A crise sanitária provocada pela pandemia da Covid-19 não afetou apenas a saúde, mas teve reverberações econômicas, sociais e políticas. Em termos genéricos, crise pode ser compreendida como o momento em que o capitalismo e o Estado burguês, mostram-se incapazes de garantir o mínimo de coesão social e, deste modo, manter o seu controle sobre o conjunto da sociedade. Em uma crise, as relações econômicas, sociais e políticas existentes já não oferecem as repostas que o conjunto dos seres humanos necessita. Abre-se assim, um período de transformações, o que exige reflexão e ação para a superação deste momento e a edificação de um novo modo de vida, de uma nova sociedade.
Abaixo são apresentados cinco apontamentos sobre diferentes dimensões da crise.
1- Apontamento econômico
A economia, em termos gerais, deve ser entendida como os seres humanos organizam a produção e a reprodução da vida. Marx, em uma célebre frase, afirmava:
“(…) se a classe operária tudo produz, a ela tudo pertence”.
Esta frase é evidentemente correta do ponto de vista genérico, porém sob o capitalismo, como o próprio Marx também assinalou, não é exatamente isto que ocorre. Basta observar alguns dados sobre a situação da burguesia e da classe trabalhadora no mundo. Segundo dados da OXFAN, 2.153 bilionários possuem mais riqueza que 4,6 bilhões de pessoas, ou cerca de 60% da população mundial. Isso significa que sob o capitalismo o que ocorre é acumulação de riqueza em um polo e de miséria em outro. Isso também pode ser observado na política econômica desenvolvida pelo governo federal diante da pandemia de coronavírus. Aos trabalhadores que formam a maioria da sociedade e são os responsáveis pela produção, o governo federal liberou um auxílio emergencial ínfimo de R$ 600,00. Um valor que não atinge aquilo que é definido pelo próprio Estado como o valor mínimo para a sobrevivência, o chamado salário mínimo.
O auxílio emergencial não atende as necessidades básicas dos trabalhadores. No mês de fevereiro, a cesta básica em São Paulo, que é a mais cara do país, atingia o valor de R$ 517, 51, conforme dados do Dieese. Este dado reflete que aos trabalhadores, em um momento em que o acesso às atividades laborais é privado, o auxílio econômico que o governo oferta mal atinge o valor da cesta básica. O governo, ao estabelecer este valor, ignora que o trabalhador contrai dívidas com água, luz, remédios, gás, combustível, telefone, internet e manutenção de sua moradia.
No outro polo, o ministro Paulo Guedes libera R$ 1,2 trilhão para os bancos com o discurso de manter a “liquidez” no mercado. A real intenção de Guedes é manter a taxa de lucro do sistema financeiro e, deste modo, ampliar ainda mais o abismo econômico e social entre burgueses e proletários. Vale lembrar que os bancos no Brasil lucraram R$ 86, 6 bilhões em 2019, com um aumento de 18,4%, conforme a Confederação Nacional das Instituições Financeiras (CNF). Este valor é superior ao PIB de dez estados brasileiros em 2017 (Acre, Alagoas, Amapá, Paraíba, Piauí, Rio Grande do Norte, Rondônia, Roraima, Sergipe e Tocantins). Este valor também é maior do que seis dos dez maiores PIBs por municípios no Brasil (Curitiba, Osasco, Porto Alegre, Manaus, Salvador e Fortaleza), conforme dados do IBGE. Os dados de 2017 foram divulgados pelo governo em 2019.
A partir destes dados podemos observar que a “saúde financeira” dos bancos e da burguesia é muito melhor do que em grande parte do território brasileiro e Guedes não pretende diminuir essa disparidade. Confirmando o que Marx dizia: “O governo do Estado moderno não é se não um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa”.
2-Apontamento político
O período da pandemia ressaltou alguns aspectos da política brasileira. Aspectos estes que, ao longo dos últimos anos, vem conduzindo o país em uma profunda crise política com grandes impactos à classe trabalhadora.
O governo Bolsonaro atinge o clímax de sua crise política dentro da crise sanitária. E esse estágio de clímax não veio à toa. A instabilidade e a tentativa de autopreservação estão sendo a tônica deste governo durante a pandemia. As últimas manobras políticas têm conduzido o governo a negociar cargos em ministérios e empresas estatais com o bloco congressista conhecido como “centrão”. Prática esta há muito tempo presente na política brasileira e com a finalidade de blindar o seu governo contra possíveis investigações de ilicitude e processos de abertura de impeachment.
O redirecionamento de verbas públicas para que grupelhos políticos obtenham seus currais eleitorais é uma prática exacerbada neste momento. Para isto, utilizam a verba de empresas estatais na realização de obras que venham a lhes render bons votos e uma possível reeleição. Neste tipo de ação política é que ocorrem casos de licitações fraudulentas concedidas às empresas que financiam as campanhas destes congressistas. O acesso a este dinheiro é obtido em projetos de arrocho salarial, destruição do sistema de seguridade social, da educação e saúde pública, entre outros. Deste modo, o Estado continua mantendo o seu caráter de bancada de negócios burgueses à custa dos direitos dos trabalhadores.
Ainda no espectro do governo federal, aparecem alguns outros traços, entre eles o autoritarismo. Isto fica evidente quando o presidente evoca a Luís XIV afirmando que ele é a Constituição e ao se pronunciar sobre a demissão de Sérgio Moro, afirmando que, como presidente, não deve consultar a ninguém sobre as mudanças a serem feitas no poder Executivo. Além do tom autoritário, Bolsonaro tenta se expressar como detentor de poder absoluto, traço este que reverbera em seus filhos que agem como se fossem donos da estrutura política do país.
João Doria (PSDB-SP) e Sérgio Moro, vendo o governo derreter, se afastam do governo Bolsonaro, endo que até recentemente eram entusiastas. Doria ao longo do pleito eleitoral, falava do “Bolsodoria” e Moro aceitou o cargo de ministro da Justiça e por ali permaneceu por, aproximadamente, um ano e meio. Período próximo à metade do governo Bolsonaro, vale ressaltar.
O governador de São Paulo aproveita o “racha” entre governos estaduais e União e se prostra como o porta-voz dos governadores em uma tentativa de angariar capital político.
Sérgio Moro segue a mesma linha de Doria, a desvinculação ao bolsonarismo. Diferentemente do governador de São Paulo, o ex-juiz da Operação Lava-Jato tem como meta manter o seu capital político de “paladino” da justiça, no Brasil. E, simplesmente, esperou uma brecha para rachar com Bolsonaro e se prostrar, novamente, como o justiceiro ao denunciar a tentativa de interferência de Bolsonaro sobre a Polícia Federal.
É preciso destacar também o papel do STF, que ao ser confrontado por setores bolsonaristas, parte para ofensiva aprofundando seu caráter bonapartista na tentativa de conter a decomposição do regime.
Estes elementos combinados com a pandemia vêm contribuindo, cada vez mais, para a o avanço da destruição dos direitos e conquistas da classe trabalhadora.
3- Destruição da previdência e as Centrais Sindicais
O principal dilema que envolve o trabalhador brasileiro nesta crise sanitária está entre parar com sua atividade laboral e não obter uma renda ou trabalhar para se manter e correr o risco de contrair a Covid-19 e contaminar os mais próximos. Este dilema não se forma à toa. É o resultado de vários anos de ataque à classe trabalhadora e a precarização que, nos últimos anos, vem assolando o proletariado brasileiro.
Para os trabalhadores, a flexibilização age de dois modos: torna precários os vínculos trabalhistas e promove o desmonte do sistema de proteção social, especialmente, o sistema previdenciário. Este último é um dos principais ataques que estão ocorrendo nos últimos anos e, a cada gestão presidencial, passa por reformulações que tem como intuito conduzir o trabalhador ao sistema de previdência privada ou ao trabalho permanente, sem perspectiva de aposentadoria. Hoje, as consequências destes ataques constantes conduzem o proletariado brasileiro a uma situação de vulnerabilidade econômica e social.
Neste ponto, o trabalhador sente-se desamparado. As centrais sindicais que, politicamente, os representam, têm se mostrado ineficazes e atuando como uma força que bloqueia as lutas. E a causa disso são as políticas conciliatórias e colaboracionistas que os sindicatos vêm desenvolvendo.
Rosa Luxemburgo, em seu livro “Reforma ou Revolução” já tecia grandes críticas ao modo conciliador como se desenvolve a ação sindical. Segundo esta militante alemã, as centrais sindicais não correspondiam a um modelo de emancipação da classe trabalhadora, pois apenas regulavam a luta entre o lucro empresarial e o quanto o trabalhador recebe por realizar este lucro (salário). Deste modo, os sindicatos não representam uma ruptura como a exploração capitalista. Em períodos de crescimento econômico, o capital tende a permitir algumas migalhas para os trabalhadores. Já em períodos de depressão não garantem benefícios, pois, o capital, para manter o seu lucro, precisa usurpá-los. E a ação sindical limita-se apenas em reduzir as perdas (e hoje nem isso), tentando entrar em conciliação com a burguesia. Utilizam a política do dito popular “vão se os anéis ficam os dedos”.
A crítica de Rosa Luxemburgo converge com o atual momento, pois o período de crise econômica vem se estendendo desde 2008 é marcado por constantes ataques aos direitos dos trabalhadores e a paralisia das direções sindicais. Apesar disso, a classe trabalhadora que não está derrotada busca lutar e se reorganizar sob um eixo de independência de classe. Um exemplo recente foi a greve nacional dos entregadores de aplicativos realizada no dia 1º de julho.
4- O aumento da informalidade
O trabalho informal vem aumentando gradativamente no Brasil. É uma consequência direta da lição anterior. São aproximadamente 40 milhões de pessoas atuando na informalidade enquanto, em torno, de 35 milhões de pessoas trabalham com registro. Portanto, a maior parte dos trabalhadores brasileiros não está amparada pela legislação trabalhista e previdenciária.
Isto implica no aumento da vulnerabilidade dos trabalhadores, pois o problema coloca o dilema entre trabalhar ou passar privações. Isto porque estes trabalhadores não possuem o auxílio de um sistema previdenciário e acabam por perder sua única fonte de renda ao abandonar suas atividades laborais.
A luta dos trabalhadores deve estar centrada na defesa de seus direitos e contra ampliação dos processos de aumento da informalidade.
5 – Manifestações de setores da extrema-direita
Em meio à essa situação, setores da extrema-direita montam um espetáculo de afronta aos trabalhadores. Por meio de manifestações que beiram a insanidade e o surrealismo, tencionam para que os trabalhadores não tenham direito a quarentena. Apesar de estarem cada vez menores e terem sofrido um revés ao se confrontarem com as manifestações organizadas pela classe trabalhadora e a juventude.
A ideia central implícita na pandemia é a de que “a burguesia paga o salário do trabalhador”. Isto demonstra toda a ignorância da burguesia brasileira, pois sabemos que o lucro que empanturra suas barrigas, é fruto do trabalho de muitos brasileiros que não possuem os meios de produção. Uma das preocupações centrais de Marx era a da alienação do trabalho, quando o fruto do trabalho humano se torna estranho ao trabalhador que é privado de usufruir aquilo que produziu por meio de sua criatividade e habilidade. A eles convém negar o aspecto central do trabalhador na produção econômica e forçar uma falsa consciência de que é o dinheiro que move a produção, quando na verdade é o trabalho.
A classe trabalhadora encontrará uma saída. Inclusive já demonstra sua disposição para lutar e buscar um eixo de independência de classe. Este fenômeno foi observado em diferentes países do mundo no final do ano passado e se manifestou de forma contundente nos recentes protestos contra o assassinato de George Floyd nos EUA. O aprofundamento da situação descrita é uma receita certa de luta de classes. A classe trabalhadora apontará o caminho que passa por derrubar Bolsonaro e construir um governo dos trabalhadores sem patrões nem generais.