Winston Churchill, Franklin Roosevelt, e Stalin Foto: Governo dos EUA

Como e por que a revolução soviética foi traída? (parte 1)

Artigo publicado no jornal Foice&Martelo Especial nº 13, de 20 de agosto de 2020. CONFIRA A EDIÇÃO COMPLETA.

No livro “A Revolução Traída”, escrito por Leon Trotsky em 1937, pode-se encontrar a resposta a essas perguntas e muito mais. Nesse mês, em que se completam 80 anos do assassinato de um dos maiores líderes revolucionários da história por um agente estalinista, compreender essa obra crucial e entender como ela incrementou o marxismo, particularmente na análise de fenômenos completamente novos, como a degeneração da revolução de outubro e a ascensão de um regime totalitário na URSS, é um trabalho fundamental para se preservar o fio de continuidade da luta dos trabalhadores pela sua completa emancipação.

O livro foi impresso no decurso dos Processos de Moscou, uma série de julgamentos que condenou à morte, ao exílio, às duras penas ou ao ostracismo político numerosos líderes do Partido Comunista da URSS e do Exército Vermelho. Toda uma geração, ligada à revolução de 1917 e aos heroicos combates da Guerra Civil, foi exterminada após processos judiciais inquisitórios, com falsas confissões obtidas após sessões de tortura ou graves ameaças aos familiares do réu, com falsas acusações, sem provas materiais e evidências dos crimes que supostamente haviam cometidos e sem direito à ampla defesa. Um Grande Expurgo, como ficou conhecido posteriormente. Mesmo lideranças até então fiéis aliadas de Stalin não foram poupadas da fúria sanguinária dos juízes e promotores do regime.

A classe trabalhadora era informada desse verdadeiro horror pela imprensa imperialista, que tratava de caracterizar o socialismo como sinônimo de uma brutal ditadura e, assim, reforçar a propaganda a favor do capitalismo para as massas. Por outro lado, “os amigos da União Soviética” (intelectuais burgueses e pequeno-burgueses) tratavam de minimizar esses crimes frente aos avanços econômicos alcançados pela URSS ou, então, os partidos comunistas de todos os países, transformados em correia de transmissão das ordens vindas do Kremlin, tratavam de justificar essa carnificina aos olhos dos trabalhadores como algo necessário para aplacar “os inimigos internos” da pátria socialista. Aliás, os condenados eram comumente chamados de trotskistas, e toda uma campanha de caça aos “trotskistas” (reais ou fabricados) foi empreendida mundo afora. Campanha que, por fim, resultou no assassinato de Trotsky em seu exílio no México em 1940.

Ascensão da burocracia ao poder

A explicação do que estava acontecendo na URSS, duas décadas após a revolução que instalou o governo dos conselhos de operários e camponeses, não poderia vir nem do imperialismo, nem do estalinismo. Era preciso explicar à vanguarda dos trabalhadores, sob um ponto de vista genuinamente marxista, como e por que a revolução foi traída, qual a natureza do regime que estava em curso na URSS e analisar as tendências gerais desse processo, suas contradições e, afinal, para onde iria a URSS.

Trotsky mostrou que o atraso econômico, social e cultural do país herdado pelos bolcheviques foi enormemente agravado pela devastação provocada tanto pela I Guerra Mundial quanto em decorrência da necessária, mas encarniçada, guerra civil entre o reacionário Exército Branco e o revolucionário Exército Vermelho.

A esperança dos bolcheviques era que a Revolução Russa fosse a primeira de muitas revoluções vitoriosas e, portanto, o proletariado europeu viria em socorro à Rússia soviética. Essa perspectiva política se mostrou correta. No imediato pós-guerra, uma onda revolucionária tomou a Europa, como na Alemanha em 1918 e 1921, na Hungria em 1919, na Itália entre 1919 e 1920, porém essas revoluções foram derrotadas pela repressão da burguesia, pela traição dos partidos socialdemocratas e pela insuficiente organização dos partidos comunistas que estavam nascendo. Assim, a URSS se viu isolada politicamente e desolada social e economicamente.

E, em decorrência da situação de penúria das massas e da escassez de produtos, uma luta pela repartição dos bens e recursos disponíveis começou a se impor em meio à sociedade soviética. As filas por pão e outros gêneros de primeira necessidade voltaram a aparecer, e um mercado paralelo se proliferava como um câncer no tecido social. Os salários nem de perto eram suficientes. Na área rural, os camponeses pobres não tinham condições de semear a terra, já os camponeses mais abastados, chamados de kulaks, não tinham interesse em retomar suas atividades devido ao receio de confisco da produção excedente —  que tinha sido o método adotado pelo governo soviético para garantir o abastecimento das cidades e das frentes de batalha na guerra civil.

A implementação da Nova Política Econômica, a NEP, foi necessária para reativar a economia, mas reintroduziu métodos burgueses de repartição da riqueza e isso fortaleceu os kulaks, além de atravessadores e comerciantes (os homens de negócio da NEP), que se relacionavam diretamente com os administradores das fábricas nacionalizadas e demais funcionários do aparato estatal.

Portanto, inicialmente apoiados nesses elementos burgueses e pequeno-burgueses, a burocracia passa a ganhar autoridade, vantagens e benefícios em relação à média da classe operária. Além disso, com o esvaziamento dos sovietes e, sendo o partido comunista o único partido soviético, mais e mais, ele se fundia ao aparelho de Estado. E assim a burocracia estatal começou a se cristalizar e a tomar o controle dos meios de produção nacionalizados e dos destinos do país. Toda uma hierarquia de chefes e subordinados se estabeleceu no aparato do partido e do Estado, e todos tinham um interesse comum: garantir seus privilégios de casta burocrática e, quanto mais leais esses subordinados fossem aos chefes, maiores eram as chances de ascender na burocracia e conquistar mais vantagens e privilégios em relação às condições de vida e de trabalho da classe operária, e esses interesses comuns da burocracia, para serem defendidos e preservados, deveriam encontrar uma representação política. Mas antes de se estabelecer completamente como dona da situação, a burocracia estava representada de maneira difusa nas figuras de Zinoviev, Kamenev e Stalin, que formavam a troika, ou seja, um triunvirato da Comissão Executiva do PCURSS.

Porém, após uma série de ferrenhas disputas internas, os elementos revolucionários e a esquerda do partido foram sendo afastados e, assim, mais e mais poderes foram se concentrando nas mãos do chefe de toda essa burocracia: Joseph Stalin. A partir desse ponto, a burocracia não iria tolerar mais nenhum testemunho real, nenhuma ideia que pudesse ser vinculada aos acontecimentos revolucionários de 1917 ou da guerra civil, pois a história precisava ser reescrita sob a ótica da camarilha dirigente e, portanto, até mesmo figuras leais a Stalin, mas que tinham algum destaque, foram esmagadas.