Foto: Ricardo Stuckert

Decretos de Lula sobre o saneamento seguem entregando o setor à iniciativa privada

No início de abril, o governo Lula publicou dois importantes decretos (11.466/23 e 11.467/23) que alteram o Marco Legal do Saneamento Básico (Lei 11.445/2007, alterada pela Lei 14.026/2020) publicado por Bolsonaro. Na propaganda do governo, destaca-se que, com as mudanças, serão investidos mais R$ 120 bilhões para garantir o cumprimento das metas de universalização do saneamento básico no país até 2033. Mas, será que isso é o suficiente? Afinal, quanto custa universalizar o saneamento no Brasil? Em que condições esse investimento se dará e como isso pode afetar a população?

Lembremos que o Novo Marco do Saneamento aprovado pelo governo Bolsonaro escancarava a entrega das empresas públicas do setor à iniciativa privada. Ao mesmo tempo em que ele estipulava o ano de 2033 para a universalização dos serviços de água e esgoto — 99% de abastecimento de água potável e 90% de tratamento de esgoto — também permitia a privatização sem limites e fechava o acesso às verbas públicas. Tudo isso obrigava as empresas estatais a recorrem às Parcerias Público Privadas (PPPs) e aos bancos.

Para se ter uma ideia, após a aprovação do Novo Marco, em 2020, houve 21 leilões de concessão no setor, que abrangem 244 municípios.

Os recentes decretos de Lula dão um passo atrás na facilidade de privatização do setor. No entanto, sem mexer no problema fundamental de destinação suficiente de verbas públicas para a universalização, e tornando ilimitada a possibilidade de PPPs, as novas regras seguem empurrando o setor para os braços da iniciativa privada.

Temos aqui um espécime legítimo do modus operandi do governo Lula: continuar enriquecendo o setor privado, com ares de progressismo e sem mexer nas estruturas fundamentais da sociedade que permitiriam a real universalização do saneamento básico no país.

O que dizem os decretos?

O primeiro decreto publicado (11.466/23) trata especificamente da metodologia para comprovação da capacidade econômico-financeira das estatais de saneamento com contratos em vigor. O segundo (11.467/23) dispõe sobre a prestação regionalizada dos serviços públicos de saneamento básico, seja por meio de contratos de programa de estatais ou através de parcerias público-privadas.

Entre as mudanças decretadas pelo governo Lula estão:

  • Estatais estaduais podem continuar operando os serviços de água e esgoto sem licitação, por meio dos chamados contratos de programa. No Marco do Saneamento aprovado por Bolsonaro elas deveriam concorrer em licitações com o setor privado. Aqui, Lula fecha as portas para uma das ofensivas privatistas do Marco. No entanto, como veremos mais detalhadamente abaixo, essa medida não é suficiente sem a destinação de verbas para que estas empresas possam cumprir as metas de universalização.
  • Prorrogação até 2025 do prazo para que as empresas estatais comprovem sua capacidade financeira para universalizar os serviços de água e esgoto até 2033. Pelo Novo Marco, esse prazo era 2021. Caso não haja comprovação, o governo local precisa licitar a área. Os patrimônios públicos das empresas públicas, ficam a um passo de serem entregues às empresas privadas, a custos muito baixos como vimos nas últimas privatizações. E, na realidade, sem aporte de verbas federais, o mais provável é que muitos municípios continuem sem conseguir.
  • A prorrogação citada acima permite que 1.113 municípios (com população de 29,8 milhões), que tiveram os contratos considerados irregulares após análise de capacidade financeira, poderão voltar a acessar recursos federais de saneamento. Essa é uma medida importante, que poderia permitir aos menores municípios a universalização, mas, da mesma forma, depende da destinação suficiente de recursos federais.
  • Fim do limite para Parcerias Público-Privada (PPPs), que com o Novo Marco era de 25%. Esse é o principal elemento de entreguismo do setor de saneamento à iniciativa privada. E é pior nos decretos de Lula do que no Novo Marco de Bolsonaro.
  • Prorrogação do prazo para implementação da regionalização da prestação dos serviços para de março de 2023 para dezembro de 2025. Considerada um dos eixos estruturantes do Novo Marco, a regionalização propõe que estados agrupem seus municípios em regiões. Por si só, essa não é uma medida ruim, pois ela permite o compartilhamento de infraestrutura. Além disso, regiões com maior arrecadação e superavitárias ajudariam a cobrir investimentos necessários nos municípios deficitários. No entanto, sem a garantir de recursos públicos e com a possibilidade de PPPs sem limite, as áreas lucrativas continuarão a ser entregues para exploração da iniciativa privada e as áreas com alta necessidade de investimento e baixo retorno tarifário ficarão sob a responsabilidade do Estado.

Rapidamente, a burguesia do país reagiu aos decretos negativamente. O Estadão publicou um editorial com o título “Retrocesso inaceitável no saneamento”. A opinião deste jornal é compartilhada por associações empresariais privadas Brasil afora, todas afirmando que os decretos vão “gerar insegurança jurídica e travar os investimentos no segmento”. O governo respondeu às críticas afirmando que haverá “rigorosa fiscalização” contra as empresas públicas.

Lembremos que as empresas públicas já estão submetidas a uma série de regras, como o Art. 37 da Constituição Federal: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”. Também precisam responder às leis de licitação e, em especial, à Lei das Estatais (13.303/2016).

Já as empresas privadas do setor passam longe de regras como estas e se utilizam de todos os meios para aumentar a lucratividade.

Preço da universalização do saneamento x Investimentos

O Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab), revisado em 25/07/2019, aponta que os investimentos necessários para a universalização dos serviços de água e esgoto no período entre 2019 e 2033 seria de R$ 357,15 bilhões. Trazidos a preços de final de junho de 2021, o custo da universalização do saneamento seria de aproximadamente R$ 579,25 bilhões.

Já os investimentos em 2019, 2020 e 2021, foram: R$ 15,6 bilhões, R$ 13,6 bilhões e R$ 17,3 bilhões a valores nominais, ou R$ 22,7 bilhões, R$ 18,4 bilhões e R$ 17,3 bilhões a preços de 2021, respectivamente.

Assim, subtraindo-se esses valores do montante total, chega-se à conclusão de que ainda resta investir cerca de R$ 520,94 bilhões ao longo de 12 anos, ou R$ 43,31 bilhões por ano, em média.

Considerando-se a população estimada pelo IBGE para o ano de 2021, de 213.317.639 habitantes, chega-se a um investimento anual médio per capita necessário de R$ 203,51 por habitante para se obter a universalização.

Já o Ranking do Saneamento 2023 do Instituto Trata Brasil, com foco nas 100 maiores cidades do país, traz uma avaliação dos investimentos médios nas capitais brasileiras, entre 2017 e 2021, a partir de valores de junho de 2021.

De acordo com ele, apenas duas capitais atingiram essa meta: Cuiabá/MT, com R$ 369,33 por habitante, e São Paulo/SP, com R$ 209,33 por habitante. Já a média das capitais foi de R$ 113,47 por habitante. Os patamares mais baixos foram observados em Rio Branco/AC, com R$ 32,63 por habitante, em Maceió/AL, com R$ 31,68 por habitante, e em Macapá/AP, com irrisórios R$ 16,94 por habitante.

Praticamente nenhum município dentre os 20 piores investiu mais do que R$ 100 por habitante. Isso explica, a manutenção dos indicadores desses municípios em níveis precários. Por exemplo, entre os 20 piores, a coleta média de esgoto é de 29,25% – muito abaixo da meta de 90% até 2033.

A cidade de Joinville/SC, por exemplo, está em 74º no Ranking. Aqui, o serviço de água e esgoto é prestado pela Companhia Águas de Joinville, empresa pública municipal. Anualmente, são retirados da empresa cerca de R$ 20 milhões de lucro para os caixas do município. Já os recursos para a universalização estão sendo captados junto ao Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e à Agência Francesa de Desenvolvimento (AFD), bem como com um projeto para estabelecimento de uma PPP para a Vertente Leste – formada pelo Aventureiro, Iririú e Jardim Iririú e regiões de outros bairros, onde vivem 120 mil pessoas.

Enquanto o aporte financeiro deveria ser do município (a começar por não tirar o lucro), do estado e do governo federal. E, ao fim, todo esse “investimento” será cobrado com juros da população joinvilense por meio das suas faturas mensais.

Quadro – Municípios das 20 Piores Colocações do Ranking da Última Década

Desigualdade

De acordo com o Instituto Trata Brasil, cerca de 35 milhões de brasileiros ainda não têm acesso à água tratada, 100 milhões (quase metade da população) não conta com coleta de esgotos. Além disso, o país ainda tem grandes dificuldades com o tratamento do esgoto, do qual somente 51,20% do volume gerado é tratado – isto é, mais de 5,5 mil piscinas olímpicas de esgoto sem tratamento são despejadas na natureza diariamente.

Desta forma, doenças relacionadas ao saneamento ambiental inadequado foram causa direta de quase 1% das mortes no Brasil entre 2008 e 2019. Foram 135 mil óbitos nesse período, uma média de 11,2 mil ao ano, de acordo com o IBGE.

O Ranking do Saneamento 2023 também destaca que o tratamento de esgoto é 340% maior nos 20 municípios mais bem colocados do que nos 20 piores do Brasil.

Dentre as 100 maiores cidades do Brasil, a média deste indicador é de apenas 18,21% no grupo das 20 piores, em que figuram principalmente municípios das regiões Norte e Nordeste.

Para onde vai o dinheiro público que poderia financiar o saneamento?

De acordo com a Auditoria Cidadã da Dívida Pública, com base em dados oficiais, em 2022 mais de R$ 1,8 trilhões foram destinados para os juros e amortizações da dívida pública. Este valor representou 46,80% de todo o Orçamento Federal. Enquanto isso, o setor de saneamento recebeu 0,0072% do Orçamento. Outros setores importantíssimos também receberam percentuais vergonhosos. É o caso da Saúde, com 3,37%, e da Educação, com 2,7%.

Sobre esta dívida impagável e criminosa, que suga a cada dia mais a classe trabalhadora brasileira, Lula não fala nem uma palavra. Já os demais “gastos” do governo seguem sendo limitados, agora por meio do novo arcabouço fiscal do governo.

É possível tornar o acesso à água e ao tratamento de esgoto um direito público, gratuito e para todos. Mas isso só será possível quando um verdadeiro governo dos trabalhadores decidir parar de pagar os parasitas que roubam o país.