Foto: Carta Capital

De que lado você está, Guilherme Boulos?

Não é o objetivo deste breve artigo apresentar um balanço político do 1º turno das eleições de 2020 no Brasil ou mesmo em São Paulo. De forma geral, já fizemos isso quando publicamos esta análise: “Resultado das urnas indica derretimento do bolsonarismo e dos partidos da conciliação de classes”. E é dela que partimos agora para nos posicionar diante da disputa entre Boulos e Covas no 2º turno das eleições para a prefeitura da maior cidade do país.

Evidentemente, batalhamos pela vitória de Boulos nas urnas. Não só porque a Esquerda Marxista é uma corrente do PSOL, mas porque compreendemos que no terreno eleitoral burguês, também se expressa a luta de classes, mesmo que de maneira deformada. E é segundo essa compreensão que nos posicionamos. Sempre que a disputa se dá entre um representante da classe dominante e um representante das classes dominadas, nos posicionamos em frente única pela vitória do representante das classes exploradas (independente e apesar do programa defendido por este representante e sem abrirmos mão de fazermos toda a crítica a este programa publicamente de maneira adequada). Interessa ao desenvolvimento da consciência de classe dos explorados que façam a experiência com os representantes que reconhecem como os seus representantes de classe, e cheguem a conclusões mais avançadas.

Este método, que é o método marxista (e o método de Lênin e Trotsky), nos separa totalmente, como água e óleo, dos sectários (inclusive os autoproclamados trotskistas) que rejeitam os combates de frente única e chamam a votar nulo no 2º turno em São Paulo, sob o pretexto de que o programa de Boulos é reformista.

Mas é também essa compreensão sólida do marxismo que nos separa dos oportunistas dos mais variados matizes que, reivindicando-se marxistas, em nome de combater o reacionarismo bolsonarista, declaram seu apoio a Eduardo Paes (DEM) no Rio, a José Sarto (PDT) em Fortaleza e a outros candidatos de partidos burgueses em outras cidades. Onde quer que se enfrentem, no terreno eleitoral burguês, dois representantes da burguesia, a Esquerda Marxista vota nulo. E isso vale inclusive para os partidos burgueses que vendem uma imagem de “esquerda”, como PDT, PSB, Rede. Trata-se do limite de classe que, uma vez atravessado, não tem mais volta. Claro que é possível nos colocarmos em frente única com representações burguesas em defesa de uma bandeira específica. O fizemos pelas diretas e o fim da ditadura, por exemplo. O fazemos em defesa das liberdades democráticas. Mas não damos nosso apoio ao programa dos partidos burgueses em disputa pelo poder de Estado. Isso significaria apoiar diretamente nossa classe inimiga e ultrapassar o limite da independência de classe, tão preciosa ao combate revolucionário socialista.

Aqueles que fazem os maiores malabarismos retóricos para justificar seu apoio a Paes, no Rio, por exemplo, e arrogam-se o direito de continuar proclamando-se marxistas (e alguns até trotskistas), estão sendo cúmplices diretos e ativos dos ataques mais brutais à classe trabalhadora pelas mãos de Paes e seus correlatos, que não hesitarão em ordenar que a polícia mate, que o orçamento da saúde seja cortado, que a escola seja fechada, que os ocupantes sejam despejados e assim por diante. Quando se trata de uma escolha entre dois representantes burgueses, a linha de optar por um suposto “mal menor” só ajuda a alimentar as ilusões dos explorados em seus exploradores.

Boulos “paz e amor”

Em São Paulo, embora o PSOL tenha se apresentado sem alianças com partidos burgueses, Boulos e a direção do PSOL buscam “suavizar” o discurso e ampliar cada vez mais o seu leque de apoios no 2º turno.

Em 20/11, foi lançada a “Frente em Defesa da Democracia em São Paulo” formada por PT, PCdoB, PCB, UP, PDT e Rede. O PSB não participou da iniciativa, embora na véspera tenha decidido pelo apoio a Boulos, a contragosto de Marcio França, candidato do PSB que ficou em 3º lugar na disputa do 1º turno, que apoia Covas.

No ato de lançamento desta frente, Boulos diz:

“Este é o momento mais importante da nossa campanha até aqui. Agora no segundo turno é outro jogo. Não é mais a minha campanha com a Luiza Erundina. É a campanha de uma frente democrática por justiça social na cidade de São Paulo. (…) Eu tenho enorme orgulho de mostrar essa frente, que vai construir essa campanha com a gente na reta final e vai governar São Paulo junto com a gente, devolvendo a prefeitura para o povo”.

Assim, Boulos deixa claro a todos que pretende formar um governo de coalizão com setores da burguesia que ele considera “democráticos”. E isso não é de agora, desde bem antes do 1º turno, Boulos vem se reunindo com várias figuras do setor financeiro buscando construir pontes. Uma matéria do jornal Folha de São Paulo publicada em 24/11/2020 é reveladora. Boulos vinha participando de encontros fechados e sem divulgação à imprensa (pelo menos cinco encontros antes do 1º turno) com dezenas de executivos do mercado financeiro, onde buscava desconstruir a sua imagem de radical.

Foto: Gabriel Trevisan, Fotos Públicas

Um desses executivos, João Paulo Pacífico, CEO do grupo Gaia, que atua na área de securitização imobiliária, tem 20 anos de experiência no mercado financeiro e define-se como um “ex-tucano criado na cultura de meritocracia”, agora apoia Boulos. Ele diz à Folha:

“O radicalismo de que o acusam é querer que uma pessoa tenha teto, que se cumpra a Constituição. Vi uma abertura gigantesca dele para ouvir. Também não o vi sendo contra a iniciativa privada. Boulos fala que o Estado precisa da iniciativa privada, para que a cidade venha a prosperar. (…) Um cara de mercado financeiro não é alguém que vá apoiar o comunismo. Eu jamais apoiaria a estatização da minha empresa.”

Outro que agora apoia Boulos, o empresário Marcel Fukayama, fundador do Sistema B Brasil (que declara ter apoiado Marina Silva da Rede para presidente em 2018), disse à Folha:

“A aproximação do Boulos com o mercado está ampliando a confiança, quebrando mitos e mostrando que São Paulo pode ter um projeto alternativo mais inclusivo e sustentável. (…) O Estado tem um papel como indutor de uma nova economia e para habilitar um ambiente mais favorável para que o setor privado possa contribuir com soluções inovadoras. Boulos tem evidenciado crescimento e amadurecimento nessa direção.”

Ocorre que a sociedade atual é uma sociedade dividida em classes sociais, e a classe dominante capitalista tem interesses antagônicos aos das classes dominadas, em particular, aos da classe trabalhadora. Por isso, aquele que pretende representar os interesses da classe trabalhadora não será capaz jamais de atender aos interesses da classe capitalista. Em uma sociedade de classes, toda conciliação de classes levará à prevalência dos interesses da classe dominante sobre a dominada. Portanto, quando Boulos faz esse movimento tentando se colocar como conciliador desses interesses de classe, ele está (consciente ou inconscientemente) se colocando como agente dos interesses da classe dominante. Não há como saber o grau de consciência que ele tem disso. Mas o fato de ter deixado oculto do público que ele tenha realizado tantos encontros com executivos do setor financeiro, indica que ele sabia que o que estava fazendo, pelo menos, poderia ser entendido como uma traição de classe – e é. Entretanto, ele também fez um encontro às claras com representantes do comércio de São Paulo ainda antes do 1º turno, onde afirmou abertamente que “não demonizaria a iniciativa privada”.

Não obstante, a discussão que trazemos aqui sobre a irreconciliabilidade dos interesses de classe não se trata de uma abstração teórica. Isso tem consequências muito concretas. Como as que vimos quando Lula enviou tropas brasileiras ao Haiti ou quando o seu governo agiu para derrotar o Movimento das Fábricas Ocupadas no Brasil, ou ao não tirar do papel a prometida Reforma Agrária (mesmo tendo sido eleito duas vezes e depois Dilma eleita mais duas), só para ficar em 3 exemplos.

As consequências concretas desta política de Boulos e da direção do PSOL na prefeitura de São Paulo podem ser inúmeras. Algumas delas são apontadas pela própria Paula Lavigne, esposa de Caetano Veloso e uma das empresárias que articulou os encontros privados de Boulos com executivos do mercado financeiro. Ela diz à Folha:

“O discurso que ele [Boulos] tinha sobre PPPs [Parcerias Público-Privadas] era um e hoje é outro. Ele entende que, vendo de perto, as coisas são mais complexas. Na questão das OSs [Organizações Sociais], viu que muita coisa depende de melhorar a fiscalização. (…) Já lidei com muitos políticos, e talvez ele seja o menos radical de todos.”

A polêmica das OSs

Enquanto Boulos se reunia em segredo com dezenas de empresários e permitia que eles vissem nele um político nada radical, simpático às parcerias público-privadas, surgiu uma polêmica entre os trabalhadores contratados por entidades privadas que se beneficiam dessas PPPs nos serviços públicos municipais de São Paulo.

A campanha de Covas se aproveitou disso dizendo que o “radical” Boulos, caso eleito, iria romper todos os contratos o que acarretaria na perda imediata do emprego de todos esses trabalhadores precarizados.

Mas Boulos, em vez de responder que a privatização e terceirização dos serviços públicos traz precarização das condições de trabalho, salários menores e menos direitos, e que portanto, sim, pretende acabar com a privatização e a terceirização, mas que o fará efetivando imediatamente os terceirizados e garantindo seus empregos, ele responde que é tudo mentira, fake news, que ele vai manter os contratos de parcerias público-privadas sim e que apenas vai fiscalizar as OSs, sendo que, se for constatado mau uso do dinheiro público, aí sim, aquela OS em específico poderá ter seu contrato descontinuado. Ora, e como ficam os milhares de trabalhadores contratados por essas OSs? Continuarão sem estabilidade alguma? Boulos adota um discurso que poderia ser do Haddad ou mesmo do Covas. E por que não do Bolsonaro? Um discurso de qualquer gestor que não quer mudar nada, apenas gerir melhor. Assim, Boulos, para se desfazer da imagem de radical que luta pelos interesses dos explorados, reduz o debate a quem pode gerir melhor a coisa pública. Quem é melhor gestor? Boulos ou Covas? É essa a pergunta que realmente interessa à classe trabalhadora?

A linha da conciliação de classes sempre leva a isso; à despolitização do debate e à sua redução a o que é melhor do ponto de vista administrativo – já que politicamente busca-se a conciliação dos interesses, logo um programa político comum, ou seja, que atenda aos interesses do capital. Foi essa política que nos trouxe até o bolsonarismo de massas.

Boulos nas urnas e “Fora Bolsonaro” nas ruas!

Nos debates e em sua propaganda eleitoral, enquanto Covas tenta colocar Boulos e Bolsonaro no mesmo saco, dizendo que é preciso dar um basta a “radicalismos”, Boulos tenta se mostrar menos radical. E, como demonstramos mais acima, não tem se tratado apenas de uma mudança da “imagem”. Com isso, Boulos e a direção do PSOL acreditam que podem obter mais votos. Ledo engano. O combate agora é classe contra classe. Quanto mais radical Boulos se mostrar, mais ele poderá se conectar com o sentimento de ódio contra o sistema que permeia toda a classe trabalhadora. Se fosse nesse caminho, poderia obter o voto daqueles que não quiseram votar no 1º turno ou mesmo de parte daqueles que votaram em Covas. Para quem acha isso impossível, vale lembrar que quando Lula apelou para um discurso mais radical, de “pobres contra os ricos”, no 2º turno de 2006, arrancou cerca de 2 milhões de votos que tinham ido para Alckmin no 1º turno daquelas eleições presidenciais.

Quanto mais Boulos defender politicamente os interesses das classes exploradas contra os interesses da classe dominante que o Covas defende (junto com Doria, Guedes, Bolsonaro), mais votos Boulos pode ter.

Quanto mais Boulos disser “Fora Bolsonaro”, mais ele se conectará com o sentimento de ódio de classe que milhões de jovens e trabalhadores sentem contra a figura execrável de Bolsonaro. Mas Boulos evita dizê-lo. E ao evitar, permite que até mesmo Bruno Covas se apresente demagogicamente como um contraponto a Bolsonaro, atraindo para si uma parte do eleitorado contrário ao bolsonarismo. É claro que, apesar de Boulos não colocar como centro na agitação de sua campanha o “Fora Bolsonaro”, o PSOL é visto pela maior parte das massas como o partido antagonista a Bolsonaro. Ocorre que Boulos não quer estimular luta de classes, pelo contrário, como vimos, ele quer construir pontes para realizar uma política de conciliação de classes e um governo de coalizão com os setores da burguesia que ele chama de “democráticos”. Assim como os clássicos conciliadores de classe no Brasil – Prestes e o velho PCB, Lula e a direção do PT – Boulos agora busca trilhar esse mesmo caminho que todos já sabemos onde vai dar.

Para que o PSOL vire o jogo em São Paulo, assuma a prefeitura da maior cidade do país e possa se tornar uma força política capaz de liderar a classe trabalhadora na sua luta pela emancipação, Boulos deveria assumir um programa radical e revolucionário baseado no Programa Emergencial que apresentamos no início da quarentena, que começasse por propor um lockdown na cidade de São Paulo, apenas permitindo que continuassem funcionando os serviços essenciais enquanto não houver vacina (com garantia de emprego e salário a todos impedidos de trabalhar); por reverter todas as privatizações e parcerias público-privadas na saúde, educação, assistência social e demais serviços públicos, efetivando todos os trabalhadores terceirizados; por reverter a privatização do transporte público e implementar a tarifa zero; por expropriar todos os proprietários que promovem a especulação imobiliária, destinando os imóveis à moradia popular; por abrir restaurantes e lavanderias públicas para atender toda a população da cidade. Assim, se conectaria profundamente às reivindicações mais sentidas da classe trabalhadora de São Paulo e entusiasmaria jovens e trabalhadores em todo o país para derrubar Bolsonaro e avançar na luta para derrubar o sistema.

Sabemos que não é isso que Boulos fará. Mas será preciso que a classe trabalhadora e sua juventude façam a experiência com essa direção atual do PSOL. Só assim, através da experiência prática, poderão superá-la e construir uma direção revolucionária. Com esse objetivo, batalhamos com todas as nossas forças para eleger Boulos prefeito em São Paulo, sem alimentar ilusões em seu programa e agitando uma palavra de ordem que expresse de maneira sintética nossa oposição à linha da atual direção do PSOL de conciliação de classes, ou seja, erguendo alto a bandeira cujo grito está entalado na garganta da nossa classe e seus dirigentes nunca gostam de dizer: “Fora Bolsonaro”.