O Senado promulgou em agosto a Emenda Constitucional 133, que exige 30% dos recursos eleitorais do Estado para candidaturas de negros / Imagem: Jefferson Rudy, Agência Senado

Cotas eleitorais: o racialismo na urna

As cotas raciais, ou política de “ações afirmativas”, foram formuladas pela burguesia dos Estados Unidos como uma resposta ao movimento pelos direitos civis que reivindicava a igualdade de direitos, no início dos anos 1960, unindo trabalhadores negros e brancos. Surgida sob o governo reacionário do republicano Richard Nixon (1969-72), orientado pelo secretário Arthur Fletcher, tal invenção também buscou ganhar o eleitorado negro do país. 

Assumido pela direção do movimento negro norte-americano e brasileiro, sob o idealismo do multiculturalismo que se fundamenta na divisão da humanidade em “famílias culturais-étnicas” essencialmente diferentes, esta política institucionaliza a racialização humana propagandeando-a como “compensatória” e de “reparação histórica” à população negra. No Brasil, ganhou impulso após a Conferência Contra a Xenofobia, Discriminação e Intolerância, realizada em Durban, na África do Sul, em 2001, com a delegação brasileira financiada pelo governo tucano de Fernando Henrique Cardoso.

Como comunistas, afirmamos que o Estado burguês nada compensa ou repara, pois sua essência é ser o órgão de dominação das classes dominantes contra a universalização dos serviços públicos, da riqueza e da propriedade.

Uma expressão do caráter burguês das cotas raciais são as atuais cotas eleitorais, amplamente utilizadas no teatral processo “democrático” no Brasil, em 2024. Em agosto deste ano, o Senado promulgou a Emenda Constitucional 133, que exige 30% dos recursos eleitorais do Estado para candidaturas de negros. Ao mesmo tempo, o texto perdoou as dívidas dos partidos políticos que não atenderam as determinações raciais nas eleições passadas. Uma “reparação” para inglês ver, tão irrelevante para “corrigir as desigualdades no acesso à política”, como se propõe, que quem não cumpre é perdoado e entra em um refinanciamento da dívida partidária.

Relembramos que o Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) desvia R$ 4,961 bilhões do dinheiro público aos 29 partidos. Siglas que supostamente reivindicam o comunismo e a revolução, como o PCB, PCO, PSTU e UP, recebem ao todo R$ 13,6 milhões para suas campanhas. Além de se dizerem antirracistas por assumirem a política imperialista e racialista de cotas, estas organizações também afirmam lutar contra o Estado burguês recebendo, cada um, R$ 3,4 milhões deste mesmo Estado.

Neste ninho de contradições e ações afirmativas do poder burguês, um fenômeno explode nas eleições de 2024: as mudanças de cores — e “raças” — dos candidatos. 

A ideologia das raças é a reivindicação de um gueto, a busca por uma ancestralidade, a forma que o indivíduo se define no mundo em termos raciais por supostos laços que o conectam com o passado de um povo e cultura. Essa invenção, fabricação pós-moderna, imbuída da tentativa de apagar a luta de classes, passa também a legitimar o preenchimento das cotas eleitorais. 

Assim, quase 40 mil candidatos mudaram sua autodeclaração de “raça” em quatro anos, logicamente, mudando consigo o destino do dinheiro eleitoral. Um dos principais exemplos disso é do agora “ex-branco” e atual prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), que não ironicamente justificou sua “parditização” (transformar-se pardo) com a mesma retórica racialista: “correção histórica”. Candidato do bolsonarismo na capital gaúcha, Melo assimilou rapidamente a política da “parditude”, a versão mestiça da “negritude”, nova moda do movimento negro brasileiro.

Menos rígido que os tribunais raciais universitários, palcos de ações semelhantes às feitas pelo nazismo para julgar a “raça” do “réu”, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ainda tentou restringir essas mudanças intimando os candidatos que alteraram sua autoidentificação para o presente pleito. Os intimados tiveram que confirmar a alteração ou, em caso de admissão de erro ou silêncio, não receberam os recursos destinados aos negros, no mecanismo cotista das eleições.

Mas não esqueçamos de outros casos relevantes. 

Nas eleições de 2022, o ex-prefeito de Salvador, o reacionário ACM Neto (União Brasil), também passou a se identificar como “pardo” para se conectar com o eleitorado preto da capital baiana. 

Nesse jogo de raças, há também o caminho oposto. O vice-presidente de Bolsonaro, Hamilton Mourão, foi eleito em 2018 reivindicando-se “indígena”, mas decidiu mudar de cor em 2022, tornando-se “branco”. Em 2024, os dois principais candidatos à prefeitura de Salvador, Bruno Reis (União Brasil) e Geraldo Júnior (MDB), também passam a ser “brancos”. Armado do discurso pós-moderno, o candidato do MDB afirmou que foi “reconhecido pela sociedade como um homem branco”, portanto, mudou de cor no registro eleitoral. 

Este é outro moinho racialista, determinando a “raça” alheia por como a sociedade “lê” a pessoa. Tal “leitura social” gera casos revoltantes como da trabalhadora Letícia Lacerda, ex-operadora de telemarketing, mãe que com mais de 40 anos conseguiu ingressar na universidade, sendo bolsista como única forma de permanência estudantil, mas que, em 2021, foi expulsa da faculdade de Medicina da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), faltando apenas seis meses para se formar, por não ser considerada “parda” o suficiente. Qual a justificativa do pró-reitor de Ações Afirmativas da UFSB responsável pela banca de heteroidentificação? Vejamos:

“Letícia cresceu em São Paulo, onde pode ser percebida como negra, mas o mesmo não acontece em um lugar predominantemente negro como o Sul da Bahia. A literatura sobre cotas ainda não deu conta disso devidamente. Mas nos firmamos na realidade baiana.”

Mais uma trabalhadora que ingressou na universidade por cotas, mas foi proibida de se formar, como milhares de jovens impossibilitados de acessar a educação mesmo com a falsa “compensação histórica”.

Além da busca pela “ancestralidade”, da “negritude” e da “leitura social da raça”, nós temos também a reprodução da política da “gota de sangue” para preenchimento de cotas. Embora nunca implementada no Brasil, essa ideologia foi importada por Abdias do Nascimento ainda nos anos 1940 com uma roupagem “antirracista”. Sua ideia, signatária do reacionário pan-africanismo de W.E.B. Du Bois, afirmava que “os negros brasileiros não são brasileiros, mas parte de uma nação diaspórica africana”.

Um caso desse nas eleições de 2024 aconteceu no Espírito Santo, no município de Vila Velha. Nele, o candidato a vereador Osvaldo Maturano (PRD) mudou-se de branco para indígena, especificamente do povo Puri, porque, segundo ele, conheceu melhor sua família e descobriu que seu tataravô era da referida população indígena. Logo, ele buscou sua ancestralidade, assumiu seu passado e reivindicou seu gueto pela gota de sangue. Cômico, se não fosse trágico. 

Os movimentos identitários honestos com a luta, restritos a poucos elementos, julgam que com essa rebaixada política estejam realizando um combate às opressões. Infelizmente, isso é resultado de uma profunda incompreensão da história e do próprio capitalismo. A ausência do materialismo histórico-dialético gera tamanhas confusões deturpadores da realidade e os mantém como auxiliares da burguesia em sua superexploração de negros, indígenas, mulheres e LGBTs. 

Os comunistas, por outro lado, combatem as opressões com a única forma concreta e possível de superá-las, sem tergiversar e vender ilusões. A mercantilização dos corpos e das mentes é produto do modo de produção capitalista, que, por conseguinte, deve ser soterrado.

Não serão políticas afirmativas e cotas de todas as espécies, formando uma pequena burguesia de oprimidos que “representam” os despojados, que darão fim ou irão atenuar o racismo e as demais misérias produzidas por esse regime de morte em sua fase imperialista. 

A verdadeira luta contra tais condições, tendo a concreta ação política da classe trabalhadora independente de cor ou gênero, se faz com luta organizada, unificada e revolucionária pelo pleno emprego, por 30 horas semanais de jornada de trabalho sem redução salarial, pelo fim da polícia, pela universalização de todos os serviços públicos, gratuitos e para todos. 

Não queremos cotas, queremos tudo aos trabalhadores!