No dia da consciência negra, deputados aprovam na câmara em Brasília as cotas sociais e raciais para acesso à universidade. Mas qual o real significado disso?
De Spartacus a Zumbi: A revolta dos gladiadores
Um dos primeiros sistemas econômicos que levou a humanidade a sair da barbárie foi a escravidão. Entendamos: ao invés de se matar os prisioneiros de uma guerra ou consumi-los (antropofagia, canibalismo), passa-se a escravizá-los e utilizar a sua força de trabalho para aumentar a produção. Foi desta forma que a humanidade começou a romper com seu passado (barbárie) e passou a produzir maravilhas que até hoje encantam os olhos e a imaginação da humanidade – os templos gregos, as pirâmides egípcias, os monumentos romanos.
Este sistema (escravagismo) encontrou o seu apogeu no Império Romano, provavelmente o maior império escravista que a humanidade conheceu. Roma derrotou os outros povos e estabeleceu um império que atingia praticamente toda a Europa, o norte da África, o Oriente Médio. “Todos os caminhos levam a Roma”, dizia o ditado. O que se esquece normalmente é que todas estas maravilhas, a ciência, a literatura, os poetas, as estradas e aquedutos, tudo era feito pelos escravos. A filosofia grega, a matemática, só puderam se desenvolver porque existiam os escravos para fazer o trabalho braçal.
Comentando um dia os “saudosistas” do passado, o escritor de ficção cientifica Isaac Azimov relembrava que ele nunca seria um saudosista. Os bons velhos tempos eram muito bons para os donos de escravos e ele, Azimov, descente de camponeses e estes por sua vez de escravos, nunca teria se sentido bem como escravo no passado.
Por volta do ano 100 antes de Cristo, Roma já era a potência imperial que dominava todo este mundo. E começava a sua desagregação social. Marx explicou que um sistema só deixa o mundo quando ele não pode mais desenvolver suas forças produtivas. Mas também que ele não deixa o mundo de boa vontade: é necessário enterrá-lo revolucionariamente. Em Roma, as condições de desenvolvimento tinham chegado ao seu limite. Os senadores engordavam (representantes das tribos originais) e a maioria do povo (os “plebeus” – sem contar os escravos) não tinha propriedades agrícolas com que pudessem sobreviver em tempos de paz. A luta entre patrícios e plebeus fora vencida pelos patrícios e nada levava crer em mudanças. É neste contexto que é feita a revolta de Spartacus.
O império sobrevivia a “pão e circo”. Doava-se pão (trigo) e montava-se o circo para que os pobres (plebeus) pudessem se divertir e não se revoltar. Uma das maiores diversões era a luta de gladiadores, onde os homens combatiam até a morte. Se um bom lutador perdia, às vezes era perdoado pela multidão ou pelo imperador. Mas a regra geral era matar ou morrer. Um dos melhores gladiadores, Spartacus, lidera uma rebelião e foge seguido por 30 outros.
O que era uma pequena ocorrência se torna uma rebelião em pouco tempo. Milhares de escravos fogem das propriedades agrícolas e se juntam à rebelião. As primeiras tropas romanas enviadas para combater a rebelião são derrotadas e aí aumentam os adeptos. Mais de 30 mil escravos se revoltam em toda a Itália. O Senado, de início paralisado, ordena a um dos cônsules para combater a rebelião.
Os escravos se separam. Uma parte tenta atravessar os Alpes e retornar às terras do norte, onde poderiam ser livres. Esta parte é encurralada e derrotada, sendo totalmente massacrada pelos romanos. Outra parte continua na Itália, inclusive cogitando em assaltar Roma. Nos acampamentos escravos, promovem-se luta de gladiadores – entre romanos escravizados pelos ex-escravos. Não existia uma perspectiva política de outra forma de funcionamento econômico da sociedade.
Finalmente, os romanos trazem legiões de fora do país e encurralam os escravos no sul da Itália. Eles tentam negociar com piratas da região para serem transportados para fora da Itália, mas os piratas são comprados pelos romanos. Spartacus tenta negociar uma rendição, mas o cônsul nega. Os escravos são massacrados e mais de 6.000 deles que sobreviveram são crucificados. A via Apia, principal estrada romana, enche-se de cruzes para mostrar a todos os escravos o seu destino caso se rebelem.
Roma também sofre – a república dá lugar ao império, numa série de episódios históricos que não cabe analisar neste artigo.
A escravidão moderna
Desde esta rebelião até a escravidão moderna, usada como forma de acumulação primitiva para o capitalismo nascente, existiram diversas revoltas de escravos. A única que foi vitoriosa foi a revolta do Haiti (ver artigo de Caio Dezorzi, “Parem o massacre no Haiti”). Mas uma das mais famosas foi sem dúvida a do Quilombo de Palmares, que incendeia até hoje a imaginação dos brasileiros.
A escravidão moderna era, em certo sentido, muito mais cruel e selvagem que a escravidão antiga. Enquanto que na antiguidade a escravidão era o mais comum, onde não importava a “raça” (um dos imperadores romanos foi negro, uma das dinastias egípcias era negra), o capitalismo tinha que justificar o injustificável, justificar a escravidão quando esta já não cabia no sistema econômico e foi utilizada apenas para o acúmulo inicial de riquezas do próprio capitalismo, dos capitalistas que se construíam enquanto tal. Qual a justificativa? Inicialmente, o negro e o índio não tinham “alma”, não eram “pessoas”, eram “sub-raças”, “macacos” ou quase, animais que também falavam. A igreja católica deu o seu selo a esta classificação.
Apesar da Europa estar chegando ao capitalismo, o resto do mundo encontrava-se em estágio de desenvolvimento bastante diferente. Os indígenas do Brasil, em sua maioria, encontravam-se em um estágio de “pedra polida” , sem conhecer os metais. Incas, Maias e índios da América do Norte encontravam-se em estágio mais avançado. A maioria dos negros constituíam reinos e estados com desenvolvimento comparável aos antigos impérios escravagistas.
O comércio de escravos com a África nasce então do seu maior desenvolvimento que os povos indígenas existentes na América. Aonde os capitalistas puderam – como nos Andes ou no México, escravizaram os indígenas e utilizaram a sua mão de obra para extrair minérios ou para a plantação. Aonde esta facilidade não existia, aonde os indígenas eram muito atrasados (Brasil), tinham espaço para fuga (EUA), introduziu-se a escravidão negra. Os povos europeus, particularmente os portugueses, ingleses e franceses colonizavam as fronteiras marítimas e comerciavam com os reinos negros – fornecendo mercadorias e armas para estes e recebendo escravos. Estes escravos eram então embarcados e utilizados nas plantações e minas da América do Norte, Antilhas e Brasil. A condição econômica para tal era a existência de colônias africanas e americanas, simultaneamente. Tanto é que Portugal e Inglaterra foram os maiores utilizadores desta prática.
Mas a África morreria muito mais que as “mil mortes” de que falava Lênin sobre o camponês russo transformado à força em operário. Quando o sistema de escravidão já não produzia os lucros necessários, era necessário modificar a forma de exploração, diretamente ao mercado e produção capitalistas. Enquanto a escravidão negra sob a batuta dos estados europeus inicia-se nos século XVI de forma sistemática, ampliando-se nos séculos XVII e XVIII, ela entra em declínio no inicio do século XIX e termina no seu final. Centralmente, o modo de produção capitalista torna-se dominante na Europa, a produção atinge o nível industrial (através da acumulação primitiva, da pilhagem da África e da América em beneficio da burguesia nascente européia) e o que o capitalismo precisa é de mercado – mercado para suas mercadorias, mercado onde exista a mão de obra livre para trabalhar em suas fábricas. E a África morre de novo. Após ter suas forças exauridas pela pilhagem sistemática e organização da população em forma de escravidão, agora quando a escravidão é proibida, invadem-se os reinos africanos sob a desculpa de “acabar com a escravidão”, de levar a civilização aos povos incultos. E então os negros que eram escravizados e vendidos, agoram passam a viver e morrer nas minas e plantações como “assalariados”, o “moderno escravo”.
Palmares
“efeito colateral que o seu sistema fez”
Racionais MCs
Já no século XVI, os negros no Brasil eram empregados na produção de ouro e também nas plantações de cana-de-açúcar e nos engenhos da produção de açúcar. É nesta época que um dos principais países onde o capitalismo se desenvolvia (Holanda) resolveu afrontar a potência colonial de Portugal, então unida à Espanha (cujo desenvolvimento econômico era pífio, totalmente dependente das colônias e com uma estrutura totalmente feudal no país europeu, apesar de uma grande burguesia comercial estar em desenvolvimento). Isto se traduziu nas invasões holandesas do Brasil. A principal delas se deu em Pernambuco, onde Maurício de Nassau organiza a ocupação.
Nesta época, como em todas as épocas da escravidão no Brasil, existiam fugas de escravos e, quando bem sucedidas, a fundação de aldeias aos moldes africanos, livres da escravidão portuguesa. A maioria destas aldeias era chamada de “quilombos”. Entretanto, a existência de uma ou várias destas aldeias durante a invasão holandesa permitiu uma condição sui-generis, que não se repetiria depois: as aldeias cresceram, começaram a defender-se contra os portugueses, não somente com fugas – é constante nos livros de história de Palmares se contar às vezes em que populações inteiras de aldeias fugiam para lugares mais remotos, inclusive queimando tudo que tinha sobrado – mas também com incursões para invadir engenhos, libertar escravos e “adquirir” mercadorias necessárias (para os que pensam ser este um método de pilhagem, de roubo, só justificável porque eles estavam lutando contra a escravidão, é preciso lembrar que na história da humanidade o comércio sempre esteve ligado à pirataria, às invasões e aos roubos). Palmares fazia o que fazia qualquer comerciante (os gregos eram descritos como um povo mercador, piratas quando possível), comerciavam quando necessário, roubavam quando possível.
Tradicionalmente, a maioria do comércio se fazia com tropeiros e com criadores de gado, que não empregavam mão de obra escrava e os roubos com os fazendeiros, onde a libertação de escravos coincidia com a pilhagem de bens e armas. As primeiras referências a Palmares, como um quilombo maior, datam do final do século XVI. A partir de 1630, com a invasão holandesa no nordeste o quilombo cresce de forma acelerada, inclusive porque os engenhos desorganizam-se e a guerra entre as duas potências favorece as fugas dos escravos.
Durante a ocupação holandesa, Palmares podia e utilizava-se da divisão existente entre as duas potências em guerra para aumentar a pilhagem. É dessa época, provavelmente, a construção de um verdadeiro reino (ou república, segundo alguns historiadores) com autoridade constituída sobre as diferentes aldeias da região da serra. Alguns historiadores chegam a dizer que os negros eram mais “nobres” que os índios, que se aliavam aos portugueses. Em defesa dos índios, devemos lembrar que os que não eram “aliados” ou tinham fugido para o interior ou tinham sido simplesmente massacrados. Os sobreviventes naquela região eram então inevitavelmente os “aliados”.
Um comentário – como nem os índios nem os negros deixaram qualquer história escrita, o que conhecemos é a tradução do que foi escrito pelos capitalistas (vencedores e vencidos, portugueses e holandeses). Por outro lado, há um elemento importante:
“Vale lembrar que era comum encontrar capitães-de-mato (encarregados de recapturar escravos fugidos) negros. Ou seja, nem sempre a cor da pele determinava de que lado a pessoa estava, pois, se havia brancos morando nos quilombos, também havia negros que lutavam contra os quilombolas. As relações com os índios também variavam: conforme a situação, os quilombolas tanto podiam ser aliados quanto adversários das comunidades indígenas que habitavam a região.” (Tulio Vilela)
A partir da expulsão dos holandeses (1654), o Quilombo de Palmares volta a atrair a atenção dos senhores de engenho. A esta época o quilombo crescia de importância, provavelmente já tinha um comando militar centralizado, tinha povoações com 800 ou mais habitações. Estima-se que em 1670 o quilombo tinha por volta de 20 mil pessoas. Apesar da observação de Tulio Vilela, a maioria dos negros não tinha opção: ou continuava como escravo ou fugia, geralmente na direção de Palmares. Lembremos que como quem fez a história foram os vencedores, ou seja, não existiram documentos escritos dos próprios negros contando a sua historia, os seus governantes e heróis, a maioria das observações sobre o “reino” ou a “república” de Palmares são de difícil comprovação. Dizer que lá existiam escravos porque este era o modo de produção dominante na África ou dizer que lá conviviam em harmonia negros, brancos e índios, que não existia discriminação e que lá era o reino da liberdade, são especulações. É muito provável que as condições sejam assemelhadas às aldeias africanas de onde provinha a sua cultura. É pouco provável que existissem escravos, pois isso destruiria a sua principal fonte de riqueza, a fuga de escravos que vinham se fixar em Palmares. Harmonia com brancos e índios? Difícil de dizer. É preciso lembrar que existiam poucas negras e é provável que os negros, superiores aos índios em cultura e organização, fizessem expedições para capturar mulheres (como os romanos “raptaram” as sabinas, tais coisas eram normais durante os primeiros períodos da humanidade). O mais certo, entretanto, é que as informações são distorcidas pelo espelho dos colonizadores, espelho inclusive bastante inculto e que só tinha um olhar – como capturar os escravos de volta. O único testemunho convincente é o espanto dos moradores de Recife quando da embaixada que veio negociar a paz por Ganga Zumba – descritos como negros altivos, bem vestidos com peles, bem armados, nada parecidos com os índios andrajosos ou os escravos que estavam acostumados a tratar.
As expedições contra Palmares revelavam a superioridade da cultura dos povos negros em relação aos indígenas – era mais fácil combater os indígenas que os negros. Devido a recusa dos “combatentes” da época de lutar contra Palmares (principalmente os bandeirantes), inicia-se um período de negociação. Ganga Zumba* aceita então um acordo que atendia a principal reivindicação dos senhores de engenho – a devolução dos escravos fugidos. Isto leva a uma divisão em Palmares, em que uma pequena minoria separa-se e forma uma aldeia sem escravos fugidos. As dissensões internas levam ao assassinato de Zumba e a destruição da aldeia pelos portugueses (1677-78). A resistência de Palmares continuou até 1695, quando uma ação maior – a expedição do bandeirante Domingos Jorge Velho, que contou até com canhões e milhares de homens – destruiu as principais vilas. Zumbi foi perseguido e morto. O quilombo, enquanto uma organização social que atraia escravos de todas as propriedades rurais, foi destruído. Os remanescentes e outros quilombos nunca mais atingiram o tamanho de Palmares. 200 anos se passariam até o fim oficial da escravidão.
Da “falta de alma” ao racismo científico
O século XIX abriu-se com a revolução burguesa na França (no final do sec. XVIII). No Brasil nós assistimos à revolta de Felipe dos Santos e posteriormente a Inconfidência Mineira. Nos EUA, a independência. As descobertas de Newton, os filósofos franceses, os trabalhos de Adam Smith, abriam um novo caminho em que a filosofia da igreja já não era a dominante. Era um progresso geral. Mas, esse que era o progresso, que era o mundo da “igualdade e fraternidade”, era o mundo burguês, onde a “liberdade” era, em ultima análise, a liberdade de comerciar, de vender e de comprar, onde a burguesia liberta os servos (e depois os escravos que ela mesmo tinha escravizado) para poder comerciar, comprar o seu trabalho “livre”. Na Inglaterra, na Europa, a burguesia “liberta” o homem da terra expulsando-o de suas aldeias e jogando-o em condições totalmente insalubres nas grandes cidades industriais que se abriam. Na África, para “libertar” os escravos e explorar as minas e as plantações, destroem-se os reinos negros existentes e tal qual os indígenas tinham sido massacrados na América, os negros são massacrados na África. E os que sobram passam de escravos e camponeses para as minas e as plantações, como assalariados, proletários, “escravos modernos”.
Marx escreve que a burguesia produz seus próprios coveiros, os proletários. E a burguesia depressa percebe isso. Nasce então toda uma ideologia que visa impedir a unificação do proletariado como classe, que visa impedir que o proletariado tome o poder. Qual a melhor forma de se fazer isso? Dividindo, seja religiosamente, seja em “raças”. E nasce o racismo cientifico.
Refletindo o tom vigente da época, em que se buscava “características” que identificassem os criminosos, Conan Doile, por exemplo, faz o seu famoso detetive Sherloke Holmes medir o crânio de criminosos, o seu jeito, o seu andar para poder decidir quem tinha ou não cometido um crime. Já que os homens são também animais, animais “racionais”, podemos distinguir suas “raças” como distinguimos as raças caninas, de gatos ou de cavalos. “Determinadas raças são mais inteligentes” (e constrói-se uma serie de características para mostrar isso) e outras menos (e ai busca-se mostrar que o negro é superior fisicamente ao branco, ele tem uma característica animal superior, enquanto o branco tem o intelecto superior).
Nos EUA, durante a construção das estradas de ferro “importa-se” a mão de obra da China, os “amarelos sujos” que trabalham como escravos. No mundo inteiro, o racismo é agora explicado cientificamente. Todos temos alma, todos viemos de Deus, apenas alguns foram mais dotados de cérebro, outros de músculos e outros de obediência (amarelos). Tudo bem explicado, agora é jogar brancos contra negros, negros contra amarelos e estamos todos conversados.
A lei áurea foi conquista e não dádiva
No Brasil do Sec. XIX, quando a família real volta à Europa e a independência torna-se não uma guerra, como aconteceu em todos os países da América, mas uma dádiva – “façamos antes que outros a façam” – a transição para a libertação de escravos se faz de forma homeopática, sob pressão da Inglaterra segundo os livros de história e sob a guerra sem quartel que se abre nos campos, com as fugas e construção de quilombos se tornando a norma geral. Nas cidades, uma parcela dos negros que conquistaram a alforria junta-se a uma pequena-burguesia nascente e fazem a campanha abolicionista. Enquanto alguns são “legalistas” querendo e tentando mudar a lei ou aplicar leis parciais (lei do sexagenário, lei do ventre-livre) outros partem para a ação, ajudando as fugas e a construção de quilombos. A lei das terras vem justamente para expropriar estes quilombos e para impedir que os escravos tomassem as terras.
Finalmente, quando a manutenção da escravatura se torna impossível, quando muitos dos escravos já estavam forros ou foragidos, o governo é forçado a decretar a lei áurea, a libertação de todos os escravos. A lei foi então o resultado da conquista dos negros, dos que fugiram, dos que construíram quilombos, da campanha abolicionista. E tal qual passou para a história oficial que “quem derrubou Collor foi a rede globo que mudou de lado”, enquanto que foi resultado do povo nas ruas que derrubou o governo, também passou na história que foi a pressão da Inglaterra, da burguesia industrial nascente que acabou com a escravatura. Elas existiram, mas quem se libertou foram os próprios negros.
O racismo no Brasil
O fim legal da escravatura abriu um novo capitulo na exploração capitalista no Brasil. No campo, os negros eram expulsos ou transformados em colonos. Aonde podiam, tratavam de sair das fazendas e dirigir-se às cidades, que não tinham condições de transformá-los todos em proletários e passavam a constituir o “exercito industrial de reserva” que rebaixava o custo do trabalho. Daí surgem as concentrações de negros (ex-escravos) em bolsões de pobreza ao redor das grandes cidades, dando origem às favelas de hoje.
A crise econômica que grassava no capitalismo mundial no final do sec. XIX abriu uma nova oportunidade: a imigração. Era justificada “cientificamente” pela necessidade de “embranquecimento da raça”, mas na verdade tratava-se de trazer para o Brasil o refugo que o capitalismo não conseguia absorver principalmente na Itália. Proletários e camponeses, estes expulsos de suas terras, eram atraídos com a promessa de terras que nunca receberam. Depois o conto foi repetido para os japoneses, quando as histórias de horrores dos imigrantes italianos fez secar o fluxo do final do sec. XIX e inicio do Sec. XX.
Por outro lado, esta imigração trouxe algumas modernidades que marcaram o movimento operário e a própria burguesia. Do lado do movimento operário, trouxeram o anarquismo que se torna dominante no movimento. Do lado da burguesia, um ou outro, como Matarazzo, se tornaram ricos explorando seus compatriotas. O capital fincava seus pés no Brasil, importado da Europa e dos EUA e transforma o Brasil numa nação dominada, atrasada, em que o capital não nasceu do seu movimento próprio, mas da importação, do domínio do capital estrangeiro, imperialista, sobre a sociedade, gerando os capitalistas e os burgueses “nacionais”.
No movimento operário, para se contrapor às ideologias “estrangeiras”, primeiro os anarquistas depois os “comunistas”, promulgam-se as leis que dizem que sindicatos só podem ser formados por “nacionais”, discrimina-se os italianos e japoneses em detrimento dos nacionais, majoritariamente negros. E, de outro lado, a cantilena de sempre que os negros eram inferiores, que os brancos devem dominar, etc.
Apesar disso, o racismo não conseguiu penetrar profundamente na classe operária. Os líderes de greves e de grandes sindicatos eram e são negros. Ninguém se espantou quando um mulato se tornou o Presidente do PT ou quando um negro se tornou presidente da CUT. Mas é claro que o mulato se tornando Presidente do Brasil, todos querem esquecer que ele é mulato. Um negro na presidência do Brasil não teria tanta repercussão quanto um negro na presidência dos EUA, onde o racismo foi e é parte da sociedade legal (somente em 1964, quando do movimento dos direitos civis, é que foi proibida que a investigação policial podia tomar como “indicio” e “prova” a raça da pessoa. Quarenta anos depois, sob a desculpa de combater o terrorismo, uma negra – Condolezza Rice – oriunda das “cotas raciais” nas universidades, derruba esta conquista e restabelece esta regra odiosa). Mas, ao contrário dos EUA, da África do Sul, da Alemanha nazista, de Israel, onde o racismo era legal (e ainda é sob determinados aspectos nos EUA e totalmente em Israel e na Índia) o racismo nunca foi legal no Brasil, depois da abolição da escravidão. Então, como se manifesta o racismo, como combatê-lo?
Imperialismo e racismo
No século XX, o racismo científico aprimorou suas raízes. Elevado à categoria de sistema, foi a base do Nazismo, do fascismo dirigido contra os judeus, mas também contra os ciganos, os negros e os árabes. Estudos da origem do homem, de DNA, procuravam mostrar que os negros eram inferiores, que os árabes eram inferiores. E a derrota do nazismo, ao contrário de terminar com estes “estudos”, os fez aumentar. Nos EUA toda uma literatura, toda uma ideologia, toda uma coleção de estudos e pesquisas foi feito para mostrar que a raça branca é superior, que negros, latinos, amarelos, são raças “inferiores”, menos “qualificadas”, menos “desenvolvidas”.
No Brasil estes estudos não fizeram tanto furor, mas o racismo se desenvolvia de formas bem mais “amenas”: “negro é sujo”, “negro fede”, “negro de alma branca”, “negros são legais mas eu não casaria meu (minha) filho(a) com um”. Isto no trato social, buscando separar negros e brancos. Um escritor como Machado de Assis nunca se assume enquanto negro e nunca é celebrado como negro. Se um negro sobe de vida, vamos esquecer que ele é negro e tratá-lo como branco.
O resultado social deste tipo de racismo é a desigualdade econômica, é o fato de impedir os negros de terem acesso a melhores empregos ou a postos de comando ou, quando isso acontece, pelo fato de não se declararem como negros, como mulatos, são classificados como “brancos”. Em termos gerais, a maioria da população brasileira é mestiça, de negros e brancos majoritariamente e minoritamente (mas com uma forte presença) de índios. Os estudos genéticos feitos sobre a ascendência da população mostram que mesmo nos “negros” existem ancestrais “brancos” e “índios” e nos “loiros” existem ancestrais “negros” e “índios”.
Mas, em qualquer batida policial, em qualquer hotel ou restaurante, se você é mais “moreninho”, se a cor de sua pele é mais escura, você é imediatamente tratado de forma mais brutal ou mais descuidada que um “branco”. Nas batidas policias se matam mais negros pobres que brancos pobres. Então, o racismo, assim como o “sexicismo”, o tratamento diferenciado para mulheres, existe e se nota em cada ação e em cada momento do dia a dia.
Um componente importante da revolução de 68 nos EUA, componente que já vinha do movimento contra a guerra do Vietnã, era a luta dos negros por direitos iguais. Essa luta foi vitoriosa, mas a condição social ainda era e é totalmente diferente. Negros são mais pobres. Quando o furacão Katrina atingiu New Orleans, mostrou-se a diferença – os brancos foram salvos primeiro e a TV mostrava os negros morrendo ou vagando desamparados pelas ruas inundadas. No Brasil, a maioria dos pobres é negra ou mulata.
“Dividir para melhor dominar”
O imperialismo inventou uma forma de evitar a revolta negra. De destruir os movimentos negros que tomavam o caminho em direção ao socialismo e poderiam com isso servir de vanguarda para toda a classe operária. A partir de uma das grandes empresas mundiais, de seu instrumento de pesquisa (a fundação Ford) inventou a “reparação”. Observemos que isso já é um segundo movimento da burguesia americana. Primeiro tentaram a construção da Libéria (devolver os negros para a África). Depois, durante os anos 50, a mítica África continuava a incendiar a imaginação dos negros. Quando eles assumiram a luta, quando se construiu o Partido dos Panteras Negras, então o imperialismo introduziu as drogas e a política de “reparação”. Os brancos, condoídos por terem escravizado e explorado os negros, dão aos pobres negros uma “outra chance”: cotas para universidades, cotas para melhores empregos, cotas para o serviço público. Em todos os locais, os negros continuavam discriminados, mas agora existia uma indústria e uma forma de “promovê-los”.
Revistas para negros, shampoo para negros, cosméticos especiais para negros, remédios especiais para negros, pois existem doenças que são só de negros (derivação “boazinha” da raça científica negra). E como vamos reconhecer que alguém é negro ou não para ter acesso a tudo isso? Nos EUA é fácil – basta que você tenha uma característica negra e você é negro. Mas sempre sobram outras formas. O mulato que se tornou presidente (Lula) declara num debate sobre como reconhecer um negro: “critérios científicos”. Sim, o racismo científico tem mais raízes do que sonha a nossa vã filosofia. Na UnB, torna-se também fácil – pega uma foto e vê se é negro. O caso dos dois irmãos gêmeos, um declarado negro e outro branco, destrói este critério. Sobra a auto-declaração.
E, para tal, inventa-se a carteira de identificação das raças, é elaborado um “estatuto da igualdade racial” que caracteriza todo mundo desde a infância se é branco ou negro, que exige que toda criança em escola seja branca ou negra, que “inocentemente” reproduz a mesma forma de classificação e identificação do nazismo. E se alguém se recusar? Não pode se recusar, a lei o obrigará, é a institucionalização das raças. E todos os que dizem que isto é tampar o sol com a peneira, é criar a divisão no proletariado, são taxados de aliados dos racistas. Ironia! Os que aceitam os conceitos racistas de raça, são os “puros”, os “abnegados”, os que “batalham pela nossa raça”. E os que continuam combatendo os racistas são chamados de traidores. A única saída é aquela que os “senhores brancos”, o capital imperialista descobriu “as cotas”. A única saída é dividir o proletariado e se juntar à burguesia imperialista, é se juntar à Fundação Ford.
E existiria outra saída? Poderíamos talvez sugerir algumas:
• Que tal proibir a policia de invadir casas na favela, metendo o pé na porta sem mandato judicial?
• Que tal prender por racismo o governador que defende esta ação da polícia, que “polícia tem é que confrontar, que mulher de favela quando engravida produz bandido e deveria abortar”?
• Que tal em vez de dar 150 bilhões para banqueiros e especuladores como foi feito agora, investir estes 150 bilhões na educação básica e no segundo grau?
• Que tal pegar os 150 bilhões e construir casas decentes, ruas decentes, serviço público e de saúde para a maioria da população pobre que, “coincidentemente” é negra?
Estas 4 coisas acabarão com o racismo? Não! Mas melhorarão a vida dos negros e negras pobres muito mais que qualquer cota em universidade!
Claro está que deputados, os mesmos que aprovaram todos os pacotes que garantiram os 150 bilhões para especuladores e banqueiros, estes deputados preferiram aprovar a lei das cotas. Vejamos os benefícios que isso traz para a burguesia:
• Nenhum centavo gasto, nenhum centavo da burguesia para os pobres, para os negros, para as negras.
• Novos conflitos entre os explorados, entre brancos e negros pobres.
• Cooptação de toda uma parte do movimento negro que deixa de defender “direitos iguais para todos” e passa a defender que alguns auto-declarados negros tenham acesso, enquanto a maioria continua a morrer na favela!
Resolver os verdadeiros problemas, salvar os irmãos negros e negras que morrem a cada dia nas favelas, nada disso será feito. Mas a propaganda, a divisão, isto terá sido feito. E não se gastou um centavo sequer. Isto sim, é o remédio ideal para a burguesia. E como para alguns, a cavalo dado não se olha os dentes, tudo está muito bom no quartel de Abrantes.
A nós, aos negros pobres, aos proletários, sobra o combate pelo socialismo, o combate contra o racismo, a outra face desta moeda perversa que se chama capitalismo.
* Ganga Zumba e Zumbi, por analogia, provavelmente eram títulos da hierarquia da aldeia. Em varias línguas africanas existiam títulos semelhantes, para o chefe espiritual da aldeia e para o chefe militar.