Neste artigo, o camarada Daniel Morley faz uma análise marxista do documentário produzido e exibido pela BBC sobre a Teoria do Caos e relaciona suas conclusões com a atual do crise do capitalismo.
Um novo documentário produzido pela BBC, chamado “A Vida Secreta do Caos”, tentou, com algum sucesso, revelar como os últimos desenvolvimentos na ciência através da “teoria do caos” estão finalmente começando a tornar redundante qualquer explicação religiosa do funcionamento do universo e do surgimento da vida inteligente.
Isto acontece ao se revelar a necessária inter-relação entre ordem e caos em todos os níveis em questão. De fato, a compreensão, ou a “filosofia” subjacente a isto, será familiar aos marxistas como se fosse um espelho da extensão do método marxista, a filosofia do materialismo dialético, que tenta entender o movimento e o desenvolvimento da sociedade através de vários princípios tais como a inter-relação de opostos (daqui a relação entre ordem e caos) e o dinâmico e incessante desenvolvimento do fenômeno, como um sistema complexo baseado em incontáveis interações.
Este fascinante documentário começa com o apresentador, o professor Jim Al-Khalili, descrevendo o enigma de como o corpo humano, responsável por tantas coisas, é em 99% composto somente por ar, água, carvão e giz, com minúsculos traços de ferro, zinco, fósforo e enxofre em complementação. De fato, se decompormos todos os elementos em cada um de nós, tudo junto vale apenas alguns moedas de reais. Em outras palavras, somos muito mais que a soma das partes que nos constituem, algo que o pensamento mecânico, que trata os objetos como átomos que existem essencialmente de forma independente uns dos outros, não pode compreender.
Em seguida, passa-se ao exemplo do trabalho matemático de Alan Turing na explicação da misteriosa “auto-organização”, testemunhada, por exemplo, quando, aparentemente, objetos homogêneos, como o pacote de células idênticas criadas depois da fertilização (conhecida como mórula [fase do crescimento embrionário, NT]), subitamente se diferenciam em tipos diferentes de células.
Como pode acontecer isto? Como é que – na linguagem de Hegel, o precursor filosófico de Marx – temos a diferença através da unidade? Turing estabeleceu a hipótese de que diferentes substâncias químicas, ao se infiltrarem através de um organismo, podem interagir com as células para fazer com que elas se diferenciem e se comportem de maneiras diferentes.
O processo
Curiosamente, na explicação disto, o programa nos informa que Turing comparou este processo ao da formação de dunas de areia através de um “vento constante que sopra a areia e cria todos os tipos de formas diferentes. Os grãos se auto-organizam em ondulações, ondas e dunas, embora todos os grãos sejam quase idênticos e não tenham conhecimento do que está acontecendo”. Essa técnica de comparação completamente distinta dos fenômenos naturais é importante, uma vez que as leis que estão sendo descritas coincidem com as leis do Materialismo Dialético.
No desenvolvimento de um organismo, este processo é conhecido como morfogênese. De forma crucial, como aponta o apresentador, este processo parece ser governado por certas leis e se comporta quase como se fosse pré-concebido. Embora não haja nenhum controle central, nenhuma mente orientando o processo.
Essencialmente, esta descoberta destroça a falsa e rígida dicotomia que sempre se pensou existir entre a natureza aparentemente inanimada e a mente intencional. Os filósofos burgueses sempre consideraram o mundo natural como caoticamente indiferente e sem leis, e é precisamente isto que sempre exigiu a presença de um deus ou de causas externas para definir o universo em movimento e fazê-lo respeitar as leis do jogo, que eram consideradas falsamente como fixas. Dessa forma, William Paley de forma vergonhosa inferiu a necessária existência de deus a partir da aparente ordem do universo, fazendo analogia com a óbvia concepção consciente por trás de um relógio.
Particularmente, foram os problemas causados por esta visão de mundo para explicar a possibilidade do conhecimento objetivo que levaram à descoberta por Hegel das leis dialéticas como imanentes do próprio fenômeno (isto é, advindas de seu próprio íntimo). Devido à rígida oposição, colocada por filósofos como Kant, entre a mente ordenada e unificada e o mundo objetivo natural, tido como caótico e aleatório, chegou-se à impossibilidade de explicar a relação entre as ideias e os objetos aos quais elas supostamente dariam ordem e sentido.
Com efeito, ao considerar este problema, Schelling, que foi colega de quarto na Universidade e precursor filosófico de Hegel, brilhantemente antecipou a evolução e a idéia de auto-organização dentro do mundo natural (isto é, independente da consciência) trezentos anos antes deste documentário ser realizado: “Há uma velha ilusão que diz que a organização e a vida são inexplicáveis através dos princípios naturais… seria pelo menos um passo em direção a esta explicação [da organização natural] se fosse possível mostrar que a sucessão de todos os seres orgânicos tivesse acontecido através da gradual evolução de um só e mesmo organismo”.
Em outras palavras, é a evolução ou o desenvolvimento da própria natureza, resultante da interação constante e extremamente complexa de seus diferentes aspectos, que nos permite falar de regularidades discerníveis e de previsíveis leis gerais aplicáveis a todo o espectro, como os que regulam a morfogênese e a formação de dunas de areia. Aqui vemos outro princípio dialético em jogo – a unidade de opostos, o surgimento da simplicidade através da complexidade e vice-versa.
Imprevisibilidade
Em seguida, o programa aprofunda-se na questão da imprevisibilidade existente dentro de todos os sistemas (incluindo a sociedade humana). O apresentador explica-nos o problema que o pensamento mecanicista, a visão de mundo newtoniana, enfrenta para lidar com a imprevisibilidade e a mudança com as quais os cientistas são confrontados. Aqui ele se utiliza de um interessante exemplo, de um planetário mecânico, o orary (um modelo mecânico do sistema solar onde o operador gira uma roda, que, por sua vez, opera com diferentes engrenagens, movendo modelos dos planetas de forma similar à que os planetas se movem realmente), para retratar essa visão de mundo ultrapassada.
O universo, como o orary, é visto como um sistema completo formado de partes fixas que sempre agem umas sobre as outras da mesma forma. Contudo, há um problema: é que em tempo suficiente e determinado, os verdadeiros corpos celestes não agem uns sobre os outros da mesma forma que antes. A redundância deste método é vista claramente no orary, que na verdade pode somente ser posto em operação por uma força externa – a mão humana – e que requer um complexo sistema de engrenagens que definitivamente não se encontram presentes no verdadeiro sistema solar. Similarmente, a visão tradicional do universo como obedecendo a padrões fixos de comportamento sempre requer um estímulo externo – um deus – para colocá-lo em movimento. Como se explica no programa, este modelo finalmente colapsou quando se revelou incapaz de produzir resultados quando foi usado para prever complexos sistemas como as condições atmosféricas.
O programa tenta conciliar esta complexidade e imprevisibilidade à aparente ordem e regularidade descritas anteriormente. Naturalmente, como já dissemos, não há total imprevisibilidade na natureza. Tudo ocorre dentro de condições definidas, como, por exemplo, a aparente interação aleatória entre cada grão de areia e a única rajada de vento que contribui para a formação de uma duna, na verdade, ocorre dentro de limites definidos, com cada grão sendo necessariamente condicionado pelos milhões de outros grãos em torno dele. Daí resulta a mais ou menos previsível formação de uma duna de areia. A questão é que podemos prever o aspecto geral das dunas de areia, embora não exatamente as características exatas de cada uma individualmente. Este princípio é inconscientemente utilizado por todos; de fato, não poderíamos sobreviver sem ele. Por exemplo: como poderíamos reconhecer cada ser humano como único e, ainda assim, como um ser humano definitivamente semelhante a outros, sem esse princípio? Todos nós sabemos que cada impressão digital é única e, ainda assim, todas as impressões digitais parecem ser ao nosso olhar mais ou menos a mesma.
O programa descreve como as diferenças infinitesimais nos sistemas meteorológicos podem produzir mudanças enormes no resultado por meio de um efeito de retorno – cada minuto de diferença no resultado é realimentado de volta ao sistema como entrada, conduzindo a uma nova mudança e assim sucessivamente até que uma ruptura qualitativa é atingida e um novo estado atmosférico é produzido.
No entanto, gostaria de criticar a representação desta lei no programa, onde ela é descrita como se qualquer mudança nos minutos iniciais, tais como o famoso exemplo do bater de asas da mariposa dando origem a um furacão em outro lugar, fosse o único responsável pela alteração dramática das condições meteorológicas em geral. Na verdade, uma pequena alteração somente é capaz de ter seus efeitos preservados e desenvolvidos devido a uma complexa concatenação de circunstâncias favoráveis à mudança do clima global – em outras palavras, é a “palha que quebra as costas do camelo” [ou seja, a gota d’água, o pequeno detalhe em seguimento a uma série de eventos, que torna a situação insuportável – Nota do tradutor]. Se não colocarmos esta lei neste contexto, seria um verdadeiro mistério não termos um completo caos em todos os fenômenos em que toda e qualquer alteração de minutos constantemente levasse a alterações massivas em todo o sistema.
Idealismo
Há também uma nota detectável de idealismo filosófico (isto é, do ponto de vista de que a mente cria ou determina a questão) dos cientistas no programa, ao explicarem a imprevisibilidade dos sistemas emergentes devido às “simples regras matemáticas” que aparentemente dão início ao processo determinado, e que logo divergem enquanto pequenas discrepâncias e desvios da “norma” se transformam em grandes discrepâncias. Mas logo surge a pergunta: de onde vêm estas pequenas divergências da simples regra matemática, e de onde vem a própria regra matemática que define o sistema em movimento? Na realidade, a matemática somente generaliza mais ou menos aproximadamente o sistema infinitamente complexo e completo de causa e efeito que é a natureza.
Essa é a única maneira de se explicar como as “regras” que parecem governar a realidade tanto podem mudar e divergir quanto retornar. Curiosamente, o apresentador estabelece um sistema de realimentação em que uma câmera o filma de pé frente a uma tela que exibe, com pequeno atraso, a imagem do apresentador sendo filmado pela câmera. Devido à pequena defasagem, a imagem começa a divergir cada vez mais do original, até que surgem novos padrões completamente por conta própria, enquanto a imagem interage com diferentes versões de si mesma. Assim, os padrões que emergem são a concentração de todas as interações das imagens projetadas com atraso, enquanto o evento original está sendo filmado.
O princípio por trás disso é extremamente importante para os marxistas, porque mostra como algo decorrente de uma base definida e completamente dependente dessa base, pode, através da interação constante e da retroalimentação com sua base, desenvolver suas próprias leis e tornar-se parcialmente independente de sua base. É assim que devemos compreender, em seu sentido mais geral, as ideias humanas, a cultura, a política e a ideologia, que são dependentes da base econômica material da sociedade (e, finalmente, da natureza como um todo), mas que desenvolvem sua própria lógica que surge a partir das contradições da base material e que interage constantemente com ela. Como disse Lênin, a política é a economia concentrada.
Crise
Da mesma forma que todas as coisas naturais devem se submeter a leis e à organização, também entram em crise, se rompem e deixam de existir. Quantas estrelas tiveram que nascer somente para explodir depois. E quantos planetas que já existiram colidiram antes do desenvolvimento das condições para a vida? De forma semelhante, uma série de crises do capitalismo inevitavelmente conduzirá a classe trabalhadora à compreensão de que o sistema capitalista como um todo deve desaparecer. A tendência à auto-organização na natureza é somente a base para a consciência, que pode atingir a perfeição somente em uma sociedade libertada, uma sociedade socialista, consciente de todas as necessidades da sociedade.
Se a evolução levou à consciência, isto ocorreu apenas porque deve ter sido favorecido o seu surgimento nas condições da natureza. Da mesma forma, os marxistas podem mostrar como as condições do capitalismo e da luta de classes se tornam favoráveis, mesmo necessárias, à classe mais avançada criada pelo capitalismo, a classe trabalhadora, que tem uma teoria totalmente consciente e uma direção, encarnadas nas ideias do marxismo.
18 de maio de 2011.
Para aprofundamento neste tema, recomendamos a leitura do livro “Razão e Revolução: Filosofia Marxista e Ciência Moderna” de Alan Woods e Ted Grant.
Assista aqui ao documentário da BBC legendado em português dividido em 6 partes (duração total de 60 minutos):