O que assusta mais: o coronavírus ou a fome? Essa é a dura realidade enfrentada por milhões de pessoas no mundo e é o que tem levado a novas manifestações no Chile, mesmo em meio à necessidade de quarentena.
A onda revolucionária – que explodiu neste país e se alastrou pelo mundo em outubro e novembro de 2019 – foi momentaneamente interrompida, em parte pela falta de direção e pela traição das maiores organizações da classe trabalhadora e, em grande medida, pela chegada da Covid-19. Agora os meios de sobrevivência estão se esgotando e, no final de maio, vários bairros pobres de Santiago voltaram a se insurgir em novas lutas de barricadas nas ruas. A palavra “hambre” (fome) foi projetada em um dos principais edifícios da Plaza Italia durante um grande panelaço. Neste mesmo lugar, em outubro, lia-se “dignidad”.
Os efeitos econômicos da crise, que já existia e foi acentuada pela pandemia, deixam muitos sem ter o que comer. No Chile, um terço da população vive de trabalhos informais e nos bairros mais pobres esse número chega a 50%. Além disso, segundo dados do Banco Central, o endividamento dos lares chilenos chega a 75% da renda anual de uma família.
O governo de Sabastián Piñera, rechaçado pelas massas nas manifestações do final de 2019, anunciou algumas medidas paliativas:
- A distribuição de 2,5 milhões de cestas básicas, com um custo médio de 30 mil pesos (R$ 200) – provisões que, na melhor das hipóteses, alimentam uma família por 15 dias;
- Um subsídio de 50 mil pesos (R$ 340) a 60% das famílias mais vulneráveis e a pessoas com mais de 70 anos que recebem aposentadorias de um salário-mínimo;
- A polêmica Renda Familiar de Emergência, de 65 mil pesos (R$ 440) para cada membro do grupo familiar em maio; 55 mil pesos (R$ 370) em junho e 45 mil pesos (R$ 305) em julho.
No entanto, essas são medidas completamente insuficientes e a classe trabalhadora percebe cada vez mais que só pode contar consigo mesma. Vários bairros da Capital estão se organizando no sistema de autogestão. Como na época da ditadura, associações de moradores, clubes esportivos, grupos culturais e organizações de juventude refundaram as chamadas “ollas comunes” (panelas comuns). Eles organizam cozinhas sociais geridas pelos próprios moradores para alimentar quem precisa. Em troca de doação de comida, por exemplo, os grupos desinfetam grades, jardins, portas e maçanetas.
Enquanto isso, para Piñera, a pandemia caiu como uma luva para aumentar a repressão a qualquer tipo de manifestação. Inicialmente o governo negou o risco, mas em seguida, em 18 de março, declarou estado de emergência nacional. O conteúdo de sua declaração tinha pouco a ver com o combate à pandemia e tudo a ver com se dar poderes para levar o exército às ruas, proibindo reuniões de mais de 500 pessoas (como se o vírus não se espalhasse em aglomerações de 100 ou 20) e restringindo as liberdades democráticas.
Piñera decretou o fechamento de escolas e universidades, o controle das fronteiras e outras medidas básicas. No entanto, assim como no resto do mundo, a prioridade do governo é defender os interesses dos capitalistas. Por isso muitas fábricas permanecem em pleno funcionamento.
O escandaloso é que todos os partidos políticos, incluindo os de esquerda, assinaram um acordo com o governo para adiar o plebiscito constitucional, programado para ocorrer em abril. Esse plebiscito já havia sido o truque que o regime usou em novembro para tentar aplacar o movimento.
Obviamente, não há condições para realizar um plebiscito com a pandemia de Covid-19, mas o que se assinala aqui é que todos os partidos de esquerda legitimam as ações do governo para desmobilizar o movimento dos trabalhadores e de estudantes, em um grande clima de unidade nacional, sem mostrar nenhuma reação enquanto o povo passa fome.
No início da pandemia, em março, o Bloco Sindical da Mesa de Unidade Social (comitê de organização dos sindicatos e movimentos sociais criado durante a insurreição) publicou uma declaração em que exigia a quarentena e a interrupção de toda atividade produtiva não essencial. Também eram cobradas medidas econômicas para apoiar trabalhadores e pequenas empresas, a proibição de demissões e de cortes salariais, o controle de preços, medidas de proteção para todos os trabalhadores de setores essenciais, interrupção de hipotecas, entre outras questões.
Essas demandas são importantes, mas ainda não tocam em questões centrais, como medidas que protejam os trabalhadores informais e expropriação de todos os serviços de saúde privados.
É relevante lembrar que uma das razões para o levante de outubro foi justamente a demanda por assistência médica para todos. O sistema de saúde chileno é em grande parte privatizado, não tem leitos suficientes e está despreparado para enfrentar a Covid-19. O resultado é que, no momento em que este texto é escrito, em 21 de junho, 7.144 pessoas já morreram pelo vírus no país, que se tornou um dos focos globais da pandemia com o maior número de infecções e mortes por milhão de habitantes.
O Bloco Sindical havia prometido convocar uma greve geral caso as reivindicações não fossem atendidas, mas até o momento não obteve sucesso nisso. A verdade é que a Unidade Sindical está bastante desacreditada por não mobilizar realmente as massas de trabalhadores nem apresentar saídas concretas e revolucionárias para o Chile insurgido.
Com tudo isso, o Chile permanece sendo uma panela de pressão, com uma raiva latente do governo e do sistema, sem confiança nas antigas direções da classe trabalhadora e, agora, mais faminto do que antes. Piñera reconhece esse risco e semana passada promulgou uma lei em que endurecia ainda mais as penas aplicadas a quem descumprir o isolamento. O povo, por sua vez, percebe que essas restrições nada têm a ver com a contenção da epidemia, mas com o aumento da repressão às revoltas.
A onda revolucionária continua a rondar esse país, assim como os EUA, a França, a Grã-Bretanha, o Líbano, o Brasil… No final de 2019, o Chile inspirou revoltas em todo o globo. Agora ele seguirá influenciando e sendo influenciado pelo resto do mundo.