.
O conteúdo político do oportunismo e do social-chauvinismo é o mesmo: a colaboração das classes, a renúncia à ditadura do proletariado, a renúncia às ações revolucionárias, o reconhecimento sem reservas da legalidade burguesa, a falta de confiança no proletariado, a confiança na burguesia.
Lideranças do “progressismo” de esquerda ou do “socialismo democrático” formaram recentemente a “Internacional Progressista”, que em seus documentos não formulam uma linha sobre abolição da propriedade privada ou revolução proletária, defendendo apenas a abstrata e medrosa noção de “pós-capitalismo”.
Em suma, sem um corpo de oficiais – permitam-me usar a expressão militar – experimentados na luta de classes e estudados na ciência do proletariado, o marxismo, não se pode esperar vitórias duradoras apenas com diversos grupos de combatentes que explodem em fúria e vão para as ruas em lutas defensivas diversas. Primeiro, porque a classe trabalhadora dividida é fraca. Segundo, porque tanto as direções traidoras quanto as “novas” direções de esquerda só tem a oferecer confusões e ilusões.
Se o capitalismo está decrépito e as forças produtivas travadas, precisamos de um partido com militantes conscientes da necessidade de uma economia planificada, socialista, que coloque as forças produtivas atuais expandindo em seu máximo potencial. Os comunistas são os únicos que sabem que o “pós-capitalismo” só pode significar uma revolução proletária vitoriosa que saiba utilizar bem da violência contra seus inimigos.
As massas não chegarão sozinhas, ou em alguns dias ou meses de experiência prática de luta sob o capitalismo, à conclusão de que a propriedade privada dos grandes meios de produção é o principal entrave ao desenvolvimento econômico e a causa de sua miséria. Tampouco compreenderão de imediatamente que apenas um governo sustentado por assembleias populares nos locais de trabalho, moradia e estudo, ou seja, um governo revolucionário dos trabalhadores, conseguirá proteger as conquistas da reação burguesa.
Contudo, para explicar a milhares de insatisfeitos insurrectos que suas reivindicações imediatas só serão atingidas e garantidas com uma transição socialista, é preciso mais que repetir conclusões intelectuais pré-formuladas. Para construir um programa de transição que mobilize as massas para a tomada do poder são necessários trabalhadores que façam da preparação para a revolução um ofício e da revolução uma arte. Ninguém fez isso melhor que os bolcheviques, ao defenderem a concepção de um partido de revolucionários profissionais.
Quero destacar que não basta que um partido tenha milhares de profissionais “de carreira”. Para que a luta dos explorados vá até as últimas consequências, esse partido precisa ser voltado ao segmento classe trabalhadora que produz capital. Tradicionalmente, este segmento é formado pelos operários e operárias das fábricas, operadores de máquinas, mas não apenas. O central para compreendermos é que o papel ocupado pela classe operária na produção capitalista é o que mais favorece, tanto a nível de consciência quanto a nível econômico, vitórias amplas e decisivas em política.
Como assim? Pois bem, quando falamos de “classe operária”, estamos falando, primeiramente, daqueles indivíduos que operam meios de produção que lhe são alheios. Mas o fundamental é compreender o que Marx chama de “operário” em sua obra é o trabalhador que produz novos valores de uso para a sociedade, na forma de mercadorias, e mais-valor para o capitalista que o emprega. É operário produtivo o operador de máquinas clássico em uma empresa privada, mas também o professor de um grupo educacional em permanente expansão, o motorista de uma empresa de transportes rodoviários proprietária de caminhões e caçambas, um peão da construção civil, etc.
Este segmento da classe trabalhadora é central para a luta política e deve ser conquistado pelos bolcheviques porque é ele que fornece a energia vital do metabolismo social do capital. Se ele parar, o sistema enfraquece, adoece. Todos os outros trabalhadores dependem direta ou indiretamente da riqueza gerada pelos operários.
O dia-a-dia do operário é, em suma, obedecer a um plano econômico pré-estabelecido, desenvolvido por membros hierarquicamente superiores e voltado exclusivamente para maximizar os lucros capitalistas. Ganhar a classe operária produtiva para o comunismo é a chave da transformação radical.
Do ponto de vista político, um operário não tem tempo a perder, não pode se meter em aventuras, pois o que está em jogo é seu sustento e o da sua família. Uma vez deflagrada uma revolta ou uma greve, não há como voltar atrás assustado, recuar desanimado, tentar arrancar “concessõezinhas” dos patrões pedindo-lhe piedade. É como em uma guerra entre exércitos: ou a força do inimigo será destruída, ou será destruída a sua própria. A única coisa que é certa, é que caso a vitória em uma greve não seja definitiva e humilhante para o capitalista, ocorrerão perseguições, demissões e contra-ataques a curto prazo. Por isso a classe operária é a classe revolucionária por excelência, pois suas condições objetivas são as que a impulsionam mais diretamente os indivíduos para a conclusão de que é preciso uma revolução e levá-la até o final.
No fator econômico é onde a centralidade do movimento operário se faz mais evidente. As fábricas só eliminarão sua gigantesca ociosidade atual e expandirão a produção para atender as necessidades reais do povo, se os que trabalham nas maiores empresas privadas se insurgirem e se organizarem contra a administração voltada para a geração de capital. Em outras palavras, só haverá emprego, salário e bens de consumo necessários para todos, se as maiores empresas forem geridas pelos próprios trabalhadores e expandirem a produção. Por exempo, se há no Brasil pessoas com fome, sem teto, sem serviços básicos e sem emprego, é irracional que as fábricas estejam produzindo apenas com 57% da sua capacidade instalada. Para o capital, há razão em tudo isso.
Então, apesar de minoritária, a classe operária é a mais capaz de inspirar confiança e fazer avançar a passos largos a luta histórica de todos os trabalhadores em seu conjunto, arrastando atrás de si a pequena burguesia das cidades e do campo. Os intelectuais pequeno burgueses podem falar muito sobre revolução, assim como sindicalistas, estudantes e funcionários públicos, até mesmo organizar grandes assembleias e partidos políticos. A democracia burguesa dá espaços para estes: redes sociais, parlamentos, universidades. Mas quando um simples operário se organiza em um partido marxista, a burguesia treme de medo e solta todos os seus trovões.
O objetivo final dos comunistas é construir uma sociedade de economia planificada, gerida democraticamente pelos trabalhadores, sem Estado e sem classes sociais. Mas para isso, como meta intermediária, é essencial ajudar a classe operária a formar um partido político próprio que possa dirigir todo o povo para a tomada do poder político em um momento oportuno. Tomar o poder não significa aumentar gradualmente a bancada parlamentar ou eleger um novo prefeito, governador ou presidente. Esta é uma visão tão limitada que cheira traição e oportunismo.
Tomar o poder é em seu núcleo uma ação econômica, isto é, os expropriados expropriam os expropriadores: é a sociedade tomando os grandes meios de produção da mão de um punhado de parasitas que não trabalham para colocá-los sob controle popular. Mas é impossível completar essa expropriação econômica sem uma revolução política. Para proteger a revolução social é preciso transformar a máquina de esmagar povo, o Estado burguês, em máquina de esmagar capitalista, o Estado operário.
É mais comum conhecermos a história de Karl Marx por sua obra teórica. Entretanto, sua imensa capacidade abstrativa e intelectual estava voltada para a intervenção direta no movimento operário. Marx ficou conhecido pela imprensa burguesa como “Doutor Terror Vermelho”[3] não por ser um ótimo teórico ou redator de conteúdos para jornais, mas porque era o presidente do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT). A importância da sua teoria é indissociável do peso da sua intervenção na luta de classes e no movimento operário.
O trecho abaixo é parte das resoluções congressuais do Terceiro Congresso da Terceira Internacional Comunista, ocorrido em 1921 após a vitória bolchevique na Rússia.
“O Partido Comunista é, no período da revolução mundial, por sua própria essência, um Partido de ataque, um Partido de assalto a sociedade capitalista: ele tem o dever, a partir de uma luta defensiva contra a sociedade capitalista, de aprofundar essa luta, ampliá-la e transformá-la em ofensiva.” (Resoluções do 3º Congresso da Terceira Internacional Comunista)
A Terceira Internacional Comunista foi fundada para ajudar a classe trabalhadora de todo o mundo a se unificar para “assaltar a sociedade capitalista” em seus respectivos países. Se é a burguesia quem cria as fronteiras nacionais ao seu próprio interesse e tenta a todo momento dividir a classe trabalhadora, a meta da nova internacional era fundar uma república socialista soviética mundial unindo, em cada país, os trabalhadores pela chamada tática da frente única proletária.
O bolchevismo estava em seu auge, afinal, foram os bolcheviques que lideraram todo o proletariado para a vitória em outubro de 1917. A fundação da Terceira Internacional estava diretamente ligada a compreensão política de que a revolução mundial estava próxima, e começaria com a revolução na europa. Era preciso, então, preparar com o mais rápido possível partidos do tipo bolchevique.
O bolchevismo, isto é, o conjunto de teorias e tradições desenvolvidas em solo russo a partir da cisão ocorrida no Segundo Congresso do Partido Operário Social Democrata Russo (POSDR) em 1903, poder jogar um peso decisivo nos próximos acontecimentos da luta de classes internancional.
Continua para a Parte 2: “Da polêmica nasce o bolchevismo: partido de toda a classe trabalhadora ou partido de vanguarda?”
Em breve…
[1] https://www.marxist.com/revolution-in-latin-america-lessons-of-the-red-october.htm
[2] https://www.marxismo.org.br/revolucao-e-contrarrevolucao-se-enfrentam-no-mundo/
[3] Musto, Marcello. Trabalhadores, uni-vos! Antologia Política da Primeira Internacional. São Paulo: Boitempo, 2014.