Começa a corrida eleitoral no Uruguai – O papel da Frente Ampla e a necessidade de uma alternativa comunista

Embora ainda faltem aproximadamente três trimestres para as eleições gerais de outubro, desde o início de 2024 a cena política do país esteve marcada pela disputa entre as duas principais coalizões políticas, que aspiram ganhar a presidência e controlar o parlamento.

Até o momento, as pesquisas dão uma vantagem crescente à Frente Ampla (FA) sobre a direita.

Segundo Factum, se no final de janeiro fosse realizada uma votação entre Yamandú Orsi – o pré-candidato da FA com maior perspectiva de ganhar as eleições internas – e Álvaro Delgado – provável candidato da coalizão de direita –, Orsi teria obtido 51% dos votos e Delgado, 41%. Isto representa um crescimento de 5% em comparação às pesquisas realizadas no final de 2023.

Esses números resultam absolutamente lógicos, dado o retrocesso das condições materiais da classe trabalhadora no último período. A aplicação de um plano de ajuste sistemático contra a classe trabalhadora por parte do governo Lacalle, durante três anos, reduziu a base de apoio da Coalizão Multicolor, que já era estreita por si mesma em seus inícios.

Desde o início, o eixo da política governamental consistiu em um clássico programa de ajuste reacionário: redução do déficit fiscal – que passa pela redução dos salários reais e das aposentadorias – e o reforço do poder repressivo do Estado.

A política de ajuste capitalista do governo Lacalle Pou está preparando a derrota eleitoral da direita em 2024 / Imagem: Alan Santos, PR

O centro de seu plano de ajuste, a Lei de Urgente Consideração (LUC), proposto em abril de 2020, contemplava uma abertura privatizadora na educação, a ampliação de uma maior margem de manobra à polícia em sua ação repressiva e restrições aos direitos de greve, de bloqueios e de manifestações públicas. De certa forma, a LUC tinha semelhanças importantes com o DNU de Milei, se bem que a primeira tem um caráter mais moderado, visto que surgiu em um contexto de crise econômica, de déficit fiscal e de exacerbação da luta de classes certamente menos agudo que a situação hoje existente na Argentina.

A título de exemplo, no domínio da educação, os cortes previstos na LUC e na Lei do Orçamento de 2020, contemplavam uma redução da percentagem da educação no PIB total de 3,9% a 3,49% entre os anos 2021 e 2025, que se expressaria concretamente na redução de turmas e em perdas de horas letivas, em cortes no preço das passagens estudantis e nos serviços de alimentação escolar. Na saúde, o governo apenas contemplou o aumento das contribuições a setores diretamente relacionados ao enfrentamento da pandemia, ignorando o restante do sistema de saúde. Considerando o aumento da inflação durante a pandemia, essa medida implicou, de fato, em um corte.

Assim, a política de austeridade fiscal e de cortes da Coalizão Multicolor apenas aprofundou os problemas prementes dos setores mais vulneráveis das massas trabalhadoras, que já tinham observado um declínio gradual nas suas condições de vida, no final do último governo da Frente Ampla.

Em resumo, a cifra da pobreza no Uruguai é, hoje, – em teoria – uma das mais baixas do continente, atingindo aproximadamente 10,4%. Mas, quando olhamos os números mais de perto, vemos uma realidade diferente.

Em primeiro lugar, a cifra da pobreza aumentou dois pontos percentuais em comparação com os níveis pré-pandemia, e não diminuiu desde então.

Em segundo lugar, os números da pobreza infantil aumentaram nos últimos anos. Embora a pobreza geral afete um décimo da população, a pobreza infantil mais do que duplicou – 22,5% – o que equivale a um quinto de todas as crianças com menos de 18 anos de idade.

Embora a cifra correspondente ao Uruguai seja menos da metade da dos países com os indicadores mais altos de pobreza infantil, – em Honduras é de 62% e no México, de 51%, – o Uruguai é também o único país, em todo o continente, no qual a pobreza na infância é o dobro da pobreza geral.

Da mesma forma, em termos gerais, o salário real teve um franco retrocesso desde o início da pandemia, em consequência do aumento da inflação e das políticas de austeridade fiscal. Uma análise publicada pelo PIT-CNT, a partir das análises apresentadas pelo INE em 31 de outubro de 2023, mostra que, somente no final de 2023, começou uma recuperação progressiva dos salários, no entanto, ainda se encontram abaixo dos níveis pré-pandemia. No caso específico do setor privado, essa queda dos rendimentos reais e posterior recuperação, foi ainda mais lenta.

Naturalmente, não podemos deixar fora dessa análise a infame reforma da previdência, que implica no aumento da idade de aposentadoria de 60 para entre 62 e 65 anos de idade, a depender do ramo industrial, do tipo de trabalho, das contribuições e outros fatores. Assim aconteceu com a reforma previdenciária na França e em outros países capitalistas avançados.

Como vemos, o conjunto de ataques sistemáticos do governo às condições de vida das massas trabalhadoras gerou um nível de mal-estar e descontentamento social que prepara o retorno da FA ao governo, convertendo-a em força majoritária no parlamento. A questão chave ante tal perspectiva é: com que programa e com que política se propõe a FA a dar batalha política ao ajuste da Coalizão ante sua possível volta ao executivo? Voltará ao governo para apenas manter uma política de reformas? Limitar-se-á, como o kirchnerismo na Argentina entre 2019 e 2023, a administrar a crise e a dar continuidade parcial à política de ajuste do FMI que o governo de Lacalle aplicou durante três anos? Qual será a política da FA frente a flagelos como o narcotráfico, a criminalidade e a corrupção?

Desde o seu início, o governo Lacalle esteve manchado pela corrupção, mas, em particular, nos últimos dois anos, testemunhamos uma série de escândalos que mostraram ao país, tanto a natureza corrupta do Estado capitalista, quanto a hipocrisia dos partidos de direita frente a corrupção e sua vinculação a este flagelo. Tanto o caso Astesiano, quanto as irregularidades relacionadas à investigação contra o ex-senador Penadés, e a cumplicidade patente de funcionários do governo e do Estado com o narcotraficante Sebastián Marset, mostram como a corrupção é moeda corrente do governo multicolor, porque é imanente ao sistema capitalista.

Em cada um desses casos a direção da FA e seus congressistas agiram com a diplomacia própria de quem fetichiza a democracia burguesa e o parlamentarismo. Se bem que subiram o tom na medida em que as provas contra os acusados se tornavam irrefutáveis, ou os detalhes dos atos de corrupção por si mesmos passavam a ser de domínio público, e não quiseram sair do caminho da democracia burguesa.

No caso Marset, que representou uma verdadeira crise governamental e quase institucional, implicando na renúncia de vários ministros e de outros altos funcionários do governo, a FA colocou a defesa da democracia acima de tudo. Embora os representantes da FA exigissem a renúncia dos funcionários implicados, manifestaram reiteradamente sua disposição em colaborar com o governo para sustentar a institucionalidade burguesa do país. Mas é essa mesma institucionalidade que agasalha o flagelo da corrupção e que dá base política e institucional à sua existência.

Não existe uma saída reformista à corrupção que tenha viabilidade a longo prazo. A natureza do Estado burguês é corrupta porque é parte da própria natureza do sistema capitalista. Os capitalistas utilizam a corrupção como um método para comprar e controlar os políticos no Estado e no governo, tanto os politicamente afins a seus interesses de classe, quanto os – em teoria – opostos aos interesses da burguesia, que formam parte de organizações políticas que se reivindicam de esquerda ou que têm uma base social operária, assim como origens e tradições históricas de esquerda.

Por outro lado, sempre haverá corrupção dentro do Estado enquanto os processos administrativos da vida pública, dos assuntos públicos, estiverem em poucas mãos. Por isso, os trabalhadores necessitam de um Estado operário, um Estado baseado na democracia direta, formado por delegados e delegadas, por deputados e funcionários, submetidos ao poder da assembleia da classe trabalhadora e fiscalizados pelo controle da assembleia. Um Estado no qual os assuntos públicos, aqueles que interessam a toda a nação, ou seja, que interessam ao conjunto das massas trabalhadoras, estejam sob a fiscalização das massas trabalhadoras. Para isso é necessário destruir, quebrar a maquinaria estatal existente a fim de construir uma nova legalidade e não limitar-se apenas a se apoderar dela.

Lamentavelmente, a direção da FA propõe-se a lutar contra a corrupção estatal desde as próprias instâncias da democracia burguesa e sua institucionalidade. A longo prazo, essa luta se transformará em seu oposto.

Basta recordar o caso Sendic para se entender que, dentro do aparato de Estado capitalista, qualquer quadro dirigente da FA pode degenerar sob linhas burocráticas, cometer atos de corrupção e aspirar a se converter em um burguês apropriando-se ilicitamente de fundos estatais. Sendo filho de um dos dirigentes históricos dos Tupamaros, Raúl Sendic filho, enquanto se manteve à frente de Ancap, optou por utilizar fundos estatais para o seu próprio enriquecimento. Já o próprio Mujica assinalou no passado como quadros dirigentes da FA em função pública que degeneraram nessa mesma linha.

Se as bases da FA realmente querem lutar de forma radical e revolucionária contra a corrupção, é necessário que em seu seio se coloque o debate sobre a tarefa histórica de se destruir o Estado capitalista e de se construir um Estado operário. O mais é arar no mar, é fingir mudanças que não serão mais do que maquiagens.

Um dos fatores que contribuíram para enfraquecer a base de apoio da FA durante seu último governo, pelo menos entre certos setores da população, foi o crescimento da criminalidade.

Apenas em 2018, por exemplo, a criminalidade no país mostrou um aumento de 45% em relação ao ano anterior.

A Coalizão Multicolor, é claro, assumiu o discurso da segurança como uma de suas palavras de ordem políticas, como é lugar comum na direita. Ao enfrentar esse flagelo, se orientou fundamentalmente em aumentar o papel da repressão como meio de contenção política, o que, ademais, é coerente com o contemplado em matéria de segurança na Lei de Urgente Consideração (LUC).

Embora tenha havido uma redução dos crimes violentos e da criminalidade em geral em 2019 e, depois, durante a pandemia, as cifras voltaram a subir. Em 2022, o número de homicídios contabilizados oficialmente foi de 382; em 2023, a cifra baixou apenas em 1 homicídio. Mas, além dos casos de violência doméstica e familiar, de ajustes de contas pessoais, os grandes causantes da criminalidade na sociedade capitalista são a pobreza e o narcotráfico.

A criminalidade, em geral, é um fenômeno, tal qual a corrupção, imanente ao capitalismo. Por um lado, o desemprego, o trabalho informal e a miséria, em geral, empurram um setor da classe trabalhadora e da juventude a buscar uma saída “fácil” para sua situação socioeconômica e de suas famílias no narcotráfico e na criminalidade. Por outro, a violência criminosa, a criação e o armamento de quadrilhas e máfias são meios políticos violentos que os narcotraficantes utilizam para o controle territorial na luta por mercados. Aqui, no mundo da guerra entre cartéis e narcotraficantes, tal como nas guerras imperialistas, vale a máxima de Von Clausewitz: “a guerra é a política por outros meios”.

A partir desse ponto de vista, em última instância, não é possível erradicar pela raiz a criminalidade, enquanto existir o capitalismo que a engendra. Qualquer medida reformista, mesmo que seja socialmente progressista e não sustentada unicamente na repressão estatal, será positiva, mas será apenas um paliativo.

Por outro lado, o narcotráfico, como um negócio que permite a acumulação de capital para certos setores da sociedade, encontra a conivência da burguesia financeira, que aproveita os capitais provenientes do tráfico de drogas para fazer negócios nos mercados financeiros com esse dinheiro manchado de sangue, a fim de reproduzir seus capitais.

Se os trabalhadores quiserem propinar um golpe mortal ao narcotráfico, devem lutar pela nacionalização da banca e de todo o setor financeiro sob controle operário. O narcotráfico continuará sendo um negócio muito lucrativo enquanto existir uma burguesia financeira que se beneficie dele.

Como tentamos demonstrar e explicar nas linhas anteriores, derrotar a política de ajuste e ataques contra a classe trabalhadora e superar a miséria e o empobrecimento das famílias trabalhadoras de forma definitiva, ou seja, de uma vez por todas, é uma tarefa que resultará impossível enquanto o capitalismo se mantiver de pé.

Não obstante, dito isso, esclarecemos também que nossa abordagem a esta questão não é sectária.

É indiscutível que, para centenas de milhares de trabalhadores, trabalhadoras e jovens, afastar o atual governo de direita, que vem aplicando um pacote de austeridade empobrecedor, é visto como tarefa central, bem como derrubar a contrarreforma da previdência mediante plebiscito.

Compreendemos o ódio que existe em um setor importante da classe trabalhadora contra o governo atual e sua política de ajuste e, nesse sentido, compreendemos o voto majoritário da classe trabalhadora nas próximas eleições parlamentares e presidenciais, como objetivo imediato de derrotar a direita que hoje governa o país.

Da mesma forma, apoiamos a luta de todos os trabalhadores classistas que estão coletando assinaturas para lograr a convocação do plebiscito. Ao ser realizado, apoiaríamos o voto majoritário da classe trabalhadora para invalidar a reforma da previdência do governo Lacalle.

Ambas as tarefas, ambas as batalhas, seriam passos à frente na luta política da classe trabalhadora, mas, também, serão apenas medidas parciais em uma luta a longo prazo. No caminho, devemos nos fortalecer, empregando nossos métodos de luta tradicionais como as assembleias de base, as mobilizações, a ocupação de fábricas, o bloqueio e a greve geral política.

De antemão, pode-se prever que a direção da FA governará, como já ocorreu no passado, dentro dos limites impostos pela propriedade privada dos capitalistas e o Estado burguês. Mesmo que, dentro desse quadro estreito, tentem fazer concessões favoráveis à classe trabalhadora, a longo prazo a margem financeira de manobra será cada vez mais limitada, como já assinalaram dirigentes da FA. A experiência mostra que os governos reformistas, no marco da crise capitalista, se transformam na garantia das contrarreformas e do ajuste, como vimos recentemente na Argentina, com o governo de Alberto Fernández, Cristina Fernández e Sergio Massa. Foi precisamente essa política da liderança peronista que abriu a porta para Milei.

Portanto, para derrotar a direita a partir de baixo, nós, da classe trabalhadora da juventude, devemos nos organizar para construir uma alternativa política baseada nas ideias e no programa do socialismo científico, como uma arma que nos permita construir uma força de luta política, genuinamente revolucionária, levantando a bandeira do anticapitalismo e do comunismo.

Nessa direção é necessário vincular as lutas imediatas da classe trabalhadora uruguaia a uma perspectiva de poder, de um Governo dos Trabalhadores.

Essa é, junto a outras batalhas políticas centrais desse ano, uma tarefa primordial para a classe trabalhadora no Uruguai. Construamos uma força comunista para lutar pela revolução socialista.

TRADUÇÃO DE FABIANO LEITE.