Imagem: Ricardo Stuckert - PT

Diga-me com quem andas e eu te direi que governo és

O encontro em Washington de Lula com Joe Biden nesta sexta-feira (10/2) diz muito mais sobre o novo governo conformado em janeiro do que os discursos de seus representantes. A mensagem do novo presidente brasileiro precisa ser clara quando se trata de lidar com o representante da burguesia hegemônica na economia e na política mundial. Seu conteúdo pode ser determinado tanto pela pauta do encontro bilateral, quanto pela comitiva selecionada por Lula para acompanhá-lo à cerimônia de beija-mão na Casa Branca.

Um eixo central da reunião tratou da defesa da democracia e do enfrentamento à extrema-direita. Biden foi um dos primeiros líderes a condenar os atentados de 8 de janeiro, classificando como “ultrajante” o ataque bolsonarista ao sistema político brasileiro. O convite de Biden deixa claro que a forma democrática de governo é a que interessa à atual gestão do imperialismo americano, e é a orientação que espera tanto dos políticos quanto dos militares brasileiros. O eixo político central utilizado pela atual gestão dos EUA é o domínio por meio da eleição democrática dos seus aliados.

O governo Bolsonaro foi para Biden um empecilho para o desenvolvimento dessa pauta democrática como marca de sua gestão. Em primeiro lugar porque Bolsonaro era um entusiasta e discípulo político de Donald Trump, antecessor de Biden que tentou impedir sua posse. Em segundo lugar porque os alinhamentos econômicos de Bolsonaro estavam ligados a setores nacionais e internacionais que não correspondiam exatamente aos setores americanos expressos por Biden e a atual gestão da Casa Branca.

Já Lula apresenta uma orientação muito diferente em relação aos interesses da gestão Biden. Aqui se faz interessante destacar a comitiva escolhida pelo presidente brasileiro. O acompanharam o Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, a Ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, a Ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, e o Ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira. Vê-se aqui um raio-X da espinha dorsal deste novo governo nascido das urnas de 30 de outubro de 2022, sua orientação política fundamental.

A presença de Haddad transmite a mensagem clara de que o Brasil continua fiel a seus compromissos internacionais. Isso significa, em primeiro lugar, que o governo irá manter o pagamento da dívida pública interna e externa, ainda que ao custo de consumir de 40% a 50% das receitas da União e de estrangular a Nação. Em segundo lugar, mostra que a atual administração continua leal às orientações econômicas ditadas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e demais organismos internacionais. Daí o alarde da imprensa nacional em torno da necessidade de “responsabilidade fiscal” e a promessa do ministro de instituir uma nova âncora fiscal e uma reforma tributária em acordo com a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp).

O “combate às mudanças climáticas”, também entre os temas da conversa entre as comitivas presidenciais, tem sido o mantra de Marina Silva desde sua posse como ministra. Ao mesmo tempo que posa para foto com Greta Thumberg e alude a sua juventude ao lado de Chico Mendes, Marina expressa a orientação das burguesias imperialistas de desenvolver um capitalismo verde. O novo governo espera assim atrair capital imperialista que se apresente como sustentável para investir em atuais e novas empresas que produzam mercadorias com selo verde no Brasil. Parte desse movimento incluiu a negociação com Biden de doações do G7 para o Fundo Amazônia. No Fórum de Davos, de janeiro, Marina já havia participado do painel sobre bioeconomia na Amazônia e tratado com o enviado especial para o clima dos EUA, John Kerry.

Com Anielle Franco fica evidente a diretriz de estimular e se apoiar em políticas identitárias para pautar o debate sobre questões sociais. A ministra explicou que sua prioridade no encontro com Biden seria retomar um plano de ação conjunto entre EUA-Brasil, assinado em 2008, que pretendia terminar a discriminação racial e étnica e promover a igualdade. Tal propósito é escandaloso, ainda mais ao ser levado a discussão no terceiro ano da gestão Biden. Já está bastante explícito o conteúdo reacionário do que entendem por “direitos humanos” o senhor e a senhora da guerra Biden e Kamala Harris.

O significado dessa expressão por parte do governo americano é conhecido pelos trabalhadores negros que sofrem com a violência policial nos EUA. Também o experimentaram as mulheres americanas que tiveram removido seu direito ao aborto ano passado. Não passou batido para as mulheres e para os trabalhadores afegãos o edificante trabalho de “direitos humanos” que a gestão Biden legou no Afeganistão. Pode-se também consultar os trabalhadores ucranianos sobre os progressos dos “direitos humanos” que Biden e Kamala estão promovendo no país. Talvez Anielle pudesse propor tal plano de ação para Dina Boluarte, a vice-presidente peruana que implementa o golpe oligáquico apoiada pelos EUA contra as massas peruanas que ousaram tentar usar a “democracia” para seus próprios interesses e não para camuflar a ditadura econômica dos ricos do Peru e dos Estados Unidos.

A essa orientação identitária e diversionista da luta de classes e dos problemas fundamentais da sociedade se combina a adoção em janeiro do gênero neutro em documentos e discursos governamentais brasileiros. Trata-se de uma expressão política das ideias do pós-modernismo que pretendem superar a violência, o preconceito e a opressão capitalista por meio da linguagem.

Por fim, o ministro Mauro Vieira expressa de forma clara a orientação de resgatar laços econômicos e diplomáticos sistematicamente corroídos pelos anos de Ernesto Araújo e Carlos França nas relações exteriores. A discussão na agenda com Biden sobre as relações comerciais tratou não só dos interesses fundamentais da burguesia americana em solo tropical. No encontro, também foram negociadas as contrapartidas para o governo brasileiro, como o apoio para presidência do Brasil no G20 que ocorre em dezembro e a perspectiva de inserção do Brasil no Conselho de Segurança da ONU.

Trata-se de uma política de maior integração brasileira aos organismos de dominação imperialista internacionais e de cooperação com o imperialismo americano. Essa aproximação acontece depois das viagens de Lula para Argentina e para o Uruguai, onde se demonstrou a disposição do governo brasileiro em avançar na negociação do acordo entre o Mercosul com a União Europeia em detrimento da China.

O problema começará quando Lula e sua seleção ministerial voltarem ao Brasil e entrarem em campo para enfrentar os problemas da sociedade brasileira e colocarem seus planos em prática. Essas respostas estão longe de atender as expectativas dos 60 milhões de brasileiros que elegeram a chapa Lula/Alckmin. A vanguarda que entrou em movimento para derrotar Bolsonaro, em particular aquela que se reivindica do comunismo, precisa refletir sobre os motivos dessa orientação do atual governo. A análise minuciosa sobre o sentido político de suas atividades e de onde estão seus aliados é um primeiro passo para se aproximar da resposta e de suas implicações políticas.